A consideração de que a leitura torna necessariamente as pessoas melhores tornou-se uma “verdade” assente entre pessoas cultas. Quem não lê seria evidentemente inferior a quem lê, e um dos critérios para saber se alguém tem ou não autêntica consistência é a quantidade de livros que leu. Ora, essas afirmações não suportam o menor confronto a realidade! Como praticamente todas as coisas humanas, a leitura pode ajudar… ou atrapalhar tremendamente a vida de alguém.
Recentemente, vários intelectuais ficaram boquiabertos e indignados porque o nosso Presidente reconheceu não gostar de ler. Parece-me que há outros aspectos muito mais pertinentes para avaliar o nosso Presidente do que sua paixão (ou ausência dela) pela leitura.
É o caso de perguntar: será que não ler é pior do que ler mal? Quantos estragos têm sido por pessoas que leem muito! Conhecem inúmeros autores (é curioso que costumam ser principalmente os mais recentes), sabem a história da arte, da filosofia e da música, mas acabam defendendo posições contrárias ao senso comum e à realidade diante dos seus olhos.
Recordo-me de uma charge da época do Presidente Reagan. Havia nela uma placa imensa, com uma seta indicando: “Aqui está a biblioteca com todos os livros lidos pelo Presidente Reagan”, e apontava para uma casa absolutamente minúscula… No entanto, hoje em dia, o legado desse “homem inculto” é extremamente valorizado: trata-se de alguém que mudou a história, ajudando a acabar com a Guerra Fria e modificando a fundo o país que começou a governar em um momento de crise de confiança.
É claro que Reagan não fez isso porque leu pouco. O que quero dizer é que não é necessário ser um intelectual para ser um grande presidente. Também não quero cometer a tolice de comparar Reagan com Lula, o que, acredito, ofenderia os dois interessados, por motivos diversos. Mas o pecado de Lula não é ter lido pouco, assim como o acerto de Reagan não veio do fato de ele ter lido muito. São coisas diferentes tomar decisões certas na vida e ler bastante, ainda que não sejam excludentes.
“A leitura não salva nem redime ninguém”. Quem me disse isso foi exatamente a pessoa mais lida que conheci, o poeta Bruno Tolentino. Uma pessoa não se faz principalmente pelo que lê, mas sim pelas suas ações e pelo que é. Alguém que leia bem, reflita sobre o que aprendeu e saiba incorporá-lo ao próprio comportamento, tem um instrumento para ser melhor. Não é simplesmente a leitura que aprimora, mas a reação que se tem a partir dela.
A verdade é que a degradação em virtude da leitura ocorre com maior frequência do que os “promotores de cultura” reconhecem. Basta ver quantas pessoas se tornam céticas, cínicas ou niilistas por força dos autores que leram. Lembro-me de uma atriz que dizia ter deixado sua religião porque leu Herman Hesse… Meu Deus, por Herman Hesse! Realmente, não me parece ter sido uma boa troca.
Escrevo tudo isso sendo um apaixonado pela leitura. Mas sei que ela não me faz, por si mesma, um homem melhor. Esquecer disso abre caminho para a vaidade e a tolice, além de levar a desprezar aqueles que, por qualquer motivo, não leem de maneira habitual. E a verdadeira percepção sobre a melhor maneira de agir vem da virtude (como afirmava o bom e velho Aristóteles… caramba, mas aprendi isso lendo!); por isso uma pessoa de caráter íntegro saberá quase sempre agir muito melhor do que alguém que leu toneladas de livros.
E termino ressaltando que ler é habitualmente um verbo transitivo direto: leio algo. E esse algo pode ser bom ou não, tornando assim a leitura algo enriquecedor, uma perda de tempo, ou, em não poucos casos, um verdadeiro atentado contra a própria alma. É importante ler bem, mas é igualmente necessário evitar ler mal.
Por que ninguém escreveu isso antes? Esse é um engano tão obvio como dizer que alguém se torna melhor por comer mais que os outros. Bravo! O que precisamos é de homens que digam a verdade quando tudo sugere que perderão algo por isso e que agem e reagem querendo o bem de quem causa sua ação ou reação. Sem mais delongas, precisamos de cristãos verdadeiros nessa joça. Pessoas que não precisam de se comparar com seu vizinho para saber se devem ou não agir conforme Cristo agiria.
Simplista.
A relação entre a leitura e o senso moral é mais complexa do que aqui apresentada. Renato Moraes tem razão quando lembra que a leitura também corrompe; mas falta-lhe finesse e ele acaba “puxando a sardinha” demais para o lado dos iletrados. No fim das contas, o preconceito contra eles não é abominável; só não deveria cegar.
Fico com o Russell Kirk de “The Moral Imagination” (http://www.kirkcenter.org/index.php/the-moral-imagination/), que escreve com a argúcia que o tema merece (até menciona statesmanship):
“A perceptive critic, Mr. Albert Fowler, writing in Modern Age, asks the question, “Can Literature Corrupt?”—and answers in the affirmative. So literature can; and also it is possible to be corrupted by an ignorance of humane letters, much of our normative knowledge necessarily being derived from our reading. The person who reads bad books instead of good may be subtly corrupted; the person who reads nothing at all maybe forever adrift in life unless he lives in a community still powerfully influenced by what Gustave Thibon calls “moral habits” and by oral tradition. And absolute abstinence from printed matter has become rare. If a small boy does not read Robert Louis Stevenson’s Treasure Island (1883), the odds are that he will read Mad Ghoul Comics (…)
“Of course it was not by books alone that the normative understanding of the framers of the Constitution, for instance, was formed. Their apprehension of norms was acquired also in family, church, and school, and in the business of ordinary life. But that portion of their normative understanding which was got from books did loom large. For we cannot attain very well to enduring standards if we rely simply on actual personal experience as a normative mentor. Sheer experience, as Franklin suggested, is the teacher of born fools. Our lives are too brief and confused for most men to develop any normative pattern from their private experience; and as Newman wrote, “Life is for action.” Therefore we turn to the bank and capital of the ages, the normative knowledge found in revelation, authority, and historical experience, if we seek guidance in morals, taste, and politics. “
“A little learning is a dangerous thing; drink deep, or taste not the Pierian spring: there shallow draughts intoxicate the brain, and drinking largely sobers us again.”
Alexander Pope em “Essay on Criticism”
Fernado Pessoa:
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
(…)
Grande é a poesia, a bondade e as danças…
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca…
Há muita gente se esmerando em adquirir erudição, como se isso pudesse torná-lo melhor por si só. A mera aquisição de erudição não pode trazer felicidade, saúde, inteligência, sabedoria, ou mesmo a salvação da alma para ninguém. E muitos tornam-se eruditos e ao mesmo cegos para as realidades mais óbvias. É o sujeito que sabe os Upanishads de cor, mas é ao mesmo tempo o único a não saber que a mulher lhe trai; o sujeito que passou dez anos lendo a Patrística inteira e cai no conto do vigário do político mais demagogo. A erudição, ao meu ver, é mero instrumento.
E Max Weber ficou catatônico de tanto estudar…
Bem lembrado o poema acima.
Como diria, se não me engano, Rui Barbosa (“Vulgar é o ler, raro o refletir”), evidente que se tem de interpretar bem o que se lê e escolher boas leituras, porém daí achar que livros não salvam ninguém, nem redimem ninguém é outra coisa…Por outro lado, é essa a função deles? Salvar ou redimir? Se uma mulher abandona a religião por ter lido Herman Hesse, certamente ela já estava insatisfeita com tal, o autor foi apenas o estopim.
Fico feliz só de ver alguém lendo, seja o que for, pode ser o primeiro passo para obras maiores. Num meio de tanta genta agitada, a concentração espiritual exigida por uma leitura pode salvar, sim, e até redimir.
Exagero, a leitura redime algumas pessoas. Vi muito por aí.
Bom ponto, Renato.
Só discordo num ponto: acho que você tratou leitura e “redenção” (virtude, caráter, etc) como duas coisas quase independentes. Acho que o mais correto é dizer que a leitura ajuda sim a formação de um bom caráter e uma vida boa. Ela não basta, e também não é estritamente necessária, mas certamente tem muito a contribuir.
Pode corromper, é verdade. Mas tudo pode ser mal usado, o que não quer dizer que a coisa mal usada seja má ou neutra.
A comparação com comida num dos comentários acho fraca porque a comida é algo que estimula apenas os sentidos. Já a leitura estimula a razão, a inteligência, o que por si só já a torna algo mais benéfico à pessoa.
Ler Harry Potter, por exemplo, não é nenhuma grande escola de virtudes morais ou intelectuais. Mas enquanto atividade de lazer, é superior a assistir os filmes do Harry Potter em DVD, porque a mente trabalha de forma mais ativa e é levada a pensar mais.
O poema de Pessoa, Liberdade, citado acima é irônico e reflete justamente sobre a necessidade de se realizar as “obrigações” como forma de alcançar a liberdade. Dentro do contexto colocado aqui, a leitura é uma forma de liberdade, uma vez que nos oferece, no mínimo, uma amplitude de percepção e compreensão do todo à nossa volta. Evidentemente, sempre haverá os que leem e não veem e os que não leem e enxergam muito. Não podemos esquecer que há uma diferença profunda entre conhecimento e sabedoria. Mas é bom lembrar Lobato: “um país se faz com Homens e livros”.
Gostei do texto. “Vaidade e tolice” de fato associam-se a um tipo de apropriação perversa dos livros. Como diria alguém cujo convívio pessoal muito me beneficiou, podem inclusive fechar o espírito ao contato verdadeiro com quem escreveu. Bom, duas coisas me vieram à mente: 1) Santo Tomás discorrendo em algum lugar da Suma Teológica a respeito de conhecimento bem ordenado, algo necessário a qualquer ser humano, independente do quão letrado seja. Tentando localizar improvisadamente a passagem, não consegui mas topei 1a) com a seguinte remissão do Pieper ao comentário de ST à Metafísica do Aristóteles: o conhecimento que se busca filosoficamente não é dado ao homem como algo a ser possuído, sim como algo que lhe é emprestado, “aliquid mutuatum” para quem gosta de latim; 1 b) em registro fundamentalmente sério mas “tongue in cheek”, com o seguinte artigo de James Schall, dirigido a estudantes de graduação universitária, sobre “o que ler para ser salvo”: http://www.ignatiusinsight.com/features2007/schall_readingsalv1_may07.asp. Pessoalmente eu colocaria um grão de sal na lista dos dez mais; acho que o JS não se incomodaria. Ao fim e ao cabo, o critério último é o da humildade que abre acesso ao que é real, amorosamente criado.
2a) Na mesma linha da busca de integridade, contraprovas de que muita ou pouca leitura; acesso ou não a cultura highbrow, não fazem ninguém melhor ou pior: os muito conhecidos nazistas de apurada sensibilidade artística; os muito conhecidos excessos de multidões massificadas e suas lideranças, hm, populares ao longo da história (alguns aí já leram Berdiaev, pois não?). 2b)Complementarmente, dois exemplos de homens próximos no tempo e no carisma, relacionando-se muito distintamente com a leitura e o estudo: Francisco e Boaventura.