Sentado no puff cor-de-rosa da sala com uma latinha de cerveja na mão, sua mente fervilhava enquanto lembrava os acontecimentos da manhã e dos quais agora, uma da tarde, acabara de voltar. Seiscentas bicicletas na avenida, as buzinas furiosas em volta. Vida! Estava elétrico. Levantou-se, olhou a estante de livros, desistiu; abriu a porta de vidro da varanda, fazendo soar os bambus orientais pendurados no teto e olhou os transeuntes três andares abaixo, na rua. Uns indo almoçar, outro levava um cachorro; alguns carros. Sob a visão cotidiana, Fábio enxergou todo um sistema do mundo; uma malha de relações e intenções – de sementes e semeadores – que ele vislumbrara há pouco, na décima sexta edição do ato ciclístico Bike Sem Fronteiras. Teve vontade de gritar e partilhar com todos aquilo que lhe enchia o peito.
Em um momento da manifestação, um motorista hostil, que passava ao lado, chamou-lhes de “pequenos ditadores”. Fábio respondeu no ato: “A gente não quer mandar em ninguém! Queremos nosso espaço, nossa vida, o fim dessa violência! A gente não é contra ninguém, cara; a gente é a favor de todo mundo! Nossa luta é sua também! Desculpa por atrapalhar sua vida, não é intenção; é que a gente precisa do nosso espaço.” O motorista, meio desconcertado, nada respondeu; acalmara-se. Teria seu coração sido tocado? E foi então que, enquanto pedalava, Fábio teve o estalo: se cada motorista dessa cidade fosse tocado dessa forma, se uma pequena inquietação fosse plantada em cada peito, a luta já estaria ganha. Os ciclistas não eram contra ninguém. Nesse sistema que vive do conflito, produzindo a violência como subproduto, propor a coexistência, a simbiose, é revolucionário. Os motoristas não eram maus; não eram inimigos pessoais. Mas o carro, a própria estrutura funcional da máquina de combustão, inseria-os num sistema de antagonismo. Era preciso plantar sementes nos corações; sementes de respeito, tão raras no mundo do transporte automotivo.
A abordagem agressiva de alguns colegas da bicicletada nada mais era do que transportar para o mundo da bicicleta o espírito do automóvel. Era preciso fazer o contrário: trazer o modo de vida da bicicleta aos carros. Esse curso de pensamento deve ter durado alguns segundos. Quando deu por si, alguns colegas, pedalando a seu lado, parabenizavam-no pela fala ao motorista. “Mandou muito, Fabinho! Irado!”.
Agora a mente não parava de reformular e desenvolver o insight. O contato pessoal entre dois estranhos, que o sistema queria que se odiassem, mas que tiveram, por um momento, um entendimento comum do qual saíram transformados. O motorista, com uma pequena bicicleta em seu coração, e ele, Fábio, com a euforia da partilha. Havia uma semente revolucionária nisso, vinda do mais profundo de sua alma, daquilo que ele podia chamar apenas de “coração”, e que podia ser semeada em todos os corações. Uma perspectiva, sem dúvida, muito superior à mera briga contra os carros que alguns preconizavam. Havia um caminho novo aí, uma nova filosofia, um novo paradigma da mobilidade e, enfim, da civilização.
Andou até a porta da sala e abriu-a – quem sabe sairia para almoçar, encontrar algum conhecido no bar da rua, o Zezé, que funcionava de dia como quilão vegetariano. Recuou da ideia, sentindo que precisava se acalmar um pouco antes de sair; não aguentaria ficar meia-hora numa mesa de restaurante. Checaria o email antes. Deixou a porta encostada e sentou-se ao computador. Um cigarro, talvez? Acendeu um e deu algumas tragadas, mas pareceu-lhe devagar demais e então o apagou pela metade no cinzeiro. A nicotina não restauraria sua calma. Um baseado, talvez? Mas estava sem. Sobrara algum no quarto do André?
André era seu ex-colega de apartamento que recentemente se mudara, juntando-se com a namorada, mas cujos pertences ainda estavam pela casa. Foi até o quarto do amigo, abriu o criado-mudo; nada. Incapaz de ficar parado, voltou para a sala e se sentou-se à escrivaninha novamente; novas ideias borbulhavam. E se ele fizesse um viral? Qual seria o slogan? “Amar Sem Limites”? Piegas demais. “A Favor de Todos, Contra Ninguém” soava melhor, sem falar que se encaixava perfeitamente com seu vegetarianismo, cujo engajamento era, afinal, outra face de uma mesma moeda: de uma mesma filosofia de ser no mundo. Como encaixar a bicicleta na ideia? “Pedalosofia”? “Pedalogia”? “Peda… Pedo…” Riu-se em silêncio; tosco demais!
Sentado à escrivaninha de bambu no meio da sala e com o laptop já aberto há alguns minutos, checou o email; nada. Olhou fixamente para a tela, para a caixa de mensagens já lidas. Algo que estivera submerso chegava aos poucos à superfície de sua consciência. A quem ele estava enganando? Sabia perfeitamente como aliviar aquela tensão e retornar à paz de espírito. O remédio era infalível, assim como a certeza com que ele sempre voltava ao mesmo ritual. Não era o cigarro, nem a maconha, nem a internet. Fechou o navegador e abriu a pasta de documentos. (Neste mesmo momento, um carro estacionava um quarteirão abaixo em sua rua, e dele descia um homem com destino certo: aquele mesmo apartamento.)
Reiniciava um velho itinerário secreto pelas pastas e subpastas. A um passo de dar o primeiro clique, e assim botar em andamento algo que ele sabia que não conseguiria parar, lembrou-se de que, uma vez acabado o processo, sentiria uma enorme vergonha de si e de tudo aquilo. Por outro lado, como negar o prazer que se lhe oferecia tão facilmente? Uma última vez não faria mal. Clicar ou não clicar? Nessas horas, a única coisa que funcionava era imaginar-se num túnel; uma locomotiva com trajeto fixo que segue sempre em frente sem ver nada a seu redor. Já não era ele quem decidia; era o trem que seguia seu caminho.
Abriu a pasta Meus Projetos. Dentro dessa pasta, uma subdivisão em anos; 2007 constava ali, embora ele não tivesse feito projeto algum naquele ano. Projetos 2007 > Aspectos Técnicos > Detalhes de Produção > Financiamento e Demonstrativos > Dados para Cálculo Tributário. Haveria nome menos propenso a atrair o interesse de um eventual intruso? Ao lado de algumas planilhas com números inventados, uma última pasta: Retificação dos Dados; para essa, exigia-se senha.
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Desse momento em diante, Fábio estava em um mundo particular, no qual não só ninguém jamais poderia entrar, como cuja existência jamais deveria ser suposta. O cicloativismo, o vegetarianismo e o apoio à causa verde, tão caros a seu coração, mostrava-os a quem quisesse ver: lá estavam a composteira na área de serviço, a bicicleta ao lado da estante de livros, as lâmpadas econômicas no teto, os pôsteres do PV e dos direitos animais. Já o amor pelos meninos era só dele.
Dentro da última pasta, uma lista de filmes e fotos sem título, que Fábio reconhecia pelo número. Olhou brevemente o cardápio secreto em sua tela enquanto colocava os fones de ouvidos. Passou-lhe pela cabeça que não precisava fazer aquilo; ainda não tinha dado o passo final. Mas agora era inútil. Ali, com a pasta aberta; se chegara até ali, por que não dar só mais um clique? Qual a relevância ética de um clique?
Clicou. Mov012 era um vídeo caseiro, de algum país cuja língua ele não identificava; russo talvez? Na cena inicial, um menino pedalava uma bicicletinha velha em círculos dentro de um quintal minúsculo. Os desdobramentos que despertavam o interesse de Fábio vinham dos pedidos do diretor que, por trás da câmera, guiava as ações do menino, até o momento em que ele próprio entrava em cena. Isso para não falar no rosto do menino: tão inocente, tão indefeso, tão… puro.
Absorto nas imagens e nos sons que saíam dos fones, Fábio nem notou o barulho do elevador que abria em seu andar. Também não ouviu os passos e nem as batidas na porta. Só reparou que alguém chegava quando viu, com o canto dos olhos, que ela se abria. Que falha: esquecera-a encostada! E agora o André, que tinha dito que passaria lá para pegar alguns livros seus, entrava sem grandes cerimônias no apartamento e já o vira ao laptop, que ficava, não por acidente, de costas para a porta, mostrando a quem entrava na sala apenas uma simpática maçã branca.
Fechar. Fechar. Fechar. Por mais que clicasse no X, a janela não respondia. A idade do computador, a atualização do antivírus que corria em segundo plano, os programas secretos acumulados de downloads em partes não muito confiáveis da rede; por que tudo junto bem naquele momento? Se ao menos tivesse comprado um computador novo como a mãe sugerira! André encostou a porta atrás de si. Fechar fechar fechar fechar fechar. O botão sequer acusava os cliques. André, com um sorriso, já se aproximava da escrivaninha. Fábio fingia não vê-lo e, de rosto aparentemente sereno, clicava furiosamente. O cursor se transformou em ampulheta; não havia mais nada a fazer. O amigo deu a volta na mesa e colocou a mão em seu ombro: “E aí, cara, beleza?”.
“Opa, e aí, André? Chegou cedo!” A tela mostrava apenas uma pasta aberta, e Fábio fazia o melhor para disfarçar a respiração ofegante e o coração em disparada.
“Trabalhando na filmagem do Bike?”
“Não. Tava só organizando uns trabalhos antigos. Deixa pra depois.” Tirou os fones e levantou-se para abraçar o amigo. “O que que você veio pegar mesmo?”
“Meus livros de empreendedorismo online. O pessoal lá da Integra pediu pra dar uma olhada.” – Integra era a pequena empresa de startups digitais em que André trabalhava. E foi onde, incidentalmente, ele conhecera a Milena, com quem tinha se mudado, pondo um fim ao arranjo que funcionara tão bem por oito anos. Embora se sentisse mais seguro morando sozinho, Fábio sentia falta de morar com André, ainda que, com o trabalho e o namoro sério nos últimos meses, mesmo enquanto ainda moravam formalmente juntos, ele já não estivesse tão disponível assim.
“Tão no seu armário.”
“Vou lá pegar.” E entrou pelo corredor.
Enquanto André pegava os livros, Fábio, já mais calmo depois do aperto, lembrou-se da aventura e das ideias da manhã.
“Cara, você tinha que ter ido hoje lá no Bike Sem Fronteiras. Foi irado! Tô com umas ideias novas para o movimento. Queria te contar. Tava pensando em almoçar no Zezé. Vamo?”
“Pô, eu até que queria!” disse André, que já voltava do quarto com os volumes em mãos. “Só que eu falei pra Mi que ia almoçar em casa. Só vim dar uma passada rápida mesmo. Fica pra próxima!” Mais um desapontamento. Tudo bem, a vida é assim mesmo, pensou Fábio, que o acompanhava até a porta. Foi aí que André notou: “Nossa, Fabinho, você tá suado, hein? E pálido! Tem certeza que tá tudo bem?”.
“Não é nada, só fome. Preciso comer; cansei pra caramba. Bom, então beleza! A gente se fala outro dia!” Disse sem deixar transparecer nenhum tipo de carência ou necessidade pelo amigo que aos poucos se afastava de sua vida.
“Escuta,” emendou André, como se se lembrasse no último minuto; “esse sábado tem a festa do Cauê lá na casa da Tina. Ela falou pra você ir também”.
“Nossa, com certeza! Como tá o Cauê? Faz tempo que eu vi ele; quando foi mesmo?” –lembrava-se perfeitamente – “… Acho que foi em 2009, né? No Corpus Christi na casa do seu pai em Boiçucanga. Já deve estar enorme!”.
“Pois é, ele tá fazendo doze anos. Mas a Tina tá preocupada. Tá indo super mal na escola, não tem mais nenhum amigo, acho que não tá comendo direito. Parece que é depressão, e faz um tempo já. Ela pôs ele no psicólogo. Ele vai gostar se você aparecer. Lembra quando você deu aquela bicicletinha pra ele? Ele te idolatra!”
“Claro, vou dar uma passada sim” – Disse, já imaginando a desculpa que daria para não aparecer no dia. Em algumas situações era imperativo não aparecer.
Apertaram as mãos, bateram de leve um no ombro do outro, trocaram uma despedida de sorrisos inseguros e André desceu pela escada do prédio.
Livros ao lado, cinto colocado, deu a partida e seguiu para casa. Todas as vezes em que voltara ao apartamento nesse mês saía sentindo-se meio estranho. Gostava de rever o amigo, mas algo o deixava desconfortável com a situação. Ele, André, com trabalho, com a Mi, crescendo, fazendo planos – e que planos! –, e o Fabinho estagnado. Ele não perguntava muito, mas era claro que o esquema de produtor de vídeos freelance não tinha decolado. O Fábio devia ainda viver da mesada dos pais. Também fazia anos que ele terminara com a Carol, sua última namorada; um término triste, amargo, sem briga e sem nem uma ligação ou mensagem depois. Alguma coisa não dera certo, e André tinha certeza que o problema viera do Fabinho. Havia algo nele que ele não conseguia decifrar. Como pode, isso? Havia uma incógnita no mais íntimo de seu melhor amigo que ele não conseguia decifrar; uma certa discrição, uma distância que escondia alguma coisa. É claro que isso acabava pesando na amizade deles.
Por outro lado, tinha de admiti-lo, o Fabinho mantinha vivo algo que ele próprio estava deixando para trás, não sem algum arrependimento: o sonho de transformar o mundo. Hoje em dia, quando André não estava na Integra, queria estar junto da Milena, ou talvez com alguns poucos amigos bebendo cerveja. Shows, atos, manifestações; tudo aquilo se tornara menos importante. Nos primeiros Bike Sem Fronteiras eles iam juntos, e André era quem demonstrava mais entusiasmo. Hoje em dia, apesar de ainda acreditar na causa, não ia há várias edições. E aqui estava, para pegar um mero livro, de carro. Havia uma necessidade da vida que o forçava, aos poucos, a se conformar. O pior é que ele não se sentia mal. E não era esse o tipo de coisa que deveria fazê-lo se sentir mal?
Voltava para casa pensando no que o futuro lhe reservaria. A Milena vinha dando dicas claras de que gostaria de ter um filho. Não já, é certo, mas quem sabe daqui a um ou dois anos? Quando, aos vinte e poucos, ele projetara seu futuro, tinha aspirações de transformação social para as quais ele agora simplesmente não tinha tempo; um filho era também uma transformação, mas numa direção bem diferente. Quanto aos velhos sonhos, pelo menos por enquanto a coleta seletiva na Integra teria que bastar.
Nisso, virou com seu carro à direita numa grande avenida, engatou a terceira e, pisando um pouco mais fundo, deixou para trás esses receios tolos. O dia estava ensolarado e convidava ao otimismo. A vida seguia, e ele agora vivia no mundo real, sem tolices de criança. Estava feliz, contudo, sabendo que, ainda que tivesse abandonado certos sonhos, Fabinho estava lá, no apartamento, no Bike Sem Fronteiras, nas oficinas de permacultura, no trabalho voluntário na creche; mantendo a chama acesa. Apesar de seus defeitos, era um exemplo inspirador: alguém que mantinha vivas as aspirações da verdadeira juventude, o sonho de um mundo possível. Quem sabe, quando – e se – ele, André, tivesse um filho, o Fábio não toparia ser o padrinho? E cara, ele daria um ótimo padrinho!
Só tem um errinho aí, Joel. Em mac não tem isso de atualização de anti-vírus. =P
Pois é, me alertaram disso. Inicialmente disseram que no Mac nem tinha antivírus. Fui pesquisar e vi que tem sim: http://antivirus.about.com/od/macintoshresource/tp/macvirusfaqs.htm
Ainda assim, pode ser que nenhum desses seja do tipo que se atualiza sozinho? (no link o autor menciona a necessidade de patches nos antivirus de Mac também; suponho que isso talvez se dê via atualização automática que nem no windows?)
Enfim, de fato esse detalhe não me ocorreu quando adicionei a referência à maçã.
É assim: até existe vírus pra mac, mas a ameaça é tão pífia que dá pra viver muito bem sem nunca precisar de antivírus. E quando você tem antivírus, ele não fica rodando em segundo plano o tempo todo. Você atualiza ele em menos de um minuto, scaneia o hd rapidinho e pronto. Uma coisa mais verossímil de deixar o mac lerdo: quinhentas abas abertas, trocentos downloads, etc.. Mas não antivírus.
Com ou sem vírus, eu gostei do conto. Pelo menos como eu o entendi, dava um belo curta. Desde que a linguagem fílmica desse conta da subjetividade enigmática de Fábio. É paternal ou é pedófilo? Qual a fronteira entre essas duas circunstancias da alma humana?
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