Mikal Gilmore não é qualquer um. Escreveu um belissímo livro sobre sua terrível experiência pessoal com a história de seu irmão Gary, que foi o último condenado a morte do estado de Utah, Tiro no Coração (a tragédia também foi o tema de uma obra prima de Norman Mailer, The Executioner´s Song). Fez belas reportagens e entrevistas para a Rolling Stone com sujeitos como Bob Dylan, Bruce Springsteen e Mick Jagger. Sabe escrever. Sabe ouvir uma boa canção de rock e passar a sua emoção ao leitor. Então por que diabos Ponto Final, sua última coletânea de ensaios lançada pela Companhia das Letras, é tão fraca?
Seria pelo fato de que, logo na abertura, ele faz o panegírico de Barack Obama, saudado como “um dos acontecimentos mais importantes de sua vida”? Não, não é isto: depois de ontem, provou-se que Obama tem ainda muito a aprender para virar realmente um personagem histórico, depois de sua derrota com a eleição estadual e municipal, em que os Republicanos ganharam a maioria da Câmara e quase levaram o Senado.
Suspeito que a verdadeira razão é o fato de que seus textos sobre os anos 60 não passam de um pot-pourri de outros escritos de outros autores. Gilmore coleciona declarações de seus objetos de estudo e as coloca no seu ensaio como se quisesse revelar algo novo. Não faz nada disso. A única coisa que provoca é um bocejo e uma sensação de déja-vu.
Claro que Ponto Final tem suas qualidades – mas elas só surgem se o leitor se distanciar do engajamento político que Gilmore tenta dar ao seu panorama. A primeira delas é ser uma espécie de introdução ao bom rock-n´-roll, com textos interessantes sobre Johnny Cash e Led Zeppelin – além de ensaios instrutivos sobre Allen Ginsberg e Hunter Thompson, personalidades que não eram músicos, mas que emolduraram a década de 60 com suas palavras e suas técnicas narrativas ousadas. A segunda é ser uma visão panorâmica dos anos 60, que vai da felicidade provocada pelas bebidas e pelas drogas, até a ressaca moral que se abateu sobre cada um deles, com mortes, tragédias pessoais, rixas, invejas e solidão. Aqui, Gilmore quer dar uma de intelectual progressista, com loas ao “poder liberador dos estimulantes”, mas, a contragosto, torna-se um reaça de primeira, ao notar a autodestruição que tudo isso causou. Afinal, todos os seus heróis morreram ou quase foram para o lado negro da lua. E quem sobreviveu passou por uns maus bocados para contar a sua história.
Eis aqui a terceira vantagem deste livro: os perfis finais, com uma análise instigante de Bob Dylan a partir do lançamento de suas memórias, Crônicas Vol. 1 e uma entrevista peculiar com Leonard Cohen, feita logo depois que este decidiu retornar à vida pública e abandonar a reclusão em um monastério budista. Fica claro a intenção de Gilmore ao colocar estes dois “sobreviventes” na última parte de seu livro. Dylan e Cohen viram o abismo e voltaram dele. Se conseguiram contar a história, só o tempo dirá. O que importa agora é ouvi-los, mesmo que um pareça blasé demais (é o caso de Cohen) e o outro críptico em excesso (o caso de Dylan). O principal já foi feito: eles foram os únicos que ainda estão aí.
A fragilidade do livro de Mikal Gilmore está em querer encaixar a história de ilusão e desespero em um “ponto final” que termine em esperança – leia-se: Barack Hussein Obama. Como já sabemos, ambos não conseguiram. O próprio Obama vive agora uma ressaca moral que não se sabe como vai escapar. Contudo, o rock-n´-roll se mostra cada vez mais vital. Como a garota Jenny, da canção de Lou Reed, se dependermos destes “sobreviventes” que continuam em nossas memórias, ainda ouviremos suas canções nas rádios e nos iPods sem nos preocuparmos com nenhuma interrupção definitiva.
Como é que um problema pessoal-existencial pode se resolver politica-eleitoralmente? Hoje a idéia soa extravagante a mim. Um montão de vidas desajustadas mergulharam fundo nessas últimas eleições que tivemos aqui no Brasil, subscrevendo algumas das maiores canalhices que eu já vi na esfera pública, cassando direitos e chamando de mentira a denúncia de seu próprio conteúdo programático.
O que nós fazemos a nós mesmos que nos afastamos dessa forma da verdade?
Não será o “Timor Domini” o começo da sabedoria e garantia de um mínimo de coerência psicológica e sanidade?
Algumas pessoas trocaram sua própria foto pela foto da Dilma presidiária, seu ego desaparecendo na onda da História…
Sempre há um desbunde moral de algum tipo na adesão aos valores modernos, uma revolta egofânica que depois, paradoxalmente, dá no culto ao líder.
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Todo sentido, Helder. E muito engraçada e “to the point” essa história de egofania…
Não sou eu o autor do termo, veja um livro do Eric Voegelin, “Reflexões Autobiográficas”. ele descreve a motivação profunda por trás da adesão a ideologias. Descrevia ele a ascensão nazista. É assustador como parece com nosso caso. (Godwin fail…)