“Pela primeira vez na história musical, a música interroga-se a si própria sobre as razões de sua existência e sobre sua natureza… é uma música do conhecimento, com a mesma consciência trágica como Freud, Kafka, Musil”.
Hans Werner Henze
“Sou três vezes sem casa: um nativo da Boêmia na Áustria; um austríaco entre os alemães; um judeu através do mundo todo”.
Gustav Mahler
As sinfonias de Gustav Mahler exigem do ouvinte algo quase impossível nos dias de hoje: uma audição espiritual. Claro que isso já é evidente quando escutamos Bach, Mozart e Beethoven, mas Mahler representa uma exigência maior, não só porque utiliza-se dos procedimentos da paródia e do kitsch em sua obra (característica própria da modernidade), e sim porque ele abusa de toda uma tradição melódica e orquestral, chegando ao ponto de transformar a música em uma narrativa incomum – no caso, a narrativa de um espírito que luta, é derrotado, renasce, luta mais uma vez, até a morte calma e silenciosa. Pierre Boulez captou bem esse aspecto de romancista de Mahler, ao afirmar que sua música “descreve quase literalmente o mito da fênix”. “A visão e a técnica de Mahler possuem a dimensão épica da narrativa”, escreve Boulez, com sua habitual perspicácia. “Ele é como um romancista no metódo e no uso do material. Continuava a chamar suas peças de sinfonias; conservava a nomenclatura dos movimentos (adagio, scherzo, finale), embora seu número e ordem variassem de obra para obra. A intrusão ocasional de elementos vocais em diversos pontos da sinfonia e o emprego de efeitos teatrais, como a instalação de instrumentos fora do palco, foram duas das inovações de Mahler que destroem a noção de gêneros musicais distintos. Só o romancista trabalha de forma suficientemente elástica para fazer tais jogos com seus materiais”.
Esta implosão do gênero sinfônico e do ciclo de canções que Mahler fez é comparável, por exemplo, à revolução cromática de “A Paixão Segundo São Mateus”, de Bach, ou a Nona de Beethoven, em que o adágio (pelo menos na versão gravada por Sir Georg Solti) insinua ao ouvinte abismos metafísicos sequer imaginados. Mas há um método nesta loucura: a música de Mahler é também o sinal de um fim de um mundo, e o próprio Mahler – por ser um judeu exigente como maestro, e um compositor virtuoso com domínio total de suas ferramentas – se considerava como o exilado exemplar, o homem que, castigado por Deus a ser um banido na Terra, tinha sua obra como âncora para dar sentido à vida, paradoxalmente, ao mundo que o rejeitara.
Não é à toa que a personalidade de Mahler, marcada por tantas rejeições, perdas e lutas, terminaria numa auto-confiança gigantesca. “Meu tempo há de chegar!”, ele berrou uma vez, quase no final de sua vida. Era uma frase de efeito, e, como toda frase de efeito, só vale o momento em que foi dito, pois a obra de Mahler ultrapassa o meramente temporal. Não é o sucesso de uma época, a melodia da moda – é um som que inquieta, acalma, exalta, entristece. A música de Gustav Mahler provoca as mais exaltadas reações porque ninguém pode compreendê-la sem entender e sentir o que é o exílio, o que é a esperança, o que é a perda e o que é a vitória que se faz sobre esta perda. Enfim, quem não comprende Mahler, não compreende a vida em toda a sua intensidade e profundidade. A maior prova disso está na Sinfonia N°2, conhecida como Ressurreição, uma verdadeira jornada do espírito em busca da vida eterna, na esperança de derrotar sua maior inimiga: a morte.
Mahler era judeu, mas tinha uma atração estética incansável pela liturgia cristã, em especial a católica. Foi graças a ela – e ao poeta alemão Klopstock – que resolveu o problema estrutural que o atormentava durante a elaboração de sua segunda sinfonia. O ano era 1894, e Mahler estava na missa em homenagem ao maestro Hans von Bülow, que morrera no Cairo. Ambos haviam se desentendido por causa de uma obra de Mahler – a Totenfeier, que seria depois a abertura da segunda sinfonia. A admiração de Bülow por Mahler era apenas na sua figura de maestro, não como compositor. Atormentado pela amizade perdida, e obcecado pela sua nova obra, Mahler teve seu insight justamente na missa do falecido amigo, como explicou em uma carta no dia 17 de fevereiro de 1897:
“Procurei de fato em toda a literatura mundial, inclusive na Bíblia, para encontrar a palavra redentora… Foi então que Bülow morreu e assisti a um ofício comemorativo. O estado de espírito em que estava ali, pensando no defunto, correspondia exatamente ao da obra, que me preocupava permanentemente. Nesse momento preciso, o coro entoou o coral de Klopstock, ‘Ressurreiçao’! Fui fulminado como por um raio, tudo se tornara límpido, evidente. O criador vive à espera desse raio: é sua ‘Anunciação’. Só me restava transpor para a música aquela experiência. No entanto, se eu já não trouxesse essa obra dentro de mim, como teria podido vivê-la?”.
Sem dúvida, Mahler não só levava dentro de si a sua segunda sinfonia, como também as oito restantes que criaria nos cinquenta anos de vida, junto com três ciclos de canções. Nascido em 7 de julho de 1860, Gustav Mahler era um judeu na Boêmia, filho de Bernard Mahler e Marie Hermann, uma família marcada pela tragédia de ter seis filhos mortos prematuramente. Gustav já era um prodígio musical quando garoto, e seu pai tratou de incentivá-lo na carreira de maestro, inscrevendo-o no Gynasium de Praga, onde foi severamente maltratado: seus sapatos e suas roupas lhe foram tirados e outros de pior qualidade lhe foram entregues para usar, e sua alimentação beirava o regime de fome. “Aceitei tudo isso como coisa natural”, disse Mahler à sua futura esposa, Alma. Essa constante resignação frente à condição de exilado parece fazer parte de sua mystique, mas ela permeia sua obras do início ao fim. De fato, é o que marca, por exemplo, a sua primeira sinfonia, a Titã, aparentemente inspirada no romance de Jean Paul (fato nunca confirmado por Mahler). Se o ouvinte perceber que a música mahleriana é a biografia de um herói titânico que luta sem parar contra as forças do destino e, principalmente, busca vencer a morte pelo meio mais digno e dolorido possível, a unidade em suas sinfonias se apresenta como algo quase cristalino. O próprio Mahler fazia questão de ver este aspecto nas cartas que enviava aos amigos para explicar a segunda sinfonia, para ele uma continuação da Titã:
“Chamei o primeiro movimento de ‘Totenfeier’ (Dança da Morte). Se faz questão de saber por quê, trata-se do herói da minha Sinfonia em ré [a Titã] que levo ao túmulo… Paralelamente, coloca-se a questão central: Por que você viveu? Por que você sofreu? Tudo não é, afinal de contas, apenas uma enorme e trágica piada? Precisamos resolver essa questão de um modo ou de outro, para podermos continuar a viver, ou mesmo morrer! Quem já percebeu essa questão, mesmo que uma só vez, está em condições de responder a ela: dou essa resposta no último movimento…O segundo movimento, uma lembrança! Um raio de sol na vida desse herói… A vida torna a nos animar; pode acontecer que, em sua vã agitação, ela nos cause horror; é o caso, num salão de baile bem iluminado, das silhuetas móveis e dançantes que, ocultos na noite, observamos de longe sem ouvir a música! A vida aparece, então sem objeto, repugnante! Assim é o terceiro movimento! O que se segue, o senhor conhece”.
Mesmo com sua escrita hiperbólica – igual à sua orquestração bombástica e cheia de súbitos pontos de exclamação – , Mahler revela em sua obra uma intenção que só Beethoven queria de maneira tão autoconsciente: unir música e filosofia, tornando a sinfonia uma espécie de melodia do pensamento, explorando todas as suas fraturas, ambigüidades e suspiros de última hora. Esta desigualdade que a música tenta exprimir nos movimentos internos de uma alma, é exprimida através dos cinco movimentos da sinfonia No 2, cada uma com uma escala diferente:
1. Allegro moderato em dó menor (ex-Totenfeier);
2. Andante moderato em lá bemol;
3. Scherzo em dó menor, baseado nos Wunderhorn Lieder que Mahler havia composto nos tempos de estudante;
4.Urlicht (Luz original) em ré bemol, para contralto e orquestra, também inspirados nos Wunderhorn Lieder;
5.Finale, Ressurreição, terminando em mi bemol menor, para solistas, orquestra e coro.
Somados os cinco movimentos, são mais de 75 minutos de música densa, compacta e redentora. Mahler exige até demais do ouvinte: ninguém é obrigado ao ouvir a jornada de um espírito que, após a morte, busca sua renovação na vida eterna. Mas depois de escutar os primeiros compassos da Totenfeier, somos agarrados pelo pescoço e temos de ir com este herói até o fim, um fim que, por incrível que pareça, será um triunfo completo. A salvação da alma é algo que preocupa Mahler e, para ele, é um assunto essencial para a arte que todo o artista digno deveria se preocupar. Não é à toa que a segunda sinfonia está intimamente ligada à oitava sinfonia, também conhecida Sinfonia dos Mil, em que o seu final é o som da redenção em todo o seu esplendor. Mas se, na oitava, o que está em jogo é a alma de um Fausto em seu confronto com a Morte e o demônio, na segunda Mahler quer sentir o poder de ressuscitar depois que a luta o consome por inteiro. “Um grande exemplo para todas as pessoas criativas é Jacó”, afirmava ele em várias entrevistas para explicar sua obra, tão incompreendida aos seus contemporâneos, “que luta com Deus até que Ele o abençoe. Deus tampouco quer conceder-me Sua benção. Somente através das terríveis batalhas que tenho de travar para criar a minha música recebo finalmente a Sua benção”.
Nesse sentido, a música de Mahler é a testemunha (e o resultado) de um embate entre Deus e o homem, que tenta saborear um pouco da Graça que lhe é renegada o tempo todo. O resto da vida de Gustav Mahler tratou de demonstrar tal fatalidade com todas as letras: um casamento tumultuado (com direito a atendimento personalizado de Freud que, explicou, explicou, mas nunca resolveu o problema do casal, colocando toda a culpa em Mahler, como se ele fosse um maníaco compulsivo por perfeição – o que não era nenhuma novidade), a morte de uma filha, Marie, e a descoberta de uma doença rara no coração, que o mataria num sanatório em 1910. Num desses fenômenos de sincronicidade que nem Jung explica, Mahler antecipou as três tragédias que marcariam o fim de sua vida na sexta sinfonia, apelidada de “Trágica”, por ter um dos finais mais sombrios da música orquestral – três bumbos macabros que marcam a derrota do herói mahleriano.
Ainda assim, ele volta – de novo! Na sétima sinfonia e depois na oitava, Mahler reencontra aquilo que já sentira na segunda sinfonia – a emoção indecifrável de vencer a morte com a alma dilacerada, mas intacta. Dessa vez, contudo, é um Mahler diferente, pois a morte suspira em sua boca. A vitória definitiva da redenção da alma com seu Veni Creator Spiritus!, mostra um homem com total domínio de seus meios artísticos, um homem que dominou a sua arte frente ao Deus que o tentava. A partir de agora, o que era exílio se transforma em adeus, e o que era esperança se torna a eternidade – duas realidades que se amalgamam na Das Lied Von Der Erde (A Canção da Terra), o ciclo de canções que nem Schubert sonhou fazer; na nona sinfonia, em que a eternidade é conquistada a ferro e fogo, e a décima, inacabada, mas com um adágio tão desesperador, tão mortífero, que não resta nada mais a fazer senão aceitar o fim tal como ele é.
Contudo, é provável que o coração de Mahler estivesse no final de Ressurreição, com seu coro silencioso que sobe aos poucos até a orquestra tomar conta com suas notas épicas, o órgão ocupar as frestas da melodia para não deixar a harmonia fugir de sua intenção redentora, e então, um súbito silêncio, como se a derrota fosse a única verdade absoluta, ecoando os versos de Klopstock – “Oh! acredita, meu coração… não nasceste em vão, não sofreste em vão…”. Mas é apenas um curto repouso antes da ressurreição definitiva – marcada por um espantoso soco orquestral em mi bemol no melhor estilo de Mahler: majestoso, apoteótico, a orquestra e o coro captando as alturas que só a luta e a guerra da vida do espírito nos dão de presente.
Pois, para Mahler, isso era a Graça de Deus: a arte em sua plenitude máxima, com toda a dignidade do sofrimento que lhe foi imposta para confirmar tal obra. Um verdadeiro artista nunca foge da dor: ele a trata como uma boa companheira. A Morte só é vencida depois que o homem a respeita por seus meios pouco comuns, em que ele se verga a um poder maior, um poder que ele sabe existir, mas não pode compreender. Este saber não compreendido é o mistério da Ressurreição, algo que, na verdade, realizamos todo o dia, após acordar e ver o primeiro raio de luz. O horror continua a nos perseguir, mas quem disse que ele é eterno? Para muitas pessoas, as sombras podem até ser confortáveis. Para outras que escolheram o desafio de fazer de cada dia uma nova Páscoa, a Ressurreição é a chaga que arde no peito, que faz o sangue ser expelido a cada minuto, mas é a que mantém o espírito afiado, preparado para a morte que não mata, aquela que, através da nossa aparente derrota, está o único triunfo.
Um texto de música que não é sobre Jim Morrinson e congêneres! Muito melhor.
Algumas coisas que não entendi:
“Era uma frase de efeito, e, como toda frase de efeito, só vale o momento em que foi dito, pois a obra de Mahler ultrapassa o meramente temporal.”
“a emoção indecifrável de vencer a morte com a alma dilacerada, mas intacta.” (Está dilacerada ou intacta?)
O jornalismo cultural (com todo o respeito) é danado (!) para usar Deus como metáfora. Pegam e empurram-No para todo lado como quem move um móvel numa sala! Tudo bem que a analogia foi apresentada pelo próprio Mahler, que punha seu artesanato musical brilhante para ilustrar sua busca espiritual (e portanto a necessidade humana de rendenção), mas vejo nisso também o endeusamento do homem. Afinal, o texto dá a entender que Mahler buscava salvação fazendo música! Faltou dizer que música não é garantia de redenção. Também não condena necessariamente ninguém, é verdade. Mas atos de orgulho, sim; falta de fé, sim.
Nós é que somos a sombra de uma imagem distante e borrada do Senhor.
Pingback: Tweets that mention A derrota da morte | Dicta & Contradicta -- Topsy.com
Helder,
Como sempre você é ótimo, mas creio que se equivocou na crítica do excelente artigo, que para mim só peca pelo tamanho excessivo (frases contraditórias, como as apontadas por você, poderiam ser cortadas). Apesar de gostar de música clássica, entendo pouco da sua técnica, mas procuro saber da vida dos grandes compositores para entender melhor sua música. É certo que ela não é garantia de redenção, mas ajuda a alcançá-la; tanto que a Igreja sempre usou o que havia de melhor nas suas cerimônias, no que foi seguida pelos protestantes. Pelo pouco que sei de Mahler, não acho que fosse orgulhoso nem falto de fé. Ao contrário. Teve vida infeliz e a sublimou com sua música, o que é válido, fazendo-a um tremendo instrumento de fé. Quem era orgulhosa, invejosa e competitiva era a sua infiel esposa, que arruinou ainda mais a vida infeliz do marido. Ela não suportava a superioridade dele e na sua arrogância se julgava melhor compositora do que ele, insultando-o e humilhando-o. Viúva, tentou carreira musical, mas fracassou. Seu único sucesso, foi destruir a curta vida de Mahler, que só chegou aos 50 anos porque, ao contrário do que você sugeriu, era humilde e tinha fé. Grande abraço!
Quem chegou até aqui talvez já saiba, mas vá lá: a Diapason de dezembro passado traz o Mahler na capa (2011 marca o centenário do homem). Entre várias coisas bacanas, recorda as suas afinidades com Alban Berg e propõe uma discografia.
Esse texto, especialmente quando diz que “As sinfonias de Gustav Mahler exigem do ouvinte algo quase impossível nos dias de hoje: uma audição espiritual”, me lembrou muitíssimo o grande ponto de um texto do Fernando Randau no Euterpe: http://euterpe.blog.br/critica/terceira-sinfonia-de-mahler-pela-osesp-ou-por-que-amamos-mahler.
Sobre os comentários, separar a arte da vida – como o Helder reclama que deve ser feito – faz parecer lhe estar faltando uma dimensão muito importante, mais real e mais íntima do que é arte afinal. Também o texto dizer da vida ser dilacerada e a alma sair intacta não soa contraditório pra mim. E por fim, o tamanho do texto também não me parece excessivo.
Abraços!
Caro Virgílio,
Muito bom saber que Mahler tinha Fé e era humilde! É que o termo “redenção” aqui parece que vem como um termo terapêutico mais que propriamente religioso (não se contrapõem, evidentemente…). De fato, já não sei se captei perfeitamente a analogia.
É possível que tenha a ver menos com meu relacionamento com a arte que meu entendimento sobre a redenção, Leonardo. Abraços, amigos.
Achei ótimas as considerações do Leonardo, tanto pela indicação do outro texto quanto pela crítica aos outros comentários.
Achei o texto muito bem escrito e com um tamanho muito justo, sem excessos. Prendeu muito o meu interesse!
Outra consideração importante: difícil dizer que Mahler foi vítima de sua mulher da forma como Virgílio disse. Como sabemos, Mahler não era tão humilde assim – é conhecido como um dos grandes maestros tiranos da história. E se ele foi vítima de sua mulher, grande parte me parece ter sido por sua própria culpa – a obsessão vinha principalmente por parte dele e não dela! Ele também soube reprimí-la bastante.