Há mesmo distinção entre música clássica e música contemporânea? André Egg realiza o feito no Amalgama, um pouco para desdobrar seu ponto de vista, aquele que foi comentado de passagem em um de meus posts anteriores, sobre – quem mais! – André Rieu; realiza, ia dizendo, o feito: distingue música clássica (entendida como música do passado) da música contemporânea, aquela de nosso tempo. Evidentemente o termo “contemporâneo” assume uma prerrogativa estranhíssima, posto que dito não apenas da produção feita pelo nosso tempo – o que é normal, em termos estilísticos, embora equivocado em termos conceituais, como vou demonstrar – mas, nas palavras do autor “música para o nosso tempo”.
Parece-me uma visão equivocada sobre a idéia de produção contemporânea, e equivocada por diversos fatores – o principal deles é forçar uma barra enorme ao mesclar conceitos distintos, e considerar para o nosso tempo aquele composta pelo nosso tempo. Não gostaria de dizer isso, principalmente por saber que Egg é professor de história da música, mas me vejo obrigado a fazê-lo: a morte não tira a pertinência ou atualidade das ideias dos mortos; aquilo produzido pelos nossos antepassados não morre necessariamente com eles. É nisso que se baseia a própria ideia de cultura!
O mais curioso é que para justificar o que chamo de ideologia museológica – que Egg, em termo evidentemente preconceituoso, chama de “doença do repertório” – o autor parta exatamente de referências que nos deixam a ideia da novidade como elemento positivo.
A ideia de que produção musical vive em contínuo progresso, de que a música é boa porque nova (que ao fim e ao cabo é o que justifica todo o ensaio de Egg), ou é nova necessariamente por contar novidades, quando não uma proposta revolucionárias, é difundida pelos adeptos da Neudeutsche Schule – de Liszt, Bulow e Wagner (quem mais escreveria algo chamado “A obra de arte do futuro”, para defender a música feita… por si mesmo!). Fica, neste contexto, muito pouco usual, para dizer o mínimo, sua assertiva:
Crentes em teses de evolução contínua da linguagem rumo a um aumento de elementos harmônicos, formais e timbrísticos – corrente da qual Richard Wagner foi talvez o principal representante –, o principal efeito que provocaram foi o surgimento do maestro e o ocaso do compositor.
Deus meu, não! O maior efeito que provocaram foi dar às gerações que lhes seguiram a ideia, que se transformou em uma espécie de sensibilidade curiosa, de que, para ser relevante, a obra deve inovar. O artigo de Egg estaria muito bem se publicado entre os tantos jornais de música revolucionária que pulularam na Alemanha nas décadas de 70 e 80 do século XIX.
Estranho que Egg não reconheça a filiação, e portanto é normal que não mencione que será a reação a esses artistas do progresso que permitirá o enraizamento da cultura museológica (Dr. Hanslick, e tutti quanti, prego). São os ditos “conservadores” que semearão a reação aos progressistas da música, que em finais da década de 60 eram os principais atores da política musical na Europa.
Seria já bastante coisa, mas Egg ainda apresenta um argumento que, acredito, por falta de devida contextualização, é flagrantemente falacioso. Dizer que Bach criava a cada semana uma nova obra, como se isso fosse prova de que ele era um criador de uma música permanentemente contemporânea, é um anacronismo abismal. Pois Bach compunha a partir de um evidente senso communis, ou seja, a premissa de reconhecimento das referências musicais a que recorria, por parte do público. Bach – e boa parte dos compositores até Beethoven – não tinha qualquer juízo positivo pelo novo em si. Aliás, a maior parte de sua obra era reconhecida por seus contemporâneos como antiquada! Poderíamos até tentar dizer – e alguns críticos o dizem com respeito a um de seus contemporâneos ilustres, Vivaldi – que Bach não faz nada novo, mas cria a mesma coisa de diversas maneiras. Por isso, cada “nova” cantata é por vezes a reorganização de material anteriormente utilizado, a maior delas adaptação do antifonário luterano. Se isso é o sintoma de novidade, então qual o problema de reapresentar o pobre Mozart?
A dita “doença do repertório” não nasce com a geração de Mendelsohn mas, falando no âmbito estrito do Clássico, com Lully. Com Mendelsohn nasce outra coisa, o conceito de um cânone universal (e não regional) e da música como objeto de culto. Mas eu escrevi “no âmbito do Clássico”: sim, pois fora dele, na tradição oral da música do folclore, e na tradição popular, da cultura de massa, o cultivo do repertório é tudo que há. E é assim pois é o único ponto de contato de uma geração com outra. No ambiente comunitário e pré-letrado, e no ambiente desta “oralidade secundária” em que vivemos, encontramos o mais arraigado senso de conservadorismo – não à toa, todas as bandas de rock reconhecem uma filiação da qual não se envergonham.
Sobretudo, há, em todo argumento de Egg, um problema lógico-conceitual fundamental. Pois o contemporâneo não é aquilo que é inventado em nossos dias. Não há nada que nos permita distinguir, neste sentido, aquilo que é feito a partir da cachola de um artista daquilo que é feito a partir das mãos de outro, um intérprete. Quando Nelson Freire toca Chopin, ele o faz forçosamente contemporâneo; não nos leva à Paris do século XIX mas mostra o que, de Paris do século XIX, há em comum São Paulo ou Curitiba do século XXI.
Esta não deixa de ser uma condição trágica da performance musical, sua permanente contemporaneidade. Que um professor de história da música não se dê conta disso é sintoma inequívoco de um tipo de idealismo arraigado com que tratamos a música de concerto.
O que acontece, e isso é uma enormidade, é que por vezes, na performance deste repertório criado no passado, falta outra coisa que é pertinência ou vitalidade. Antes de acusar Chopin, devemos acusar o intérprete. Por quê? Sobretudo, decoro: respeitar os mais velhos é uma condição de civilidade. Mas é claro, há também envolvida uma questão de princípios, pois o intérprete é que propõe tocar o que toca e, entre tantas coisas à sua disposição, sua responsabilidade começa com a curadoria daquilo que executa, e segue até seu compromisso último, que é despertar no público algo que os permita admirar. O fato de ouvirmos, rotineiramente, apenas a dissecação de cadáveres em público não é culpa do cadáver.
Muitos preferem o Mozart adocicado de André Rieu àquele de William Christie, não por um ser mais ou menos inteligente, bem informado ou sofisticado que o outro, mas por ser este último um chato. Além de tudo, há cadáveres – e não à toa, terminei com uma frase que considero maravilhosa, do querido Millôr Fernandes – que podem ser encontrados no repertório de compositores vivíssimos; uma curiosa espécie de geriatras natos.
Brilhante!
Só para esclarecer um detalhe:
Quando coloco de forma positiva a produção contínua de Bach, vai no mesmo sentido de quando critico a ideia de que seja possível continuar inovando indefinidamente ou criando obras-primas a cada trabalho.
O que defendo é precisamento o “senso comunis” como possibilidade de resgate do sentido da música contemporânea.
Perceba que o meu comentário sobre Wagner e amigos é justamente uma crítica à ideia de uma complexidade crescente – uma notável trava à produção contemporânea.
É um grande peso quando se tem que compor tendo sempre em mente a obrigação de conhecer e superar toda a tradição do passado. É esse o problema com a “doença do repertório”.
No mais, o que você diz não contraria nada do que penso ou afirmo. É óbvio que o repertório clássico repetido “ad infinitum” é um fenômeno contemporâneo tanto quanto (ou até mais que) a composição atual.
Abraço,