A Arquitetura da Felicidade

Por Adriano Correia

Silver Linings Playbook (no Brasil, “O Lado Bom da Vida”), 2012, dirigido por David O. Russell, e estrelado por Bradley Cooper (The Hangover) e Jennifer Lawrence (Hunger Games), é uma comédia romântica fora do comum, a começar pelo fato de que subverte, pelo excesso e pela antecipação, o velho clichê do gênero, em que geralmente o mocinho corre atrás da mocinha no final do filme; aqui o mocinho, Pat, é um bipolar cuja mãe (Dolores, interpretada por Jacki Weaver), nas cenas iniciais, busca-o no sanatório; um maluco descontrolado que, com alguma razão, espanca um velho, colega seu, professor de história na mesma escola, que encontra, em sua casa, transando com sua esposa no chuveiro, sob uma das faixas sonoras de seu casamento. Um filme fora do trilho de seu gênero, pois Pat está a correr o tempo todo (e não só no final), vestindo um saco de lixo que o faz suar mais e que, pois, faz com que perca mais peso, obsessão que adquire em consequência de ter sido gordo durante todo o casamento.

Também é um filme em que a personagem protagonista, Tiffany, interpretada por Jennifer Lawrence, indicada ao Oscar, só nos é apresentada depois dos trinta minutos iniciais, num jantar disfuncional oferecido por sua irmã, Veronica (Julia Stiles). Jantar de que participam apenas pessoas disfuncionais, quebradas, tanto por parte de Veronica e seu marido, como por parte do par principal, cuja primeira conversa consiste em indiscrições de parte a parte, e da discussão dos medicamentos psicotrópicos a que já foram submetidos.

Não há um só personagem que possamos chamar de “normal” no filme; todos falam muito, o tempo todo, e todos são algo caricaturais, incluindo o psiquiatra indiano que cuida do caso de Pat. Todos são extremamente passionais e intensos, o que faria pensar que se trata de um filme de italianos (e a presença de Robert De Niro, no papel do emotivo e supersticioso pai de Pat, reforça essa aparência).

Mas o que dizer sobre Tiffany, a personagem promíscua de Jennifer Lawrence? Sabe-se que seu marido policial era pouco romântico, e que morre pouco depois de comprar indumentária erótica para sua mulher, com quem decidira “reavivar o romance”. Tiffany também deixa escapar, contando-o a Pat, que insistia que seu falecido esposo participasse de um concurso de dança com ela, ao que ele sempre se negava. Estando, porém, o personagem de Bradley Cooper obcecado pela esposa, Tiffany maneja um esquema para obrigar o neurótico Pat a ensaiar para o tal concurso de dança e dele participar: em troca da entrega de uma carta à esposa de Pat, que lhe impusera uma restraining order, Tiffany faz dele refém de uma manipulação que (spoiler alert) o salvará de si mesmo, possibilitando a superação da ridícula obsessão pela ex, e também fornecendo-lhe meandros emotivos para que possa, de algum modo, alcançar a felicidade — e aí então, segundo spoiler, temos a faceta ingênua e clichê do filme, pois a felicidade lhe é trazida pelas mãos de Tiffany, e tudo acaba bem.

Ou seja, embora seja um filme pouco convencional em seu gênero, ainda assim tem aquele calor típico, por exemplo, dos filmes de Capra, em que o personagem bonzinho central passa por uma série de apuros, que quase põem fim a sua vida (como em Mr. Smith Goes to Washington e It’s a Wonderful Life, ambos estrelados pelo gigante James Stewart), só para no final se dar sentido à máxima de que o que não mata, torna mais forte. E é de fato o que ocorre nos três filmes.

A diferença principal entre o filme de David O. Russell e os de Frank Capra, porém, reside no motor que traz a mudança à tona. Em Mr. Smith esse motor em parte parece ser a secretária desiludida e cínica, Clarissa Saunders (interpretada por Jean Arthur), que, no entanto, aos poucos cede ao charme ingênuo, idealista e romântico de Jefferson Smith, um caipirão que ama a história política de seu país e que ao, por um acaso, tornar-se senador se deslumbra com os monumentos históricos de Washington, D.C., como a estátua esculpida de Lincoln. Aliás, é curioso notar o título que deram ao filme no Brasil, que não poderia ser mais bobo e simultaneamente revelador, A Mulher Faz o Homem.

It’s a Wonderful Life (no Brasil, A Felicidade Não Se Compra) não tem como móbile da mudança de George Bailey sua esposa, Mary Hatch (papel representado por Donna Reed), embora ela, como a morte do pai de Bailey, sejam em parte o motivo que atravanca, de certo modo, a vida do protagonista e fazem com que ele nunca saia da cidade pequena e interiorana em que vive para conquistar seu sonho de cursar uma universidade e ser alguém na vida, e de preferência alguém rico, com um milhão de dólares antes dos trinta anos.

Neste segundo filme de Capra é preciso o motor da possibilidade da prisão e completa ruína (em decorrência de um erro de seu tio bêbado) para que o personagem principal pense em tirar sua própria vida, ao que se recorre, até onde sei, pela primeira vez na história do cinema, ao recurso contrafactual de “como seria o mundo se você nunca tivesse nascido” (um tipo de thought experiment).

Silver Linings Playbook se aproxima muito mais do mecanismo de enredo de Mr. Smith. Clarissa Saunders, a assistente debochada e um tanto alcoólatra, mostra a realidade suja e malandra da política ao ingênuo Jefferson Smith, que por meio de um filibuster é obrigado a falar sem parar, de modo a que não se passe uma votação que atendaria aos interesses egoístas de um malévolo empresário local de seu Estado — seria interessante, em alguma outra ocasião, explicitar os clichês anti-liberais de Capra, como em sua caricatura da figura do banqueiro em It’s a Wonderful Life e a do empresário malévolo que controla o financiamento local de campanhas para o Congresso e assim faz valer seus interesses mesquinhos, em Mr. Smith.

Mas qual a diferença, afinal, entre Clarissa Saunders, em filme de 1939, e a de Tiffany, em filme de 2012, para além do fato inicial de que a segunda nem sobrenome tem? Ora, o modelo de mulher que aparece neste filme da década de 30, pelo menos o da ligada à política, é muito mais forte e, digamos, feminista (e masculino) em comparação com o que se pode ver da personagem desordenada, caótica e carente do filme de 2012, embora esses três adjetivos pudessem ser aplicadas também a Clarissa. Quer dizer, vê-se uma profissão e uma ambição claras em Clarissa, para além do romantismo que se desenvolve no decorrer do filme. Claro, isso se explica também pelo gênero cinematográfico com que Capra está tentando lidar, o drama político. Já a Tiffany cabe apenas salvar Pat.

No fim, há algum mérito nos três filmes mencionados.

Particularmente, naquele que nos interessa no momento, Silver Linings Playbook (lembremo-nos do bobo e revelador título brasileiro, O Lado Bom da Vida), tem-se, do começo ao fim, um lema latino (“Excelsior”) a guiar o personagem principal: “sempre para frente”, “sempre mais”, “sempre melhor”, algo como “excele!”, abusando do imperativo de um verbo pouco usado, exceler; lema apenas tornado factível a partir do momento em que o neurótico obsessivo é obrigado a se comprometer com uma atividade (o preparo para o concurso de dança) e com alguém (a maluquinha carente Tiffany).

Por isso, o mérito do dramalhão estrelado por Jennifer Lawrence é mostrar como duas pessoas, com caso psiquiátrico grave, podem dar sentido mútuo e partilhado a suas vidas. Que a ação parta da protagonista, que ao mesmo tempo antagoniza e eleva o personagem masculino, talvez não deva ser visto como fim dos tempos, em que a masculinidade perdeu sua virilidade e sua força. Desde época imemorial há imbricação recíproca que torna completos e unos dois seres diversos e cheios de  incompletude. Ação condutora e paixão conduzida são apenas dois aspectos de uma mesma relação. E isso o filme prova com candor, por meio da personagem da belíssima e charmosa Jennifer Lawrence, que move a peça.

15 comentários em “A Arquitetura da Felicidade

  1. Agora, oficialmente, depois da saída do Martim, o site da Dicta deixará de estar entre as minhas visitas semanais.

    Virou, infelizmente, um blog sobre cinema – bastante superficial, diga-se – com alguns posts sobre temas outros, mas com uma característica em comum: são todos sobre assuntos que estão nas manchetes dos jornais.

    Infelizmente perdeu-se um bom site com posts mais profundos, frutos de alguma reflexão mais demorada (basta consultar o arquivo para perceber a diferença de uns tempos para cá).

    Uma pena. Uma pena.

    Oxalá isso não reflita na versão impressa. A ver…

  2. Caro Jorge, suspeito que você não tenha lido muito mais que as primeiras linhas do texto, dado o juízo que fez dele. Prestou atenção, por acaso, no último parágrafo, em que recorro de maneira ensaística a uma lógica metafísica categorial que se aplica a uma retórica dos afetos? Não atentou para as categorias de relação, ação, paixão, usadas numa tentativa de entender a lógica dos afetos que rege as relações humanas? E isso ainda na contraposição ética entre agente e paciente.

    Seu comentário foi muito pobre e mostrou sua planície intelectual. Sugiro que faça um desses cursos que ora pululam na internet, capacitando-o para ler mas também se tornar aprendiz de orador/sofista. Penso neste momento em duas opções: (a) o curso de latim de Rafael Falcón e/ou (b) o seminário de sofística de Olavo de Carvalho. De fato tudo que eles podem lhe oferecer é a subida ao estágio da mediocridade/medianidade sofística, que Platão relata no *Górgias* e no *Fedro* (em parte na figura do *logographos*, o escritor de discursos), mas ainda assim você terá saído um pouco do chão raso em que se encontra.

    Quanto à reflexão demorada, seu diagnóstico é simplesmente absurdo. Lembro que, por vezes, quanto maior o texto, maior o engodo. O que me faz pensar que dada a proporção de meu texto, ele só pode ser um engodo de pequena monta.

    Caro Moreira, sentenças longas, cheias de subordinações e coordenações, caíram em desuso há algum tempo; em minha defesa digo apenas que escrevo como me apraz, e que há alguma arte em usar vírgulas, arte que você ignora, pois seu comentário só seria gramatical se você o virgulasse corretamente: “Quantas vírgulas, meu caro”. Falta estudo.

  3. Adriano,
    vê-se que a escola “Olavo” de xingamento-argumentação está crescendo.

    Fiz uma simples constatação – que é possível de ser objetivamente constatada pelo número de posts dedicados ao cinema e a redução de posts dedicados a outros assuntos aqui no site da Dicta – e fui furiosamente atacado (“comentário pobre”, “planície intelectual”, “aprendiz de sofista”, “chão raso”, diagnóstico absurdo” – maioria dos quais puros ad hominem).

    Nada havia falado sobre o seu post – que, aliás, faz uma bela relação entre Silver Linings e F. Capra, mas deixa de fora 70 anos de ótimos filmes (W.Allen é o mais óbvio deles, com suas antíteses amorosas) que poderiam ser relacionados – e tomei xingamento atrás de paulada.

    Uma pena.

    Reitero: tomara que isso não se transfira para a Dicta de papel. Torçamos!

  4. Jorge, você tem toda razão quanto ao que diz sobre o recurso a *ad hominem*. Mas considero que se equivoca quanto ao resto. Joel, Julio, Ieda e Leandro fazem um belo trabalho. É isso.

    Abraço!

  5. O texto está muito melhor que o filme, que é fraquinho, fraquinho… Penso que essa energia poderia ser usada em um filme melhor, talvez algum ignorado do ano passado, quem sabe algum clássico que anda esquecido, ou ainda alguma obra que passa despercebida. Um filme melhor, no mínimo, a não ser que se esteja criticando um a um os filmes do Oscar (um critério meio duvidoso).

    Penso também que a severidade de Adriano não condiz com o comentário de Jorge, que afinal de contas, nem foi direcionado a ele (penso que esteja neste post apenas porque foi o último), e é uma crítica construtiva para o Joel. O ritmo de publicação e a variedade do blog de fato não é a mesma de alguns anos. Onde estão os textos sobre literatura, que nunca mais apareceram?

    Pra mim estava óbvio que as vírgulas no comentário de Moreira não foram colocadas a sério. Ou então seria preciso lançar umas gramáticas na cara de Joyce, aquela besta. Falta leveza.

  6. Falta educação sentimental também. Um comentariozinho o Adriano estoura e ainda fala mal de dois cursos diferentes, sem qualquer contexto…

    Deu a impressão de que ele tinha um rancor de longa data e resolveu aproveitar o espaço, que é mais respeitável que qualquer um no qual ele tenha figurado.

  7. Vocês têm toda razão, menos na parte de que faltou contexto. A caixa de comentários do último texto não é espaço de Ombudsman. E, bem, Jorge pareceu-me fazer uma crítica injusta, sem ter lido o texto; ou se o lera, lera mal. Daí a recomendação de dois cursos que o poderiam levar a uma leitura melhorzinha.

    Quanto à ideia de rancor, substitua-a pela de caracterização cultural do olavismo e de seus subprodutos, que acho que pode ser feita em analogia com a descrição do fenômeno sofístico, levada a cabo por Platão em diálogos como *Hípias Menor*, *Górgias*, *Fedro*, *Sofista*. Lembrando que há enorme confluência entre as figuras de professor e aluno de retórica e as de sofista e aprendizes. Mas deixo o tratamento a essa questão (e também a da poesia como *demegoria*) para frente. O próximo texto será sobre gurus pós-modernos.

    Quanto a Moreira, peço vênia. Faltou malícia.

    Por fim, tomando-se o texto como uma defesa do filme, espero que se o considere tão bom/ruim quanto o mesmo.

    É isso.

    Abraço!

  8. “Sugiro que faça um desses cursos que ora pululam na internet, capacitando-o para ler mas também se tornar aprendiz de orador/sofista. Penso neste momento em duas opções: (a) o curso de latim de Rafael Falcón e/ou (b) o seminário de sofística de Olavo de Carvalho.”

    Fenômeno curioso. Eu não sou leitor frequente aqui da Dicta & Contradicta, portanto pode ser impressão minha, mas quando ocorre de eu ler algum artigo da revista é quase certo encontrar algum comentário feito por esse Adriano Correa que faça referência ao Olavo de Carvalho.

    A mesma coisa, aliás, se repete do blogue Ad Hominem. O assunto do texto comentado é na verdade irrelevante: do carnaval à bomba atômica, da gripe aviária ao Oscar, o Correia consegue a mágica de colocar o nome do Olavo de Carvalho no meio da conversa.

    Num hilariante artigo escrito para a Taki’s Magazine, o Jim Goad descreveu o lamentável caso daquelas pessoas que, já dizia o Hilaire Belloc, tem apenas uma causa no cérebro: The Men Who Taste Jews in Their Sandwiches.

    O Correia é o homem que sente gosto de Olavo de Carvalho no seu sanduíche.

  9. Pedro, você me fez lembrar de uma das primeiras discussões filosóficas (se não a primeira) que tive com Joel, quando o conheci no fim de 2006: *ad hominem* pode ser em algum caso uma forma válida de argumento? Eu defendia que nunca. Já ele dizia que em algumas situações é válido. É provável que eu nunca mude de ideia quanto ao ponto, e é verdade que com frequência faço exceção à máxima que defendo.

    Tudo que posso dizer a você é que tenho sérias dúvidas quanto a transubstanciação e também quanto a psicanálise; mas é de espantar sua projeção que o faz consumir sanduíche de sofista velhaco.

  10. Como disse anteriormente, espero – profunda e sinceramente! – que esse tipo de discussão boba não se transfira à Dicta de papel. Blogs se prestam a isso; revistas que se querem culturais, não.

    Mas não deixa de ser digno de nota que o Adriano Correia tenha um advogado de defesa sempre a postos na caixa de comentários do blog.

  11. ‘A inteligência pode ser acusada de tudo, menos de santa’. Adriano, teu texto se exprime. Não seria como o da Ieda, do Julio ou whoever, ainda que a revista chamasse IDEM. Muito boa resposta as enguias: desmedida contra-dicta!

    Acuidade teórica pode ser a escolástica da crítica, como a ética da moral. Quem outro dia ouviu um jornalista dizendo-se religiosamente ético? Puro narcisismo, porque a Ieda não tem maior capital que nenhum dos citados. Vão ler as revistas da USP.

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