“Julgo que Deus nos expôs, a nós, apóstolos, em último lugar, como condenados à morte: fomos dados em espetáculo ao mundo, aos anjos e aos homens. Somos loucos por causa de Cristo, vós, porém, sois prudentes em Cristo; somos fracos, vós, porém sois fortes; vós sois bem considerados, nós, porém, somos desprezados. Até o momento presente ainda sofremos fome, sede e nudez; somos maltratados, não temos morada certa e fatigamo-nos trabalhando com as próprias mãos. Somos amaldiçoados, e bendizemos; somos perseguidos, e suportamos; somos caluniados, e consolamos. Até o presente somos considerados como o lixo do mundo, a escória do universo”.
(1 Coríntios 4:9-13)
O drama da pedagogia
“A Nuvem da Ignorância” (The Cloud of Unknowing) é um texto místico inglês redigido em meados do século XIV. Seu autor é um monge cartuxo e até hoje ninguém sabe a sua verdadeira identidade. Contudo, o que está em jogo não é a sua autoria ou uma discussão sobre sua legitimidade como “experiência” passível de incoerência, como supõem alguns pesquisadores intoxicados pelos sentimentos de “progresso” e “modernidade”. Há neste texto uma substância mais profunda e que talvez nos ajude a entender um pouco da nossa atual situação; esta substância, que se preserva do século XIV até os nossos tempos, se revela na própria estrutura do escrito e deve ser analisada lentamente pois não se trata de uma ata documental ou dogmática, mas sim de uma descrição da experiência mística, em que o monge tenta relatar a alguém o que é esta experiência e como ela pode ser usufruída.
Este relato é a tentativa do próprio monge de ensinar ao seu aprendiz o que seria o momento em que um homem fica diante de Deus e se vê coberto numa “nuvem de ignorância”. Mas este instante – em que o autor usa a metáfora paulina do “num piscar de olhos” para expressar o seu impacto – é, por si mesmo, quase impossível de ser partilhado com alguém. É neste quase que o texto se equilibra no fio da navalha; e aqui começa o que podemos chamar de drama da pedagogia. O que é este drama? É quando se tem uma experiência espiritual tão poderosa e tão original que não resta mais nenhuma possibilidade de comunicá-la para seus semelhantes porque será inevitavelmente incompreendida, mesmo (ou talvez principalmente) por aqueles que mais preza. Este é, sem dúvida, o nó górdio de qualquer experiência mística. Ela se apresenta “dentro da esfera do Sagrado, caracterizada pela certeza de uma anulação da distância entre o sujeito e o objeto, imposta pela manifestação do Outro absoluto como tremendum (para usar a terminologia de Rudolf Otto); ela é experiência do Outro absoluto como fascinosum, mas o fascinium aqui é apelo a uma união na qual prevalece o aspecto participativo e fruitivo, tendendo dinamicamente a uma quase-identidade com o Absoluto e transformando radicalmente a existência daquele que se vê implicado nessa experiência” (LIMA VAZ, Henrique de. Experiência mística e filosofia na tradição ocidental, pág.15-16).
Essa dinâmica e essa transformação radical devem ser vistas dentro do problema de que, como bem disse Bernard McGinn, “aqueles que definem misticismo nos termos de uma determinada experiência de Deus se esquecem freqüentemente que não existe acesso direto à experiência para o historiador. A experiência em si não faz parte do registro histórico. A única forma disponível diretamente para o historiador é a evidência, geralmente na forma de registros escritos, deixados para nós pelos cristãos antigos”. O autor de “A Nuvem da Ignorância” tinha plena noção de que seu escrito seria a única forma de preservação daquela experiência que viveu; portanto, deveria usar os meios de linguagem mais concretos que existiam na sua época para que os seus futuros discípulos compreendessem o que se passou em seu espírito. Mas isso não significa que ele é inseguro; aliás, é justamente o contrário que faz este escrito se tornar cada vez mais fascinante. Por que isso ocorre? Talvez porque seu autor sabia que a sua experiência mística era parte de algo maior, de uma religião que, antes de tudo, via o encontro com Deus como um modo de vida. Thomas Merton explica a raridade desta atitude, descrita com uma segurança cristalina pelo monge anônimo: “É uma graça rara, a vida à qual só se é chamado por Deus. Mais do que um modo sublime, é um modo raro: raro por sua própria simplicidade. Implica um senso peculiar de responsabilidade, um dom especial de humildade, um bom senso incomum. Não exige dons intelectuais especiais, ou aptidões naturais excepcionais. Mas requer, sim, uma fidelidade especial e, pode-se dizer, um tato espiritual extraordinário. É um modo de vida (a que chamamos, como clichê, de ‘vida contemplativa’) na qual se deve aprender a agir não agindo e a conhecer não conhecendo: a ter apenas um desejo, que não é realmente um desejo, mas uma espécie de falta de desejo, uma abertura, uma liberdade habitual no sentido de entrega de si mesmo, uma compreensão de que tudo o que Deus pede é ‘que voltes a tua atenção para Ele, e depois O deixes em paz. Deves apenas vigiar janelas e portas para que não entrem moscas e inimigos. Se fizeres isso com boa vontade, então só precisarás falar discreta e humildemente na oração e Ele logo te socorrerá`” (Místicos e mestres zen, pág.160-161).
Se a descrição acima nos faz parecer que a tal “vida contemplativa” é uma raridade que não deveria trazer temor, então qual seria a causa para que o monge duvidasse de seu ensinamento? Haveria, de fato, um drama da pedagogia? E o que faz a experiência mística, se ela é tão graciosa e sublime, ter a triste conseqüência de que jamais será compreendida?
A desintegração espiritual no século XIV
O autor de “A Nuvem da Ignorância” escreveu o seu tratado numa época em que a Idade Média atravessava o seu grande declínio secular e espiritual. A força substancial da Cristandade perdia o seu aspecto estrutural em uma sociedade que, pouco a pouco, se desencantava com o mundo. As rixas entre os principados nacionais e a Igreja, o surgimento de novas seitas espirituais e o rompimento entre os dogmas da fé e a pesquisa da razão humana originaram uma experiência do espírito que só poderia terminar em cisão, nunca em unidade. E poucos filósofos representaram em sua obra essa cisão de maneira tão cristalina como Guilherme de Ockham. Frade franciscano preocupado em como a ordem da Igreja de Cristo se conformaria com uma ordem de pobreza, toda a sua obra é um comentário mal resolvido sobre o problema da iniqüidade em um mundo que deveria ter sido criado por um Deus bom e onipotente. Ele foi o ápice de uma série de novas idéias que contaminaram o final do século XIII e que, de uma certa maneira, foram os fatores convergentes para os pensamentos aparentemente díspares de um Giles de Roma (assumidamente papista) e de um Marsílio de Pádua (assumidamente anti-papista). “No trabalho de Giles de Roma podemos observar a dissociação entre o poder e o espírito, ambos precariamente ligados através da evocação de uma hierarquia com as substâncias de poder e de espírito concentradas em sua mente. Na visão de Dante, o espírito recuou do campo contemporâneo de poderes e de paixões, e sua reunião se torna uma esperança para tempos futuros. No Defensor Pacis a estrutura do poder secular se torna uma unidade fechada e o Cristianismo é uma crença para o povo, enquanto em um fundo quase velado surge uma crença averroísta para o intelectual. (…) A aceitação do ‘mundo’ como parte da criação divina tornou possível a ascensão das forças intramundanas. As forças do mundo, estando estabelecidas, agora ameaçam se libertar da espiritualidade cristã e encontram um novo equilíbrio na ordem intramundana. Os pensadores do século quatorze estão preocupados tanto, como Marsílio de Pádua, com o estabelecimento da nova ordem intramundana ou, como Giles e Dante, com o desenvolvimento de uma fórmula que preservará a ordem transcendental cristã e, ao mesmo tempo, a sua integração com a estrutura do mundo” (VOEGELIN, Eric. History of Political Ideas, Vol. 3, pág. 104-105).
Esse choque de forças será sintetizado com Ockham – e sua possível solução para tais problemas criará a verdadeira reviravolta no pensamento filosófico, muito maior, apesar do pensamento comum, do que o cogito cartesiano. “Ao lidar com a situação, Guilherme de Ockham teve a diferença de penetrar com argúcia e desenvolver, com o auxílio das fontes do espiritualismo franciscano, uma posição teórica que recorrerá mais tarde na história das idéias modernas. O fato do seu problema é o seguinte: o espiritualismo cristão e o espiritualismo franciscano devem ser preservados intactos. O principal perigo desta preservação era a realidade do mundo e sua preocupação em inseri-lo na forma da ciência. A ciência, contudo, se tornou um dos fatos estabelecidos na civilização Ocidental e não poderia ser abolida – assim uma ontologia e uma epistemologia foram desenvolvidas para permitir uma exploração crítica e livre da realidade sem prejudicar a especulação teológica. O grande oponente intelectual para essa tarefa foi o aristotelismo em sua forma averróista; desta forma, a nova metafísica deveria ser uma contraposição radical do naturalismo e do determinismo averroísta da personalidade humana. O tomismo por si era um perigo porque havia o pressuposto de que a harmonia entre fé e razão levaria, através da prática da investigação racional e filosófica, a tensões entre a teologia natural e a teologia supernatural que destruiriam, em última instância, a integridade do sistema dogmático” (VOEGELIN, Eric. History of Political Ideas – Vol. 3, pág. 105).
As tensões de preservação de duas forças que inevitavelmente se chocarão fez com que Ockham criasse uma solução meramente intelectual e não uma resposta existencial a um problema que, no fundo, surgia dos escombros da alma. A fé de Ockham não é a fé viva do apóstolo Paulo, que impulsiona o homem em perseverar em sua conversão, em se manter aberto às ambigüidades do mundo; é a fé dos eunucos espirituais, em que o mundo surge como algo de mera aparência e, por sua vez, de triste incerteza. “Não há nada em Guilherme da certeza sublime de Santo Tomás, em que a ordem do mundo é uma manifestação do intelecto divino, e deve ser recriado pelo homem na ordem da verdade. A ordem do mundo é, para Guilherme, criada por Deus, mas não é uma revelação da ratio aeterna; o mundo como é deve a sua estrutura não a uma substância divina, mas sim a um ato da vontade divina; o Deus onipotente poderia ter feito diferente se desejasse. O mundo não tem uma estrutura essencial, mas realiza uma das possibilidades infinitas que Deus escolheu. Usando a distinção de Duns Scotus entre a potestas absoluta e a potestas ordinata de Deus, Guilherme concebe a ordem da natureza como uma ordem hipotética determinada por uma potestas ordinata; é uma ordem estável para que, baseando-se no conhecimento empírico, possamos formular regras e noções gerais sobre seqüências temporais de eventos sob circunstâncias iguais, mas Deus, em qualquer momento, pode interromper nesta ordem pela ação de sua potestas absoluta e mudar o curso esperado dos eventos. A ordem da natureza não tem uma estrutura de universais reais; não podemos saber qualquer substância por si mesma, mas podemos conhecê-la por seus elementos acidentais. A causalidade na ordem da natureza não é negada, mas, sendo dependente da vontade de Deus, que pode mudá-la, não tem o caráter de necessidade (…) As implicações desta construção serão de grandes conseqüências para o sistema de Ockham e para a história das idéias. Se a substância da natureza é inacessível, o nosso conhecimento do mundo se torna um problema de organizar o material empírico pelos meios dos instrumentos conceituais da mente humana. O objeto de conhecimento não é o objeto real, mas como o objeto aparece ser e como ele é pensado (…) Está aberto o caminho para a ciência empírica e para a Crítica da Razão Pura, culminando no sistema de Kant. O estabelecimento de uma teoria crítica do conhecimento é tomado não para assegurar o progresso da ciência, mas para restringi-la de suas possibilidades. A substância do mundo, incluindo o homem e Deus, não pode ser alcançada pela ciência. O aprisionamento crítico aos acidentais tem o propósito de salvar a fé da sua petrificação. No reino da fé revelada e da teologia tem-se a potestas absoluta de Deus; é o campo do completamente irracional, desafiando a tentativa a uma teologia racional. A religião revelada é um milagre de Deus e não deve ser capturada nas categorias da ciência; o seu conteúdo não pode ser penetrado pela razão natural e, assim, a sua aceitação é possível somente através do milagre da fé operado por Deus no homem. O conteúdo irracional do dogma é crível porque Deus, através de sua potestas absoluta, infundiu a fé no homem, conduzindo-o ao sacrifício do intelecto. Guilherme cria a primeira construção de uma posição religiosa estritamente fideísta, aceitando o dogma racional e impenetrável por um ato de fé que é dado ao homem por um milagre de Deus” (VOEGELIN, Eric. History of Political Ideas – Vol. 03, págs. 106-107).
Não existe mais a harmonia entre o espírito e o intelecto; o mundo pode ser uma obra de Deus e, por isso mesmo, não é mais inteligível. E o poder absoluto de Deus quebra a fé do crente pois simplesmente não há confiança e sim uma mera crença de que Ele mudará de idéia em qualquer momento. Com isso, o homem até pode acreditar em Deus e em Cristo, mas não deixa de acreditar que também está abandonado, seja pelos seus semelhantes ou, principalmente, pela sua própria Igreja. Esta fissura dá início ao surgimento de novos movimentos espirituais marcados pelo extremo individualismo e à crítica da perda de substância espiritual. Este exílio do próprio espírito teve sua evolução nos séculos XIII e XIV quando se chega a uma fase crítica em que a Igreja se enfraquece na habilidade de institucionalizar os novos movimentos do espírito na forma de ordens religiosas, como os Franciscanos e os Dominicanos. Na Inglaterra, o surgimento de John Wycliff, personalidade fascinante pelas idéias, consideradas pelos historiadores como “pré-Reforma”, mas fraco em profundidade teórica, culmina naquilo que Voegelin classificará como a “paroquialização do Cristianismo”. Essas idéias eram aceitas por uma parte considerável da nobreza inglesa e aumentavam ainda mais a fissura entre mundo e pensamento provocada por Guilherme de Ockham, através de três sentimentos poderosos e que encontravam ecos na sociedade: 1) a religiosidade do indivíduo livre e soberano; 2) o sentimento anti-eclesiástico que quebrava a ordem sacramental da igreja e classificava a humanidade como membro de uma igreja espiritual e mística e também de um corpus diaboli místico dos esquecidos e dos deserdados e 3) o aumento da realeza e a tendência de considerar o reino nacional como a única organização visível no horizonte cristão.
É o momento ideal para os solitários místicos, indivíduos que se centram no sofrimento da paixão de Cristo e que surgem com visões intensas, descritas em uma linguagem sensualista, carregada de insinuações. Na Inglaterra, temos os casos de Richard Rolle, Juliana de Norwich, Walter Hilton e Margery Kempe. O primeiro era um eremita, falecido durante a Peste Negra de 1349, que escrevia poemas e meditações apaixonadas sobre a Paixão e que descrevia a experiência mística através de hipérboles como “o fogo do amor queimando em sua alma” (o autor de “A Nuvem” criticará duramente uso de metáforas e simbolismos extremos para sugerir sensações no instante místico). Já com Juliana de Norwich acontece uma espécie de aprofundamento da condição humana do Cristo; ele é identificado não só com a figura da Trindade (o Pai, o Filho e o Espirito Santo), mas também com a de uma mãe carinhosa e protetora, o que lhe causou alguns problemas com a Igreja, pois ela sugeria a inexistência do Inferno, uma vez que Deus não tinha raiva e, como lhe foi revelado, o Julgamento Final traria a salvação universal. Com Walter Hilton, autor de “A Escala da Perfeição”, temos o uso de metáforas coordenadas com o uso de funções corporais para que se possa compreender a importância de seu relacionamento com Deus; a sua preocupação constante com o mistério da Encarnação evita os extremos de linguagem, mesmo à custa de uma amputação das tensões violentas que existem quando se vive a vida do espírito. Essas tensões atingiriam o ápice com Margery Kempe, inglesa semianalfabeta, que vagava pela Europa e chorava de forma histérica; ela narrava o seu êxtase religioso com Cristo como se fosse uma união carnal, em que este dizia: “Devo me tornar íntimo contigo e deitar-me em sua cama… e tu podes ter a ousadia, quando estiver em tua cama, de me ter como o seu esposo”.
As forças que orientam personalidades tão distintas são a degeneração do espírito na ordem do mundo e a incomunicabilidade ao seu próximo da existência de um horizonte metafísico. A linguagem se torna ponto de partida para debates e dúvidas; não existe mais possibilidade de uma expressão correta; os conceitos filosóficos se embaralham com as experiências religiosas e o importante é a delimitação espacial e a medida do tempo. Este era o ambiente onde o autor de “A Nuvem da Ignorância” ensinou ao seu aprendiz o que seria a sua experiência tão original e profunda. Agora se entende o seu temor: com a desintegração do espírito acontecendo ao seu lado, como se pode captá-lo na consciência humana?
O autor de “A Nuvem” está na contra-mão destas forças: ele sabe que a experiência mística se dá num átimo de segundo, que não pode ser expressa adequadamente, que não existe um lugar certo para vivenciá-la ou cultivá-la, mas ele sente o dever de comunicá-la ao seu próximo simplesmente porque é a inteligibilidade do mundo – e, por sua vez, a inteligibilidade do espírito – que está em jogo. Eis aí o seu drama e o seu temor. Será que seu aprendiz compreenderá a riqueza desta vida? Será que ele não foi contaminado pela separação entre fé e razão que a sua época já absorveu? Não se inicia uma tentativa de restauração, mesmo que seja em uma única alma, sem estar amparado em uma tradição sólida e que recupera os princípios que religuem o mundo e o espírito. E este foi o desafio maior para o nosso monge cartuxo: em qual tradição ele deveria confiar?
A recuperação do Aeropagita
O autor de “A Nuvem da Ignorância” é um realista espiritual, um sujeito que tem a atitude de se distanciar intelectualmente e, muitas vezes, em termos práticos, das instituições políticas e culturais que o circundam pois ele não acredita mais em suas funções representativas para a vida do espírito que experimentou dentro de si. Contudo, ainda acredita na doutrina da Igreja Católica e, sobretudo, nos ensinamentos da vida monástica. Dessa forma, fundamenta toda a sua teoria de conhecimento no legado do Pseudo-Dionísio, conhecido também como o Aeropagita.
Ninguém sabe até hoje quem foi Dionísio. Seus escritos datam de 500 d.C. e retratam uma personalidade piedosa, temente a Deus e que se aproxima muito do discípulo de Paulo que se converteu em Atenas, fato narrado por Lucas em Atos 17:34. Na verdade, os fatos e as suposições sobre sua identidade não são um assunto importante para essa investigação; contudo, temos de ter em mente que este mistério contribui muito para o fascínio em relação à sua obra, que é um dos pilares do Cristianismo e é tão poderosa que ninguém menos que São Boaventura afirma que Dionísio é o principal pedagogo do sentido místico das Escrituras.
O Aeropagita viveu na Síria no auge daquilo que os historiadores chamam de monastic turn – a virada monástica. É um dos fatos mais peculiares da História: sem nenhum motivo aparente (provavelmente o vazio espiritual deixado pelo declínio do Império Romano), homens abandonam a sociedade onde vivem para se isolarem no deserto e encontrarem Deus nos lugares mais inóspitos. Eles se tornam “monges” (do grego monachoi), os solitários que praticam o exercício da anachoresis (recuo) e da askesis (endurecimento), que se revela em uma exploração interior e profunda da geografia da alma. O exemplo máximo desta vida é o de Santo Antão que, depois de se retirar para o deserto ao ouvir o trecho de Mateus 19:21, entra em um combate árduo com o Demônio e o vence para ser identificado como um “novo Adão”. O modelo de Antão influenciará outras pessoas, inclusive mulheres, a seguirem a sua vida solitária – e, a partir daí, temos uma nova comunidade, os monastérios, que se dedicam exclusivamente à contemplação divina. Essa “nova vida” se fundamenta na oração, na mortificação e no exame de consciência para atingir o estado do “descanso do corpo” e a quietude do espírito que domina as forças demoníacas.
Na verdade, trata-se de uma “coletivização” da experiência mística, descrita e ensinada objetivamente com métodos rigorosos. O ponto de partida é o abandono do mundo, visto como um palco de enganos que, somente após uma longa purificação na alma do indivíduo, será visto em seu esplendor divino. Dionísio recupera em sua obra a ordem da Criação, mas também deseja relembrar aos seus discípulos de que esta mesma ordem está envolta em camadas de mistério.
Isso não significa que, para o Aeropagita, o mundo é ininteligível; há um sentido no cosmos, mesmo dentro do palco de ilusões onde vivemos. Contudo, ele tem uma intuição fundamental sobre o conhecimento humano: o homem somente apreende as coisas ao seu redor através da linguagem e, portanto, através de conceitos – e esta mesma linguagem é de uma precariedade comovente pois também faz parte da Criação. É a consciência desta tensão que revela a singularidade de Dionísio.
Ele retorna à “matriz judaica” para fundamentar a sua “teologia mística” – termo que usou para o título de um dos seus tratados mais radicais e que o autor de “A Nuvem da Ignorância” traduziu para o inglês arcaico – e fazer uma ponte com o sacramento da Eucaristia como um dos meios de explorar o “embelezamento do mundo”. Como explica Paul Rorem:
“O paradigma para esta discussão é Moisés no Monte Sinai. Por trás da superfície de embelezamento do mundo feito pelo Aeropagita existem vários sub-temas. Em primeiro lugar, existem as “três vias” da purificação, da contemplação e da união: Moisés é purificado, depois ele é elevado para contemplar o lugar onde Deus se oculta e depois entra em união com Deus dentro da “nuvem da ignorância” (MT 1, 1000C.34-1001A.1). Em segundo lugar, o vocabulário usado para descrever a jornada vem das ações eucarísticas do sacerdote, de quem o protótipo é Moisés: o encontro com Deus no Monte Sinai e o sacerdote na Eucaristia são ambos uma ação de “separação” e de “purificação” em relação a assembléia, indo de uma área restrita com clérigos “escolhidos” para contemplar as coisas divinas. Estes sub-temas na narrativa podem ser bastante sugestivos, mas o ponto central é que Moisés ascende além dos símbolos perceptivos dos sons das trombetas e das luzes brilhantes, e depois ultrapassa qualquer contemplação conceitual da mente para entrar em uma nuvem de trevas ou numa escuridão de ignorância (MT 1,1000D44-1001A.11). A história de Moisés não é apenas o exemplo de uma elevação espiritual; é mais especificamente um paradigma para a ascensão descrita pelo Pseudo-Dionísio. Os símbolos da Bíblia e da liturgia – as trombetas e as luzes – são interpretadas “anagogicamente”, deixando o interprete atento para estar além da percepção dos sentidos e dos conceitos simbolizados. Somente então estes mesmos conceitos são negados e abandonados na renúncia da mente para uma união silenciosa com a Divindade transcendente”.(In: Rorem, Paul, “The Uplifting Spirituality of Pseudo-Dionysius”, Christian Spirituality: Origins to the Twelfth Century, org. McGinn, Bernard, pág. 143-144)
As acusações de que o Aeropagita teria “helenizado” o Cristianismo são infundadas. Classificar Deus como “uma Divindade transcendente” não significa que ele não tem um relacionamento pessoal; significa apenas que qualquer uso de uma linguagem humana é incapaz de conhecer Deus. A “teologia mística” de Dionísio é uma teologia apofática, em que o conhecimento de Deus, se isso é possível enquanto estamos neste mundo, se dá pela negação de suas propriedades e não pela sua afirmação. Só se pode afirmar que Deus é alguma coisa percebendo a sua lacuna na própria vida; é um percurso dialético, chamado depois de via negativa, em que as tensões do espírito se acumulam no limite do insuportável. Três termos são essenciais para se entender este processo de afirmação e negação: aphairesis, agnosia e henosis. A aphairesis é o afastamento de qualquer analogia conceitual e de qualquer símbolo consciente que possa classificar a majestade de Deus; a henosis é justamente a união tão desejada pelo místico, a união com Deus e que se alcança o conhecimento definitivo de todas as coisas concebidas. Mas entre a aphairesis e a henosis existe a agnosia e é justamente o processo do conhecimento (ou seria do desconhecimento?), por estar dentro das tensões entre o mundo e o espírito, que nos interessa mais.
Para Dionísio, a agnosia é a ignorância da qual o monge inglês faria o eixo central de seu escrito no século XIV. Ele se volta para o momento da teofania vivido por Moisés e relatado em Exodus 19; sua volta à “matriz judaica” o faz ver que, enquanto a negação conceitual das propriedades divinas é superior à afirmação, tanto uma como a outra precisam ser ultrapassadas para alcançar a união com Deus. E isso acontece somente quando se aceita que se vive em plena agnosia, quando se sabe que “a completa ignorância é o conhecimento daquele que está além do que pode ser conhecido”. A partir daí podemos começar a ascender para ver a Causa de todas as causas, como o próprio Dionísio descreve no final de sua “Teologia Mística”:
“E então, ao subirmos e ao começarmos nossas negações e recusas no alto das coisas inteligíveis, diremos que ele não é alma nem anjo, nem que possui imaginação ou opinião ou razão ou compreensão, ou que ele é a compreensão e a razão, ou ele pode ser falado ou entendido. E – passando destas alturas para os estágios intermediários e para as coisas mais baixas – ele não é número ou ordem ou grandeza ou pequenez ou igualdade ou semelhança ou desasemelhança; nem que ele fica parado ou se move ou mantém silêncio ou fala. E – voltando aos estágios intermediários para as alturas e terminando nossas negações no topo dos topos – diremos que ele não tem poder ou que ele é poder ou luz, nem que ele vive, nem que é vida ou substância ou que é tempo ou época; que não há qualquer contato inteligível com ele, nem que é sabedoria, verdade, realeza, unidade, divindade ou bondade; que ele não é espírito de acordo com o nosso discernimento do espírito; nem parentesco ou paternidade com qualquer coisa conhecida para nós ou com qualquer coisa que exista; ele não é nem todas as coisas que existem e nem todas as coisas que não existem; nem que ele faz todas as coisas que nos são conhecidas e nem que elas o conhecem; e não há meios de se aproximar dele nem por razão e nem por compreensão; ele não tem nome; não há conhecimento dele; ele não é nem trevas e nem luz, nem verdade e nem erro; nem pode ser afirmado ou negado, mas quando atribuímos por afirmação ou retiramos por negação uma ou quaisquer propriedades que ele não é, não podemos afirmá-lo nem negá-lo, nem de uma forma inteligível. Pois a única e mais perfeita Causa de todas as causas deve necessariamente não ter a possibilidade de comparação com a altura das alturas e estar além de toda e qualquer negação e afirmação” (The Mystical Theology, cap. 7, Penguin UK).
A epistemologia radical da experiência mística
Agora podemos analisar “A Nuvem da Ignorância” na profundidade das intenções de seu autor – e ver como o seu drama da pedagogia nos ajuda a ver a crise espiritual do nosso século. A teologia mística do Pseudo-Dionísio quase se aproxima de um niilismo epistemológico, mas o discípulo inglês não permite que as tensões cheguem na fronteira do intolerável. Como um bom professor, começa lentamente, com avisos para que o seu escrito seja lido como um todo e não por partes. “Não desejo que este livro seja lido pelos falastrões, vaidosos ou qualquer tipo de detratores”, afirma, descrevendo os iletrados e os diletantes como “tolos”, homens que não compreendem a vida do espírito, pois não estão abertos para “o chamado do segredo de Deus”. A experiência a ser descrita não acontece pela vontade do sujeito – ela é simplesmente “dada”. É Deus quem inflama a alma do homem e o joga dentro do caminho das trevas e do desconhecimento; a única coisa que se pode fazer é a escolha da perseverança e se aprofundar nos caminhos obscuros que Deus revela aos seus olhos espirituais.
O chamado ao Espírito exige a totalidade do ser humano; não se está diante de Deus somente com a cabeça ou com o coração; é a criatura inteira que se encontra com seu Criador e o primeiro indício de que ele foi chamado para a Graça não é uma alegria viciada, mas sim uma profunda consciência do mal que há dentro de sua alma. “Olhe para ti agora, criatura miserável e fraca, e veja o que és”, ordena o monge, que pergunta asperamente: “Quem és tu e o que fizeste para merecer e ser chamado dessa forma por Deus?”. A certeza de que é o lixo do mundo, a escória da humanidade – e o monge não pára de repetir tal fato ao usar expressões como wretched creature e a lump of sin – é também um aviso eficaz para impedir a conseqüência natural quando se recebe uma experiência tão intensa: o surgimento da soberba. “Miserável, fiques atento com seu inimigo e não penses que és mais santo ou mais digno por causa desse chamado tão nobre ou por causa da vida solitária que escolheste, mas penses que és cada vez mais miserável e amaldiçoado se não fizeres o melhor possível, através de graça e conselho, para viver de acordo com sua vocação”. A vocação é o confronto dentro do caminho das trevas para viver na “nuvem da ignorância que há entre tu e Deus”; e é ali que se dará a abertura do homem para a presença de Deus.
A expressão “nuvem da ignorância” não é um mero referencial lingüístico ou uma referência histórica à teofania de Moisés; é o símbolo de uma experiência concreta e não por acaso há a complementação “entre tu e Deus”. A nuvem não ocorre no pólo imanente ou no pólo transcendente da existência; ela se dá justamente no percurso, no processo de conhecimento e de vivência entre os dois pólos. Por isso, a “nuvem da ignorância” expressa um fato que vai além de um êxtase que, afinal, é apenas a meta do processo; ela é o símbolo que o monge encontrou para tornar claro ao seu aprendiz a tensão que existe entre a vida contemplativa e a vida ativa. É ali, neste momento indeterminado, que ocorre uma diferenciação da consciência no real que nos é revelado em um rasgo súbito perante os nossos olhos. E, para tornar ainda mais concreta esta tensão, o monge a exemplifica com uma cena do Evangelho, a história do encontro de Jesus com as irmãs Maria e Marta:
“Estando em viagem, entrou em um povoado, e certa mulher, chamada Marta, recebeu-o em sua casa. Sua irmã, chamada Maria, ficou sentada aos pés do Senhor, escutando-lhe a palavra. Marta estava ocupada com muito serviço. Parando, por fim, disse: ‘Senhor, a ti não importa que minha irmã me deixe assim sozinha a fazer o serviço? Dize-lhe, pois, que me ajude’. O Senhor, porém, respondeu: ‘Marta, Marta, tu te inquietas e te agitas por muitas coisas; no entanto, pouca coisa é necessária, até mesmo uma só. Maria, com efeito, escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada’” (Lucas 10:38-42).
Uma suposta contradição entre a vida contemplativa e a vida ativa – assunto que a modernidade debateu com fervor e que impôs como ponto de condenação para o Cristianismo – se mostra infundada se lermos com cuidado o que o monge meditou sobre essa história. Não há nenhuma contradição, nenhuma diferença entre ambas as vidas; elas fazem parte e se encaminham para uma única vida. Ela é dedicada à “única coisa importante”, o próprio Deus encarnado e revelado, com sua presença no mundo virando toda a noção comum de realidade pelo avesso. Nesta vida, as trevas não são as trevas da nossa linguagem comum; são as trevas que escondem uma luz muito mais profunda, muito mais feroz e, por isso, mais brilhante. A vida cristã, amparada pela experiência mística, amarra as pontas soltas da contemplação e da ação, e mostra que, de fato, uma precisa da outra, como prova este relato dos Padres do Deserto, também inspirado na história das duas irmãs e que faria o nosso monge cartuxo sorrir:
“Um irmão foi ao encontro do abade Silvano, no Monte Sinai, e, ao ver os eremitas trabalhando, exclamou: ‘Por que vocês trabalham pelo pão que pereceu? Maria escolheu a melhor parte, ou seja, sentar-se aos pés do Senhor e não trabalhar’. Então, o abade disse ao discípulo Zacarias: ‘Leve o irmão a uma cela vazia, dê-lhe um livro e deixe-o lá, lendo’. Após nove horas, o irmão começou a tirar os olhos do livro para ver se o abade não lhe chamaria para o jantar. Após algum tempo, ele próprio se levantou e perguntou ao abade: ‘Os irmãos não comeram hoje, Pai?’ ‘Ah, sim, com certeza’, respondeu o abade, ‘eles acabaram de jantar.’ ‘Bom’, disse o irmão, ‘por que o senhor não me chamou?’ O ancião respondeu: ‘Você é um homem espiritual, não precisa dessa comida que pereceu. Nós temos de trabalhar, mas você escolheu a melhor parte. Lê o dia inteiro e pode passar sem comida.’ Ao ouvir isso, o irmão disse: ‘Perdoe-me, Pai’. E o ancião respondeu: ‘Marta é necessária a Maria. Porque Marta trabalhou, Maria pôde ser louvada’”(A Sabedoria do Deserto, pág.40-41).
O homem que está na “nuvem da ignorância” entre ele e Deus sabe que a sua vida na Terra é uma peregrinação e, por isso, deve-se manter perseverante na abertura erótica da alma perante as ambigüidades do mundo. Apesar do monge sugerir que, na vida contemplativa, deve-se colocar as pessoas, as coisas e tudo ao seu redor em “uma nuvem de esquecimento”, ele não corre o perigo de cair no solipcismo porque sabe que a recusa do mundo é, antes de tudo, uma tentação demoníaca, uma outra forma de negar a beleza da Criação e a majestade de seu Criador. Há, sem dúvida, uma desconfiança em relação ao mundo, mas isso faz parte do palco de enganos onde nos encontramos – e a principal razão deste conflito se dá dentro da nossa alma, uma vez que não passamos de “caroços fedorentos de pecado”. Essa desconfiança não é a incerteza de Ockham, a mesma incerteza celebrada pela ciência moderna e que questiona a ordem do espírito dentro da ordem do mundo; é a ignorância, the unknowing, a tensão entre saber e não-saber que resulta na humildade de aceitar o mundo não como algo que será conhecido e sim como algo que pode ser amado, principalmente por causa de suas imperfeições.
Tudo isso ocorre quando a consciência percebe a presença de Deus na “nuvem da ignorância” que existe entre Ele e o homem. Quando se fala em presença de Deus, pensa-se logo em algum fenômeno no melhor estilo “além da imaginação”. Nada disso. O verdadeiro místico tem pavor do sobrenatural; a aparição de visões, o surgimento de revelações e a audição de vozes estranhas são os indícios de que há algo enganador e demoníaco – e que Deus não tem nada a ver com isso. O encontro com o tremendum, com o mistério em toda a sua plenitude, pode levar o místico à morte e somente a própria Graça, através dos meios mais naturais, confirma que isso se trata de uma benevolência. A presença de Deus se dá nas coisas mais simples e mais óbvias; basta ter apenas olhos para ver e ouvidos para escutar; milagres acontecem o tempo todo e tudo o que o ser humano precisa é percebê-los espontaneamente. O mesmo acontece com a experiência mística quando Deus se mostra pessoalmente e perdura durante o resto da nossa vida, apesar de todos os obstáculos. Mas isso só pode permanecer, sem nenhum recurso sobrenatural, através de um duro exame de consciência e do cultivo da tristeza.
A tristeza é, talvez, a maior prova de que Deus chamou a criatura para uma vida de união. O monge a denomina de spiritual sorrow e ela ajuda a destruir o “conhecimento nu sobre sua própria existência”: “Digo que, sem a graça especial dada por Deus, junto com uma capacidade correspondente sua de recebê-la, este conhecimento nu sobre sua própria existência jamais será destruído. E esta capacidade de alcançar isso não é nada além de uma profunda e poderosa tristeza espiritual”. Não se deve confundir essa tristeza com auto-comiseração, pena de si mesmo, depressão ou qualquer outro termo psicológico; a tristeza deve ser “exercida com moderação: deves ter cuidado para não exigir demais do seu espírito e do seu corpo, mas deves ficar quieto, como se estivesse em vigília, exaurido e mergulhado no arrependimento. Esta é a verdadeira tristeza, esta é a tristeza mais perfeita de todas e abençoado é quem atinge tal tristeza”.
Na verdade, como o próprio monge afirma, trata-se do bom e velho arrependimento – e ele não deixa de ser um processo cognitivo da alma perante a realidade em que, ao ver sua podridão, se dá conta da limitação de seus meios. “Esta tristeza, quando experimentada, purifica a alma não apenas do pecado, mas também da dor que é o deserto do pecado; mais ainda, ela faz a alma receber a alegria que afasta qualquer conhecimento e a noção de sua própria existência. Esta tristeza, se corretamente compreendida, é repleta de desejo divino; de outra forma, ninguém que vive na terra poderia suportá-la ou carregá-la. Pois se uma alma não é amparada por uma espécie de prazer na verdadeira prática da contemplação, não suportaria a dor que há ao saber do seu conhecimento e da sua existência. A alma deseja ter o verdadeiro conhecimento e a presença de Deus na pureza de seu espírito (enquanto se encontra nessa terra), mas depois sente que não pode tê-los mais, pois sempre encontrará o seu conhecimento como se estivesse possuído por um tolo e fedorento caroço de si mesmo, que deve ser sempre odiado e desprezado e abandonado se a alma deseja ser o perfeito discípulo de Deus, ensinada por Ele próprio no monte da perfeição” (A Nuvem da Ignorância, cap. 44, pág. 67).
A purificação da alma, enquanto a tristeza espiritual percorre as intenções e os pensamentos, faz a criatura perceber que não existem conceitos ou símbolos de linguagem adequados para descrever a sua experiência de união com Deus. O próprio ato de expressão e de nomear qualquer coisa do mundo é um ato doloroso; os limites da linguagem não vêm somente por causa da finitude do ser humano, mas principalmente pelo seu desejo de expansão – em que a experiência mística é apenas uma das amostras mais ousadas desse anseio. Ortega y Gasset expressou com clareza a tensão da linguagem com dois axiomas breves aparentemente paradoxais, que mostram o drama do humano em querer expressar o que talvez jamais pode ser exprimido: 1) Todo o dizer é deficiente – diz menos o que quer e 2)Todo dizer é exuberante – dá a entender mais do que se propõe. A noção aguda desta exuberância e desta deficiência da linguagem se dá quando se aceita a tristeza espiritual e ocorre a descida ao máximo da profundidade, o êntase, que é o movimento oposto ao do êxtase, o máximo de altura que o espírito pode chegar. Somente então podemos dizer que estamos diante de uma estrutura constante da experiência mística, que sempre amparou os escritos místicos, de Platão a São João da Cruz, e que se revela também, em suas invariantes, como o seu dado antropológico original:
“Essas invariantes são representadas tradicionalmente pelas metáforas espaciais do inferior–superior e do interior-exterior. Elas designam, na estrutura ontológica do ser humano, uma ordem hierárquica dos níveis do ser e do agir, segundo a qual o nível supremo representa igualmente o núcleo mais profundo da identidade ou, se preferirmos, da ipseidade humana. O superior-interior é designado com o termo grego nôus e com o latino mens. A ele refere-se Santo Agostinho numa passagem célebre quando, dirigindo-se a Deus, assim se exprime: Tu eras interior intimo meo et superior summo meo. No mais íntimo da mente – aditium mentis – que é igualmente a sua fina ponta – apex mentis – o Absoluto está presente na sua radical transcendência – superior summo – e na sua radical imanência – interior intimo. A elucidação antropológico-filosófica da experiência mística implica, pois, necessariamente, duas teses fundamentais: a) o espírito como nível ontológico mais elevado entre os níveis estruturais do ser humano; b) a dialética interior-exterior e inferior-superior como constitutiva do espírito-no-mundo, e que se articula segundo a figura de um quiasmo, ou seja, em que o interior é permutável com o superior e o exterior é permutável com o inferior. Vale dizer: o mais íntimo de nós mesmos é o nível ontológico mais elevado do nosso espírito, e é no fundo dessa imanência (interior intimo) que o Absoluto se manifesta como absoluta transcendência (superior summo). Aí pode ter lugar a experiência mística. Ela é, em suma, a atividade mais alta da inteligência espiritual, que é, por sua vez, a atividade mais elevada do espírito” (LIMA VAZ, Henrique. Experiência mística e filosofia na tradição ocidental, pág. 18-19).
É com a inteligência espiritual, a fina ponta do espírito, que amarra fé e razão, que se percebe que o conhecimento de Deus se dá através do amor e não através de um conhecimento que expulsou qualquer possibilidade de horizonte metafísico. Eis aí a epistemologia radical da experiência mística: ela joga o homem em um estado de ignorância, na tensão violenta entre o conhecer e o desconhecer, entre a finitude e a eternidade, a fé e a dúvida, a alegria e a tristeza, que só terminará com um único fato definido: a morte. O autor de “A Nuvem” expressa tal situação usando toda a exuberância de suas palavras: “Então trabalhes sem parar neste nada e deixes para trás suas sensações corporais porque te digo que este trabalho de contemplação não será entendido por elas. Com teus olhos não podes conceber nada exceto por sua profundidade e extensão, sua pequenez ou largura (…) com teus ouvidos, não podes conceber nada por qualquer barulho ou ruído; com teu nariz, somente por alguma espécie de cheiro; com teu paladar, somente se for doce ou amargo; e com teu tato, apenas se for quente ou frio, duro ou macio, arredondado ou afiado (…) Por fracassar em compreender tudo isso ele entenderá que a única coisa que se pode entender é Deus. É por essa razão que São Denis dizia: ‘O conhecimento mais divino de Deus é aquele que se dá através da ignorância’” (A Nuvem da Ignorância, cap.70, pág. 96).
Sem a correta compreensão a experiência mística, jamais entenderemos que ela é a fonte de todas as crises e restaurações espirituais que assolam a humanidade desde o início dos tempos; mas será que o místico e o realista espiritual serão compreendidos ou terão uma força eficaz na sociedade onde vivem? É provável que não – pelo menos em curto prazo. O seu drama da pedagogia pode cair no drama da incompreensão; os seus ensinamentos correm o perigo de caírem no esquecimento. O próprio monge admite que há uma derrota iminente ao transmitir a sua lição ao aprendiz: “Se te parece que este tipo de prática não concorda com a tua inclinação em corpo e alma, podes desistir e tomar outro rumo sem nenhuma culpa, sob a direção de um conselheiro espiritual confiável. Neste caso, peço-te que me perdoes, pois neste escrito eu verdadeiramente desejei que tu se beneficiasses no melhor da minha habilidade – e este foi o meu propósito. Então leia mais duas ou três vezes – quanto mais melhor e quanto mais tu entenderes, verás que aquilo que achaste difícil em uma primeira leitura será mais fácil depois de algum tempo” (A Nuvem da Ignorância, cap. 74, pág. 99).
O monge cartuxo fala com seu aprendiz em uma época que o espírito ainda está latente. Resta algo de uma comunicação substancial – mas isso somente se dará quando há a aceitação da nobreza do fracasso e perceber que o maior dos males, o orgulho, continua no coração humano. Ele cresce como um câncer, independente da bondade que o homem acredita possuir, e, se não for controlado, corrompe uma sociedade inteira. Contudo, isso não desestimula a perseverança de quem tem fé: “Alguns tolos acreditam que Deus é seu inimigo quando Ele é seu melhor amigo (…) Algumas vezes, Ele nega nossos planos de acordo com Sua vontade porque, com esse atraso, é seu desejo que crescemos, para depois descobrirmos que o que foi perdido pode ser redescoberto (…) Pois Deus, com seu olho misericordioso, vê não pelo o que tu és ou pelo o que foste e sim pelo o que queres ser. São Gregório diz que ‘todos os desejos sagrados crescem com os obstáculos; e se eles morrem com os obstáculos é porque nunca foram desejos sagrados’”.
É esta mesma fé que molda a saúde espiritual de uma sociedade, conforme nos diz Henri Bérgson em seu “As Duas Fontes da Moral e da Religião”. Ela é “a garantia dos bens que se esperam, a prova das realidades que não se vêem”, de acordo com a definição de Hebreus 11:1. Mas o seu florescimento se dá apenas com o confronto com a nobreza do fracasso e a tristeza do amor; e como a experiência mística é, sobretudo, uma experiência amorosa, não adianta negá-la como um fato que pode ser explicado com categorias modernas e aparentemente sagazes. Pois quem estiver fechado a ela, quem não perceber que é um mero lump of sin, cairá na armadilha do auto-engano e sofrerá conseqüências terríveis, como apontou com precisão Soren Kierkegaard em suas “Obras de Amor”:
“O que se enganou a si mesmo crê, certamente, poder consolar-se, sim, até ter mais do que vencido; para ele se oculta, na presunção da tolice, o quão sem consolo é sua vida. Que ele ‘parou de entristecer’ não queremos negar-lhe; mas o que é que isso lhe adianta, se a salvação justamente consistiria em começar a entristecer-se seriamente sobre si mesmo! O que se enganou a si mesmo crê talvez até poder consolar outros que foram vítimas do engano da infidelidade; mas que loucura, se aquele que já sofreu dano no eterno quer curar aquele que, no máximo, está doente para a morte! O que se enganou a si mesmo crê talvez até, por força de uma estranha auto-contradição, ser solidário com o infeliz que foi enganado. Mas se prestares atenção ao seu discurso consolador e à sua sabedoria curativa, vais reconhecer o amor nos frutos: no amargor do escárnio, na agudeza dos argumentos, no espírito envenenado da desconfiança, no frio mordente do endurecimento, ou seja, nos frutos se reconhece que aí não existe nenhum amor” (KIERKEGAARD, pág. 21).
Este é o território onde se movimenta o realista espiritual dos nossos tempos – o deserto do niilismo justificado pelo orgulho da razão e a sagacidade do auto-engano. A fé, a esperança e a caridade sobrevivem, sem dúvida, mas para quem quiser imitar o exemplo do autor de “A Nuvem da Ignorância” resta apenas o consolo das palavras de Paulo, usadas como epígrafe desta meditação: o de que será exposto como “condenado à morte”, oferecido “em espetáculo ao mundo, aos anjos e aos homens” e que sempre será considerado como “o lixo do mundo, a escória do universo”.
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Areópago; Dionísio Areopagita.
Ótimo post.
“É com a inteligência espiritual, a fina ponta do espírito, que amarra fé e razão, que se percebe que o conhecimento de Deus se dá através do amor e não através de um conhecimento que expulsou qualquer possibilidade de horizonte metafísico. ”
Sim. Pascal ainda podia tocar afinado nesse diapasão ali no imediato pós-colapso da cosmologia e da antropologia antigas/medievais (colapso já anunciado no classicismo renascentista, no fundo infiel à episteme clássica). Nossa memória desse conhecimento ao mesmo tempo razoável e amoroso estiolou-se mais ainda na idade das máquinas, da revolução industrial pra cá, afogada por uma “presunção tão infinita quanto seu objeto”. A expressão é do Pascal, remetendo a uma presunção e a uma natureza tão infinitas quanto esse universo que se entende não ter mais limites.
Nada disso apaga porém a ligação amorosa entre contemplação e verdade, um “datum” humano, trans-histórico porque associado a um desejo, pois é, sagrado.
Roger Scruton no excerto abaixo, com a indispensável ironia conversando em torno do T. S. Eliot e da sua (do Eliot) maneira de tratar o paradoxo pós-iluminista.
Qual paradoxo?
“(…) this: the falsehoods of religious faith enable us to perceive the truths that matter. The truths of science, endowed with an absolute authority, hide the truths that matter, and make human reality imperceivable. ”
Ensaio inteiro aqui: http://www.catholiceducation.org/articles/arts/al0452.htm