“Don’t you know there ain’t no devil, there’s just God when he’s drunk?”
Tom Waits, “Heartattack and Vine”
Nem Immanuel Kant, nem Kierkergaard, e muito menos Jean-Paul Sartre e Martin Heiddeger conseguiram ganhar de Thomas Alan Waits no quesito de “metafísica de botequim”. Perdoem-me os puristas e os tradicionalistas, mas qualquer frase de “Heartattack and Vine” ou de “Foreign Affairs” valem mais do que qualquer linha de “Ser e Tempo”, “O Ser e o Nada”, “O Desespero Humano” e até os “Fundamentos para uma Metafísica dos Costumes”, de Kant. Somente conseguem ser páreo para Waits, Aristóteles e Santo Tomás, e talvez estes últimos só perderiam porque Waits venceria os dois, na hora de verter uma boa garrafa de uísque.
Parece brincadeira, mas o fato é que Tom Waits, com sua voz rascante, instrumentação desafinada e letras sem nenhum nexo aparente, é um sujeito que nos leva a refletir sobre que raios estamos fazendo aqui, neste mundo repleto de imbecilidades e desgraça, pergunta pertinente a qualquer metafísica que se preze. Se, para um Aristóteles todo homem busca conhecer e, para um Santo Tomás, todo homem deve unir a razão e a fé, para Tom Waits, todo homem fica feliz com um copo de bourbon, uma mulher com cabelos oxigenados e uma lata de feijões nos momentos em que a solidão bate fundo. É um alvo baixo, devemos confessar, mas quem disse que não é verdade? Às vezes, o ser humano deixa a baixeza se disseminar nas suas atitudes. Mas isso não significa que Tom Waits seja um artista de quinta categoria, com objetivos de décima. Ele retrata um mundo muito particular, um mundo em que perder é sempre uma constante e, por isso mesmo, o Diabo apronta as suas. No entanto, como bem descreve a epígrafe deste texto, o Diabo não existe – foi Deus mesmo quem aprontou toda essa bagunça, quando estava curtindo uma bela birita.
O leitor que achar que eu e Tom Waits somos dois hereges, por pensarmos tão desrespeitosamente do Todo-Poderoso, pode fechar esta página e denunciar-nos ao Vaticano. Contudo, Waits pode ser tudo, menos um herege ou um ateu. O que ele possui é uma visão peculiar da vida do espírito, uma visão que não descarta algo que anda em falta nos cleros e nas pessoas que se dizem religiosas: bom humor. Claro que não é um humor besteirol, típico de retardados mentais: há um toque de lirismo, de amargura e de nostalgia, que deixa o ouvinte comovido ao escutar canções sobre losers, pachucos e pallukas, seres tão estranhos à nossa realidade que só mesmo um artista de muito talento para nos deixar ver a vida desses infelizes e sofrer com eles. E este artista único e impagável é Tom Waits.
Apesar de toda a sua esquisitice, Waits faz parte da mesma linhagem de “frágeis senhores da guerra” em que se incluem compositores como Bob Dylan, Lou Reed, David Bowie, Elvis Costello, Leonard Cohen, Neil Young e Nick Cave. Além disso, é um poeta de mão cheia e um compositor sofisticado, capaz de fazer melodia até mesmo com o barulho de uma cadeira, como prova a canção “Shore Leave”, do álbum “Swordfishtrombones” (Comprova-se este fato quando Elvis Costello, um dos sujeitos com o melhor bom gosto musical no mundo, faz três covers de clássicos de Waits para o álbum com Anne Sofie Von Otter, “For The Stars”). No entanto, para chegar ao seu estilo único, Waits teve de criar uma persona anterior: a de melhor cantor de botecos que já existiu.
Seu primeiro álbum, “Closing Time”, é uma das grandes estréias em vinil, ao lado de “Are You Experienced”, de Jimi Hendrix e “Songs of Leonard Cohen”, de Leonard Cohen, e mostra um compositor com linguagem própria – melodias delicadas, uma voz semi-bêbada e letras que retratam a desilusão do perdedor americano. Para quem vivia de pileques, queria dormir num Landau com luvas de couro e abraçado a uma pá retrátil, “Closing Time” parecia ser um belo início de carreira – uma carreira de respeito, em que pessoas como Bruce Springsteen, The Eagles e até Bette Midler (?!) regravariam suas canções, devido ao tom único que inspiravam ao ouvinte um mundo completamente diferente.
Uma das grandes sacadas de Waits como compositor é justamente esta sensação de estarmos dentro de um mundo, apenas pelo poder de sugestão da canção. Em “Closing Time” (1973), pensamos que estamos numa boate no final do expediente, escutando as lamúrias do pianista ou do bar-man que tenta arranhar umas notas no instrumento. Esta atmosfera de bar continuaria nos álbuns seguintes, como “Small Change” (1974) e “Nighthawks from the Diner” (1975), este gravado dentro de um bar de verdade, em que Waits mostra sua versatilidade como “stand-up comedian”, até chegar ao ápice na pérola das pérolas, “A Sight for Sore Eyes”, do álbum “Foreign Affairs” (1976), um conto patético de um grupo de amigos que se separaram conforme o passar dos tempos, narrado por um bêbado que só sabe xingar alguns pallukas que se encontram no bar (para quem não sabe, um palluka é, na língua particular de Waits, um perdedor de marca maior).
É também nesta fase que Waits começa a desenvolver a sua metafísica de botequim a partir de discos que contassem histórias completas, como se fossem mini-óperas. O postulado de que ele parte para a sua “ciência a qual queremos chegar”, é que o homem é um bicho solitário – algo evidente para quem escutou “Closing Time”, mas que fica cristalino na canção “Blue Valentine” (1978), em que o narrador conta que mandou um cartão de Dia dos Namorados para si mesmo, tamanha a sua solidão. Nesse aspecto, Waits é como se fosse um Edward Hopper alcoólatra, e cada canção é um daqueles quadros em que as pessoas estão em busca de um olhar, de um gesto significado, mas tudo está embebido num grau máximo de incomunicabilidade. Num mundo em que a solidão impera, o Mal é apenas uma banalidade porque, afinal de contas, todos estão bêbados demais para perceber isso.
Mas é claro que Waits não queria ficar somente no mundo do botequim. Como todo bom metafísico, ele queria expandir seus limites. Os primeiros álbuns de Waits faziam uma sátira melancólica de Los Angeles, com seus anjos perdidos em busca de companhia e alguma sorte, mas só encontrando isso em algum barzinho da esquina. Agora, estava na hora de ir para outras regiões de La America. Que tal o país inteiro? Foi aí que surgiu “Swordfishtrombones”, o primeiro álbum em que Waits criou sua persona definitiva, inclassificável, o bêbado filósofo com voz raspando a garganta de forma aflitiva, misturando rock, polka, jazz e até mesmo música de vaudeville.
“Swordfishtrombones” (1983) contava a história de Frank, um ex-marinheiro que, devido ao tédio que sua esposa e o cachorro dela impunham, resolveu queimá-los colocando gasolina na casa e ateando fogo. O álbum era a primeira parte de uma trilogia informal, que seria completada com “Rain Dogs” e “Frank Wild´s Years”. O que diferenciava este disco dos anteriores não era somente a instrumentação inventiva, mas o modo como Waits usava a voz, desta vez parecendo Martin Sheen em “Apocalypse Now”, narrando fatos bizarros que aconteciam na sua frente como se fossem a coisa mais normal do mundo. Não é à toa que o próprio Waits fez a trilha-sonora de “One From The Heart”, dirigido por Francis Ford Coppola, e depois seria ator em “Drácula de Bram Stoker” – se Coppola foi um dos poucos artistas que foram no fundo do coração das trevas americanas, Waits faria o mesmo, contanto que sua escuridão fosse divertida. Não sabemos se isso é possível, mas não podemos negar que Waits mostra um inferno que, se não tem os seus prazeres, mostra um humor incomum. “Swordfishtrombones”, contudo, é apenas um bom disco: Waits ainda está muito tímido nas suas experimentações, e mesmo com delicadas canções de amor como “Johanesburg, Illinois” (dedicada à sua mulher e musa, Kathleen Brennan, que se tornaria co-compositora e co-produtora em álbuns futuros) ou então obras-primas de concisão narrativa e musical como “Shore Leave” e “In the neighbourhood”, estava claro que o nosso metafísico de botequim precisava esculpir mais suas idéias e erguer sua “Crítica da Razão Alcoólica”, para criar sua nova persona e solidificar o estilo que acabara de encontrar, após anos e anos de procura nos balcões da vida boêmia.
“Rain Dogs” (1985) foi a resposta. Uma coletânea de histórias sobre marinheiros (diz a lenda que seria o Frank de “Swordfishtrombones” cruzando o oceano e chegando em New York – fato que nunca foi comprovado), um compêndio de sabedoria do submundo, um tratado de loucura escrito pelos próprios loucos – tudo isso é “Rain Dogs” e muito mais. Neste álbum, Tom Waits incorpora de vez a sua persona de cicerone do absurdo e faz a pedra de toque da sua metafísica. Sim, o mundo é um hospício (o título “Rain Dogs” é uma gíria para os doentes que ficam girando em torno de um mesmo lugar, como os cachorros que rondam suas poças de urina em dias de chuva), mas capaz de uma poesia assustadora, uma poesia que também pode ser dolorida, repleta da incomunicabilidade que só os amantes proibidos possuem. Há também espaço para o humor negro, como mostra “Cemetery Polka”:
“Auntie Mame
Has gone
Insane
She lives in
The doorway of an old hotel
And the
Radio’s playing opera and
All she ever says
Is go to Hell.
Uncle Violet
Flew as pilot
He said there
Ain’t no pretty
Girls in France
Now he runs a
Tiny little
Bookie joint they say
He never
Keeps it in his pants
Uncle Bill
Will never leave a will
And the tumour is as
Big as an egg
He has a mistress
She’s a Puerto Rican
And I heard she has
A wooden leg“.
Aqui também percebe-se que Waits está cada vez mais preocupado com uma pergunta básica, à la Sartre: Os infernos são os outros ou somos nós que construímos o nosso próprio Inferno? Ainda assim, “Rain Dogs” é uma obra bastante esperançosa, já que Waits consegue refletir sobre a passagem do tempo no ser humano com uma serenidade indistinguível, mesmo que aceite o fato tristemente, como sussurra (com um tom próximo de uma voz normal) em “Time” (regravada por Tori Amos): “The shadow boys are breaking all the laws/ And you’re east of East St. Louis/ And the wind is making speeches/ And the rain sounds like a round of applause (…)And they all pretend they’re Orphans/ And their memory’s like a train/ You can see it getting smaller as it pulls away/ And the things you can’t remember/ Tell the things you can’t forget that/ History puts a saint in every dream/ And it’s Time Time Time/ And it’s Time Time Time/ And it’s Time Time Time/ That you love“.
Uma metafísica começa quando o sujeito aprende a amar o Tempo, independente da sua crueldade nas pessoas. Além do Tempo, deve-se aprender a cultivar a solidão como uma amiga. E isso Tom Waits nos ensina como ninguém. Contudo, ele retrata um mundo em que a única fuga decente parece ser a resignação de “já ter visto tudo” e, por isso, nada mais o impressiona. “9th and Hennepin” pode ser considerada o hino do frágil senhor da guerra, com sua ironia alucinatória em estilo beatnik:
“Well it’s 9th and Hennepin
And all the donuts have
Names that sound like prostitutes
And the moon’s teeth marks are
On the sky like a tarp thrown over all this
And the broken umbrellas like
Dead birds and the steam
Comes out of the grill like
The whole goddamned town is ready to blow.
And the bricks are all scarred with jailhouse tattoos
And everyone is behaving like dogs.
And the horses are coming down Violin Road
And Dutch is dead on his feet
And the rooms all smell like diesel
And you take on the
Dreams of the ones who have slept here.
And I’m lost in the window
I hide on the stairway
I hang in the curtain
I sleep in your hat
And no one brings anything
Small into a bar around here.
They all started out with bad directions
And the girls behind the counter has a tattooed tear,
One for every year he’s away she said, such
A crumbling beauty, but there’s
Nothing wrong with her that
$100 won’t fix, she has that razor sadness
That only gets worse
With the clang and the thunder of the
Southern Pacific going by
As the clock ticks out like a dripping faucet
Till you’re full of rag water and bitters and blue ruin
And you spill out
Over the side to anyone who’ll listen
And I’ve seen it
All through the yellow windows
Of the evening train“.
A solidão de estar separado da amada é talvez a única coisa que o mantém são, mesmo quando quer se “comportar como um cachorro”. Escute “Downtown Train”, a canção mais pop que Waits já escreveu, tão pop que até Rod Stewart fez uma versão radiofônica, não percebendo a desilusão afiada ao cantar: “The downtown trains are full/ With all those Brooklyn girls/ They try so hard to break out of their little worlds/ You wave your hand and they scatter like crows/ They have nothing that will ever capture your heart/ They’re just thorns without the rose/ Be careful of them in the dark/ Oh if I was the one/ You chose to be your only one” . Mas a mensagem de Waits não é algo explicíta. Seu humor do absurdo ainda mostra alguma resistência contra as ilusões da vida quando berra na última canção de “Rain Dogs”, “Anywhere I Lay My Head” – “Well I see that/ The world is upside down/ My pockets were filled up with gold.// Now the clouds have covered o’er/ And the wind is blowing cold/ I don’t need anybody/ Because I learned to be alone/ And anywhere/ I lay my head, boys/ I will call my home“.
Sua alma é sua casa porque ninguém mais pode tê-la – exceto o Diabo, para quem o personagem de Waits está prontinho para fazer um pacto. No caso, um pacto patético, como fez no álbum seguinte, a parte final de sua trilogia, “Frank´s Wild Years”, que mostra o velho Frank se envolvendo com o tinhoso. A tentação sempre foi algo que interessou Waits e ele desenvolveria este assunto na sua metafísica de botequim, fazendo uma contraposição com o tema da inocência – que só é possível quando sonha, e geralmente o sonho é um pesadelo grotesco.
“Frank Wild´s Years” foi a primeira opereta que Waits escreveu com sua esposa, Kathleen Brennan. Ele iria além em sua carreira como ator, fazendo papéis típicos de sua persona em filmes como “Down By Law”, de Jim Jarmush, “Short Cuts”, de Robert Altman e “Brincando nos Campos do Senhor”, de Hector Babenco, mas a semente de seu lado mascarado sempre esteve em seus discos. Contudo, nunca sabemos quem é o verdadeiro Tom Waits – e é provável que ele nem se importe com isso. Ele se esconde atrás de sua metafísica que deixaria qualquer filósofo ou teólogo arrepiado, uma metafísica que, como o próprio intitulou no seu álbum “Bone Machine”, é uma máquina de moer ossos. Ele despe a música e a melodia de qualquer espécie de ornamento desnecessário, concentrando apenas em percussão ou então em um banjo mal afinado. Mas ele não perde a ternura ao analisar a loucura de uma suicida em “Who Are You” ao perguntar: “How do your pistol and your Bible and your/ Sleeping pills go?/ Are you still jumping out of windows in expensive clothes?” . E por incrível que pareça, neste mundo de loucura e satanismo, há espaço para o surgimento de um Jesus, que, segundo ele, chegará logo, mas só na hora da morte: “Well I’ve been faithful/ And I’ve been so good/ Except for drinking/ But He knew that I would/ I’m gonna leave this place better/ Than the way I found it was/ And Jesus gonna be here/ Be here soon“.
Isso não muda, claro, a nossa verdadeira situação nesta terra – seremos apenas “sujeira no solo” (“Dirt on the Ground”). O pessimismo de Waits – se pode se chamar assim – fica cada vez mais evidente, por exemplo, quando se une com um outro pessimista de carterinha, William Burroughs, e ambos fazem, com ajuda de Robert Wilson, o esteta dos palcos que não tem nada a dizer, só a mostrar, o assustador “The Black Rider” (1992). Este talvez seja o projeto mais radical de Tom Waits, só tendo páreo com o lírico “Alice”, também feito em parceria com Wilson. O tema da tentação diabólica é levado às últimas conseqüências, transformado num espetáculo de circo que se passa na Rússia e que mostra o Cão como um cavaleiro negro que, muito educadamente, “beberá seu sangue como se fosse vinho”. Paralelamente, conta a história de um triângulo amoroso que termina em tragédia, ainda que tenha seus momentos de poesia, como retrata a linda (e macabra) “I Shoot the Moon”: “A vulture circles/ Over your head/ For you baby/ I’ll be the flowers/ After you’re dead/ For you baby“.
Esta proximidade entre o amor e a morte – às vezes os dois se tornando unidos com os amantes dormindo na mesma tumba – é atenuada em “Mule Variations” (1999), lançado seis anos após “The Black Rider”. Parece que Waits ficou um pouco mais calmo com a demência do mundo, mas veremos que isso é passageiro. Ele se mostra capaz de cantar de forma lírica sobre as moças que conhecemos nas cafeterias da vida (“Hold On”), fazer odes à paranóia (“What´s He Building”), continuar a narrar suas peregrinações com a maior paciência do mundo (“Pony”), sem deixar de escapar farpas às religiões que transformam Jesus em marcas de chocolates (“Chocolate Jesus”), ou então criar a canção de amor mais ambígua dos últimos anos, em que o ouvinte não sabe se é uma despedida ou um louvor melancólico ao adultério (“Take With It Me”). Mesmo assim, Waits alcança uma serenidade aparente na última canção do disco, “Come on up to the house”, quando afirma que nossa existência na Terra pode ser passageira, mas é carregada de sentido: “Does life seem nasty, brutish and short/ Come on up to the house/ The seas are stormy/ And you can’t find no port/ Come on up to the house (…)The world is not my home/ I’m just a passin thru“. O sentido do mundo está na Casa, mas o problema é que a Casa não é deste mundo.
E este mundo, definitivamente, é dominado pelo rio da miséria ou então pela fuga do sonho. Em “Alice” e “Blood Money”, seus álbuns lançados em maio deste ano, Tom Waits faz a maturação de toda a sua obra. São dois discos complementares, mas “Alice” é o mais acessível. Repleto de baladas e valsas desconstruídas, as canções escondem um profundo descontentamento – algo lógico se percebemos que os personagens principais dos discos (“Alice” e “Blood Money” são trilhas para dois espetáculos teatrais que Waits fez em parceria com Robert Wilson) são, respectivamente, um pedófilo (Lewis Carroll obcecado pela menina que daria origem ao seu livro mais famoso) e um homicida (no caso, Woyzeck, que assassinou a esposa por suspeitar de sua traição, o mesmo que inspirou o romance homônimo de Georg Büchner, já filmado por Werner Herzog, com Klaus Kinski). Se em “Mule Variations”, Waits dizia que o sentido da vida era transcendente a ela, agora ele mostrava o que acontece quando se perde qualquer sentido e cai no niilismo ou na ilusão.
“Alice” era considerada a obra-prima escondida de Waits e é bem capaz dessa afirmação ser verdade. Composta na mesma época que “The Black Rider”, o disco tem um lirismo raro, que pode ser sentido na canção-título, repleta de imagens insólitas (“It’s dreamy weather we’re on/ You waved your crooked wand/ Along an icy pond with a frozen moon/ A murder of silhouette crows/ I saw in the tears on my face/ In the skates on the pond/ They spell Alice“) e nas melancólicas ao cubo, como “Flower´s Grave”, “No One Knows I´m Gone” (um verdadeiro hino para os desprezados do mundo), “I´m Still Here” e “Fish & Bird”, esta uma pérola do amor impossível, que conta a história entre um pássaro e uma baleia (?!) com tamanha simplicidade, que quem não se emocionar com ela, simplesmente não é um ser humano: “They bought a round for the sailor/ And they heard his tale/ Of a world that was so far away/ And a song that we’d never heard/ A song of a little bird/ That fell in love with a whale/ He said, ‘You cannot live in the ocean’/ And she said to him/ ‘You never can live in the sky’/ But the ocean is filled with tears/ And the sea turns into a mirror/ There’s a whale in the moon when it’s clear/ And a bird on the tide/ Please don’t cry/ Let me dry your eyes/ So tell me that you will wait for me/ Hold me in your arms/ I promise we never will part“.
Contudo, Waits não deixa de apimentar as coisas com seu humor esquisito. Ouçam “Poor Edward”, que conta um suícidio incomum: “Did you hear the news about Edward?/ On the back of his head he had another face/ Was it a woman’s face or a young girl?/ They said to remove it would kill him/ So poor Edward was doomed/ The face could laugh and cry/ It was his devil twin/ And at night she spoke to him/ Things heard only in hell/ But they were impossible to separate/ Chained together for life” . E como não poderia faltar num conto de pedofilia, há espaço para um erotismo típico de pedófilos, em que a perversão parece ser ingênua, mas se revela como a dissolução daquele que seria o ser amado – algo que Waits capta com perfeição em “Watch Her Dissapear”:
“Last night I dreamed that I was dreaming of you
And from a window across the lawn I watched you undress
Wearing your sunset of purple tightly woven around your hair
That rose in strangled ebony curls
Moving in a yellow bedroom light
The air is wet with sound
The faraway yelping of a wounded dog
And the ground is drinking a slow faucet leak
Your house is so soft and fading as it soaks the black summer heat
A light goes on and the door opens
And a yellow cat runs out on the stream of hall light and into the yard
A wooden cherry scent is faintly breathing the air
I hear your champagne laugh
You wear two lavender orchids
One in your hair and one on your hip
A string of yellow carnival lights comes on with the dusk
Circling the lake with a slowly dipping halo
And I hear a banjo tango
And you dance into the shadow of a black poplar tree
And I watched you as you disappeared
I watched you as you disappeared
I watched you as you disappeared
I watched you as you disappeared”
Na verdade, “Alice” é uma reflexão de como um sujeito, para escapar da realidade do mundo, foge para um mundo de sonhos – e ainda assim este mundo não é muito bonito. Mas é o único em que ele consegue viver. Entretanto, a realidade não pode ser evitada – o que acontece em “Blood Money”. Neste álbum, o que domina é a miséria, a dureza dos ritmos, a crueza da voz, a rispidez das letras, emolduradas por um humor amargo. Ouçam o aforismo que Waits criou em “Misery is the river of the world” (A Miséria é o rio do mundo):
“If there’s one thing you can say about Mankind
There’s nothing kind about man
You can drive out nature with a pitch fork
But it always comes roaring back again“.
Aqui, a metafísica de botequim de Tom Waits se revela como uma pergunta muito simples e feita por muitas pessoas: Quem é o responsável pelo Mal do mundo? Deus pode ter saído a negócios, mas a culpa cai sobre o próprio homem. Somos como Jonas, sofrendo no ventre de uma baleia e, nos últimos tempos, está sendo díficil saber onde está um único bom homem. Em “Blood Money”, Waits se mostra como uma voz do fim dos tempos, mas é a voz que sabe que o absurdo da existência surge daquele que quer dar um sentido pronto e acabado. Infelizmente, não é assim: “Time is memory mixed with desire” (Tempo é memória misturado com desejo), sussurra Waits em “The Part You Throw Away”. Como já dissemos, uma metafísica começa realmente quando aprendemos a respeitar o tempo, pois este não respeita nada que é feito sem o seu consentimento. O mundo da morte e o mundo do sonho simplesmente paralisam o tempo e não deixam o ser humano se desenvolver e encontrar o seu sentido. Não devemos culpar Deus e muito menos o Diabo, especialmente quando este não existe e o primeiro ficou mal com uma ressaca. Tudo bem, isso parece papo de botequim; mas lembre-se que, às vezes, a vida tem um ar de boteco e, são nesses momentos que Tom Waits nos dá uma dica de escolher a bebida certa – e, o melhor, nos ensina a bebê-la com cautela.
“Às vezes, o ser humano deixa a baixeza se disseminar nas suas atitudes.”
Essa frase é interessante.