Ah, a memória da indústria cultural é algo perverso: escolhe-se o filme do momento, tecem elogios e panegíricos e esquecem de onde veio toda essa “mudernidade”. Esta é a única coisa que se pensa quando vemos uma película constrangedora como Cisne Negro, de Darren Aronofsky.
Aronofsky é o típico picareta cinematográfico. Poderia muito bem ter sido um diretor brasileiro nas boas épocas da pornochanchada. Aliás, a maioria de seus filmes é uma variação da pornochanchada, com a diferença que sempre tem um toque trendy para ninguém perceber, por exemplo, que Pi é uma pornochanchada da paranóia, Réquiem para um sonho é uma pornochanchada dos drogadictos, Fonte da Vida é uma pornochanchada sobre o Hugh Jackman em posição de lótus, O Lutador é uma pornochanchada que poderia ser sobre o corpo da Marisa Tomei (mas somos obrigados a ver o de Mickey Rourke) e, agora, Cisne Negro é uma pornochanchada sobre Natalie Portman sonhando (ou não?) que Mila Kunis lhe faz um belo cunilingus.
A diferença é que, entre Aronofsky e um Ody Fraga, este último tinha mais sutileza em mostrar mulher pelada. O nosso cineasta trendy não mostra um seio sequer – o que é um crime de lesa majestade quando se trata de ter, na mesma cena, Natalie Portman e Mila Kunis -, mas é mais pornográfico do que toda a filmografia da Boca do Lixo.
E enquanto meditava sobre tudo isso, ficando literalmente puto com tamanha hipocrisia cinematográfica, a minha memória – a de verdade, não a que foi moldada pela indústria cultural – foi se lembrando de outra película sobre o mesmo assunto – o balé clássico – e fiquei ainda mais irritado porque era claro que Aronofsky queria dialogar com este filme em particular e, sabendo da sua incompetência, não fez questão de citá-lo uma vez sequer em Cisne Negro.
O filme em questão era Os sapatinhos vermelhos, de Michael Powell e Emeric Pressburger, feito em 1948, e quem foi ao cinema recentemente deve se lembrar deles porque, em primeiro lugar, Francis Ford Coppola os cita em Tetro, e, em segundo lugar, aconteceu uma mostra recente da obra da dupla, exibida nos Centro Cultural do Banco do Brasil no Rio e em São Paulo.
Powell e Pressburger dirigiam, produziam e escreviam os próprios filmes. Autodenominavm-se de “The Archers” (Os Arqueiros). Geralmente, acertavam o alvo: produziram, pelo menos, cerca de seis obras-primas do cinema inglês – além de Os sapatinhos vermelhos, temos Coronel Blimp, Narciso Negro, Os contos de Hoffmann, De volta ao pequeno quarto e A tortura do medo, que é creditado apenas a Michael Powell na direção, mas tem Pressburger escrevendo o roteiro através de um pseudônimo.
Tanto Cisne Negro como Os sapatinhos vermelhos falam aparentemente do mundo do balé; contudo, também falam de algo mais: o desejo sem freios. Bem, tal expressão é, na verdade, um pleonasmo. O desejo é sempre sem freios. Ninguém pode pará-lo. Ele tem uma existência autônoma, uma lógica própria. Quem não compreender isto será seu escravo para o resto da sua vida – condenado a viver naquilo que René Girard chama de méconnaisance, o desconhecimento.
Os personagens de Cisne Negro são todos os escravos do desejo – desde da pobre coitada interpretada por Natalie Portman, passando pelo bailarino canastrão de Vincent Cassell ou pela mãe hiperprotetora Barbara Hershey (uma ruína humana), até a fogosa Mila Kunis. A mesma coisa acontece em Os sapatinhos vermelhos: a rivalidade entre Boris Lemontov e Julius Craster é refletida no sofrimento psíquico e corporal de Victoria Page. A diferença entre os dois filmes é que Powell e Pressburger condenam a rivalidade enquanto Aronofsky faz uma propaganda luxuosa do desejo. Acredita piamente que ele é uma forma de encontrar a “perfeição na arte”.
O que se segue em Cisne Negro é um desfile de besteiras sem par. O espectador é obrigado a ver Natalie Portman se masturbar pateticamente; é obrigado ouvir um diálogo canhestro sobre “o lado escuro da personalidade”; e é obrigado a ter de aceitar uma solução inverossímil para uma trama patética (afinal, no fim, foi tudo uma alucinação, não é mesmo?). Se quiser praticar voyeurismo, sugiro então uma casa de swing.
O antídoto é ver e rever Os sapatinhos vermelhos. E, se você acha que fui muito cruel com Aronofsky, contenha-se, fique em silêncio e veja a maravilha que Michael Powell e Emeric Pressburger fizeram. Raras vezes as imagens falaram por si só.
Já sabia que era outra apologia da auto-destruição como “As Horas” (é chique não ver sentido na vida!). Só não sabia que era comparável à pornochanchada.
”Todo filme, mesmo os bons filmes, é derivativo de outros. A Rede Social é derivativo de Jejum de Amor e Todos os Homens do Presidente, e Cisne Negro é derivativo de um monte de outros…” Darren Aronofsky, em entrevista a Ana Maria Bahiana.
Martim,
Você chegou a comentar o filme “Adam resurrected”?
Apenas discordo d’O Lutador, que foge do padrão de qualidade “aronofskysta”. Considero uma obra-prima, e ao menos sabemos que, sim, o herói decadente encontra a morte definitiva.
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Eu ia falar justamente de O Lutador. O único que gostei do Aronofsky. Mas comentaram primeiro
Faltou dizer que o modelo-rival da Natalie Portman é a personagem da Winona Rider. A primeira cena do filme é ela defendendo a bailarina veterana do escárnio das outras. E depois fica ambíguo, propositadamente, se a perfeição que a jovem bailarina perseguia era a artística, que a veterana disse não possuir, ou a perfeição no suicídio, que a personagem da Winona tentou mas não conseguiu. Mas realmente é uma exaltação besta da morte.
Antonio caro, acho que o “modelo-rival” da Portman não existe: ela tem dois daemons, por assim dizer, a Mãe e a Winona. E um duplo, que é a outra gatíssima, a de tatoo… esqueci o nome. O coreógrafo é o Mestre. E a morte é a redenção. Meio besta concordo, mas acho que discordaríamos dos motivos da “bestagem”. Abraços!
Concordo com a turma:Não colocaria O Lutador no mesmo balaio, já que está ,de certa forma, livre das afetações e maneirismos aronofskianos…
Eu vi O Cisne Negro como uma história de possessão demoníaca . A Lilly de Mila Kunis é evidentemente Lilith, a mulher amaldiçoada, que induz Natalie Portman a se drogar, deixando-a à mercê de seu inconsciente e suscetível à possessão.
A história do balé O Lago dos Cisnes é sobre magia e se baseia numa lenda germânica. Creio que o diretor quis dialogar com a história do balé de Tchaikovsky . Não por acaso, o filme começa com um sonho premonitório, que reproduz justamente a cena que Odette é enfeitiçada pelo mago Rothbart.