Como disse na semana passada, eu entrei na história dessas últimas aulas para ajudar o Bruno nas questões práticas. Normalmente, esta seria a função mais simples. Mas quando a “questão prática” envolvia o Bruno Tolentino, as tarefas mais simples ganhavam a dimensão de uma maratona. Ele era incrível justamente por isto; era capaz de recitar trechos e trechos e Dante com uma pronúncia perfeitamente florentina, mas era incapaz de organizar o quer que fosse.
Enfim, o primeiro “desafio” foi a ementa do curso. Em qualquer situação normal esta seria uma das partes mais fáceis, afinal o professor e o diretor da Instituição que promoveria o curso já haviam acertado todos os detalhes. Faltava apenas uma brevíssima descrição dos temas que seriam abordados. O problema foi justamente a “brevíssima” da frase acima. Como o responsável pela parte acadêmica era o Marcelo Consentino, coube a ele elaborar a ementa junto com o Tolentino. O curso quase não saiu por conta disso! O Marcelo ia à casa do Bruno e cinco horas depois saia de lá sabendo tudo sobre, digamos, Conrad, mas sem nenhum parágrado descritivo. A história foi assim até que um dia – acho eu – liguei ao Marcelo e disse algo assim: “Inventa uma ementa. Qualquer ementa! Não vai fazer difenrença nenhuma, o Bruno não vai seguir de qualquer jeito!”
Mas o problema não acabou aí. Entre a finalização da ementa e o começo do curso eu pensei em cancelar tudo mais de uma vez. Todo mundo sabia o tamanho do esforço que seria para o Bruno falar por duas horas, se locomover à noite etc. Mas não desistimos porque também era muito claro que ele precisava disso; que se não pudesse falar, não valeria a pena fazer mais nada.
O momento mais significativo, no entanto, foi o início do curso. Até o dia da primeira aula havia cinco inscritos. Ninguém sabia o que fazer: normalmente o Bruno falaria para cinco pessoas sem nenhum problema, mas todo aquele esforço para cinco pessoas? Não seria mais fácil levar essas pessoas até a casa onde ele morava? Sem contar a frustração de decidir pronunciar as suas últimas palavras e ficar sabendo que apenas cinco pessoas se interessaram. Mas seguimos em frente, o Bruno fazendo piada como sempre, e qual não foi a nossa surpresa ao chegarmos para a aula e encontrarmos algo em torno de 30 alunos no local. Foi um problema, mas daquele tipo de problema que todos querem ter, com os alunos sentados no chão (já que havíam separado uma sala para cinco pessoas). E a felicidade do Bruno em falar para 30 pessoas era algo indescritível.
Até hoje este é o fato externo que mais me marcou ao longo de todas as três aulas. Já tirei muitas conclusões dele, mas não vou cansar vocês com elas. Cada um que tire as suas…
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Em relação à edição do texto, agora vocês vão começar a ter noção das minhas escolhas. Peço que as critiquem! Uma das partes mais delicadas foi a VI parte do texto impresso. O começo dela está no áudio abaixo. Precisei mudar a ordem dos parágrafos, excluir várias repetições etc.
Como vai ficar claro com o áudio, a primeira aula foi ficando gradativamente mais confusa, mas também gradativamente mais impressionante. Isso foi uma grande dificuldade, porque o raciocínio não era linear, mas era também a descrição mais vital que eu já ouvi o Bruno pronunciar sobre o “mundo como Idéia”. Decidi excluir várias passagens, como a que ele faz referência à governanta escocesa que ele teria tido, os vários intelectuais com os quais ele conviveu na infância etc. É a mesma história: estas digressões, sensacionais na boca do Bruno, num texto escrito trariam mais confusão do que qualquer outra coisa.
Outras histórias não poderiam ser excluídas de maneira nenhuma. A mais interessante delas foi quando ele contou aquela coisa de Tomás Antônio Gonzaga ser o terceiro poeta mais lido da Rússia, ou da Ucrânia que seja. Não faço a mais vaga idéia da veracidade disto, de fato não apostaria minhas economias nesta história; mas se non è vero, è ben trovato – e totalmente tolentiniano.
Mas há também o que não pode ser transcrito, dois pequenos acidentes saborosos que estão na gravação: quando toca o telefone celular do poeta e ele não sabe o que fazer, e quando ele pede uma água sem perceber que há uma exatamente na sua frente (e só depois de algum tempo uma pessoa tem coragem de se levantar e dizer, sem pronunciar as palavras, “olha, tá aí na sua cara!”).
E eu fico por aqui, com um aviso aos corações mais fracos: se preparem para, daqui pra frente, gravações cada vez mais emocionantes.
e coração cada vez mais fraco…
abraços
Fico imaginando como seria fascinante uma biografia deste Bruno Tolentino. Quem poderia escrevê-la
Ouvi falar em Bruno Tolentino pela primeira vez quando morreu. Li a famosa entrevista para a Veja, de quando voltou para o Brasil e me interessei por seu pensamento.
Quando comprei Dicta, estava na terceira parte de A Imitação do Amanhecer. Para ter uma idéia, é o primeiro livro de poesia que leio na vida!
Li muito rápido, não consegui captar nem 10% do que Tolentino escreveu. Estou relendo agora, com muito mais calma. Não saio de um poema sem pelo menos entender do que se trata.
Foi um pensador extraordinário, sem dúvidas. Parabéns pela matéria da revista. Ficou muito boa. Fiquei com inveja das 30 pessoas que assistiram sua última aula.