Os primeiros minutos de Hugo justificam todo o 3D. Sobrevoamos Paris do começo do século XX até chegarmos no local em que se passa a maior parte do filme e, dessa forma, conhecemos literalmente toda a sua extensão, a medida em que a câmera faz um percurso, por entre os passageiros e os funcionários, de uma ponta a outra da estação de trem. Por detrás dos relógios e entre as paredes está Hugo e, graças à tecnologia, podemos acompanhá-lo atravessando gigantes rodas dentadas.
Em Citizen Kane, fomos levados para dentro de determinados lugares, atravessando grades, portas, paredes e, assim, o simples movimento de atravessar objetos vai de encontro com o propósito da narrativa de revelar os segredos mais íntimos de um homem, de descobrir mais e mais sobre seu passado e sua vida interior. O uso do 3D em Hugo, dirigido por Martin Scorsese, se assemelha de certa forma com tal proposta, e, como em Citizen Kane, o estilo técnico também está casado com a narrativa.
Hugo é um órfão que cuida dos relógios da estação e que vive secretamente entre as paredes. Vive de pequenos furtos: comida dos cafés das redondezas e brinquedos da loja de Papa Georges, que ele desmonta para com suas peças consertar um robô encontrado pelo seu pai antes de morrer. Hugo acredita que se conseguir fazer o robô funcionar, ele lhe revelará uma mensagem de seu pai. Mas há mais para ser descoberto sobre a origem do robô e sobre o velho Papa Georges da loja de brinquedos, revelações que deixo a cargo do leitor descobrir.
O 3D, quando usado de maneira adequada, serve para isto: convidar e atrair o espectador para o ambiente do filme, permitir que possamos acompanhar os personagens, caminhar com eles e obter uma sensação maior do que há a seu redor, de como é estar lá. Seu verdadeiro potencial não é atirar coisas para fora da tela, mas atrair e convidar o espectador para dentro dela, criando uma profundidade de campo e uma imersão tamanha que fariam Orson Welles chorar.
Scorsese não foi o primeiro a perceber isso. Antes dele, Herzog adotara a tecnologia para que se fosse possível visitar o interior de uma caverna em Cave of Forgotten Dreams. A caverna retratada contém pinturas rupestres de mais de trinta mil anos e que só podem ser sentidas da mesma forma em que foram concebidas, tridimensionalmente. Antes ainda, a Pixar descobrira a força narrativa do 3D com Toy Story 3. Enquanto outros filmes ainda se preocupam em criar desculpas para que seus personagens lancem coisas contra os espectadores, o 3D de Toy Story 3 nos permite estar com os brinquedos no chão da creche e, mais tarde, rumo ao incinerador. O 3D deve, portanto, nos carregar para dentro do universo do filme e não nos expulsar com impressões baratas e sustos momentâneos.
Em Hugo, tudo faz parte de um só mecanismo, tudo tem o seu propósito, e o 3D pode ser usado finalmente como uma ferramenta narrativa que possibilita a ambientação do filme e que renova a experiência mágica dos primeiros filmes feitos. Scorsese aparenta ter o mesmo respeito pelo advento do 3D que Mèliés tinha pela invenção do cinematógrafo. Mesmo quando seus próprios inventores não viam futuro na engenhoca, Mèliés percebeu a capacidade do cinema de viver em eterna simbiose com os nossos sonhos. Nossos sonhos fornecem material para os filmes e os filmes fornecem material para tantos novos sonhos.
Hugo é uma adaptação de um romance de Brian Selznick e foi indicado a Scorsese por sua mulher que leu o livro e que queria que Scorsese fizesse ao menos um filme que crianças pudessem ver. Muito além de um mero filme infantil, Hugo talvez seja, na verdade, um dos melhores filmes já feitos sobre o cinema, pois fala não só sobre a sua origem, como sobre a sua verdadeira essência. Além disso, fala sobre como é se apaixonar pela arte, sob pontos de vistas variados como o do espectador, o do pesquisador e o do próprio realizador; como é poder assistir sonhos projetados em uma tela e também como é ter a chance de poder fabricá-los, de poder fazer parte deles; e como a realidade, desprovida destes sonhos, seria terrível.
Para o meu gosto, é o filme que melhor utilizou a tecnologia 3D até hoje. Esta cena inicial é impressionante, mas o 3D enriquece a narrativa ao longo de todo filme. O filme é visualmente belíssimo, e só este aspecto técnico valeria uma ida ao cinema.
Mas, no meu entender, além de uma grande homenagem ao cinema, e em especial à Melies, o grande tema do filme é vocação. Hugo está incessantemente buscando os motivos de sua existência, e nessa jornada auxilia outras pessoas (não quero fazer spoilers aqui). E Scorcese aproveita para desvendar, de certa forma, a ‘vocação’ do cinema, do cineasta.
Aliás, gostei muito mais deste filme que d’O Artista.
Queremos mais textos de Ieda Marcondes, por favor.
Terão um toda sexta-feira, Nestor!