(A Criterion Collection lança nesta semana a obra-prima The Night of the Hunter, traduzida como O mensageiro do diabo, o único filme dirigido por Charles Laughton, um dos grandes atores do século XX e o único que poderia, segundo a minha imaginação distorcida, interpretar o Nero Wolfe de Rex Stout. Façam uma economia, rezem para que a guerra cambial não atinja o seu cartão de crédito e prestem um serviço à sua sanidade mental para adquirirem rapidamente este filme.)
Quando foi lançado em 1955 – em pleno sonho americano -, “O Mensageiro do Diabo” (tradução precisa, mas equivocada do original “The Night Of The Hunter”, A Noite do Caçador) parecia um desses filmes que ninguém sabia o que fazer, se elogiá-lo ou ofendê-lo até o fim. Até mesmo o diretor, o grande ator Charles Laughton, ficou em um silêncio estranho, como se seu primeiro e único longa-metragem fosse apenas um parêntesis na sua brilhante carreira. Mas agora que o sonho americano se esfacelou por completo depois do desabamento das torres do World Trade Center, do bailout megalomaníaco de Bush e do delírio socialista de Barack Obama, “O Mensageiro do Diabo” é uma daquelas obras que devem ser revistas com o olho preparado para o mistério e o imprevisível – enfim, para tudo aquilo que sabemos que existe, mas não temos como explicar.
Mistura de parábola, conto de fada e suspense, tudo captado com uma magia expressionista que só um homem como Stanley Cortez poderia fazer (Cortez foi um dos grande diretores de fotografia dos anos 40-50 e o responsável pelo visual de “Soberba” de Orson Welles), “O Mensageiro do Diabo” é uma alucinante meditação sobre a perseverança da inocência em um mundo brutal, este representado por homens que fingem representar Deus, mas deturpam o Verbo para realizar as obras do Demônio. A personificação disto está no “pastor” Harry Powell, interpretado por Robert Mitchum, um sujeito charmoso, que recita salmos com a voz aveludada de um trovão manso, e tem marcado nos dedos de cada mão as palavras AMOR e ÓDIO.
Harry Powell chega numa vila do Sul dos Estados Unidos com uma única intenção: roubar o dinheiro de Ben Harper, ladrão que morreu na cadeira elétrica por ter cometido um latrocínio e que escondeu o dinheiro com seus filhos, Jonh e Pearl Harper, antes de ser capturado pela polícia. Como soube disso? Preso por roubo de carros, Powell divide a cela com Harper que, durante o sono, conta a sua história apenas em parte, já que não revela onde está o seu “pequeno tesouro”. Na verdade, Powell não é nenhum pastor: é um assassino de viúvas que se disfarça de homem de Deus para atrair suas vítimas, seduzi-las e então matá-las. E usará o mesmo modus operandi para conseguir o dinheiro de Harper.
A primeira vez que a viúva de Harper, Willa (uma Shelley Winters à beira de um ataque de nervos), vê Harry Powell, ela está trabalhando na sorveteria de Icey Spoon, uma velha que faz tudo o que a moral da sociedade manda; ela não hesita em jogar a carente Willa aos braços de “um bom e digno pastor” que a devolverá aos olhos do povo. Powell percebe o jogo entre Willa e a sra. Spoon e não deixa de cumprir as expectativas. Levanta-se imediatamente ao ouvir a pergunta da pequena Pearl: Porquê você tem tatuado essas palavras nos dedos? É aqui que Laughton joga o grande tema do filme e, talvez, o eixo no qual se movimenta toda a condição humana. Powell brada como se estivesse no púlpito: “A-M-O-R: essa palavra muda o mundo; Ó-D-I-O: foi com essa palavra que Caim matou Abel e iniciou-se a destruição (Nesse momento, Powell junta as duas mãos com força). As duas mãos estão sempre em luta, sempre em luta, e muitas vezes a mão do ÓDIO parece ganhar da mão do AMOR, mas, no final, a mão do AMOR ganha e triunfa sobre o ÓDIO”. Com essas palavras simples, Willa fica fascinada por Harry Powell, e aceita a insinuação da sra. Spoon de casar-se com o pregador.
A cena em que Powell mostra o dilema do espírito humano é vista através dos olhos do pequeno Jonh Harper que jurou ao pai – em uma cena que terá suas conseqüências no final – guardar o dinheiro e proteger sua irmã Pearl de qualquer perigo . Durante o filme tudo será observado pelo ponto-de-vista de Jonh que, desde o início, já pressente as verdadeiras intenções de Powell. Ele simboliza a inocência que nada tem de tola e que apreende do mundo o conhecimento e a astúcia para lutar contra o Mal, sem se deixar corromper. Esse detalhe e o modo como é trabalhado se deve ao dom de James Agee, romancista americano, autor do clássico “Morte na Família” (também narrado por um garoto), que adaptou o roteiro do livro de Davis Grubb. Agee estruturou “O Mensageiro do Diabo” de uma forma em que inocência e perversão se confrontam o tempo todo, e muitas vezes se juntam, o que fica mais acentuado na iluminação de Cortez e na direção estilizada de Laughton. O que está em jogo é a boa e velha luta do Bem contra o Mal, retratada sem maniqueísmo, e com um gosto para o enigma e o mistério que beira o surreal.
Jonh e Pearl Harper enfrentarão o ardiloso Powell depois que ele se casa com sua mãe. O relacionamento entre esses dois é narrado com requintes de sugestão. Fica claro que Willa se casou com o pastor porque era uma pessoa carente, especialmente em termos sexuais. A cena em que Powell recusa Willa na cama é de uma crueldade quase patética: não resta mais nada à pobre mulher senão se tornar uma fanática que acredita ter sido salva. Ambos realizam cultos com pessoas da comunidade, gritam em nome de Jesus, falam o nome de Deus inúmeras vezes, num processo que transforma o símbolo do Verbo num mero jargão publicitário que só falta vender Cristo como marca de sabonete (algo muito comum nos dias de hoje).
O filme mostra um fenômeno que aconteceu na época da Depressão nos EUA e que atualmente atinge até mesmo nossa terra papagalis, com igrejas evangélicas e teólogos da libertação se unindo com partidos que se dizem de trabalhadores, ou então um lunático como Osama bin Laden que usa a expressão “Juro por Deus” como senha para um ataque mundial de antrax. Não há muita diferença entre um bin Laden e um Harry Powell, e ambos são parte de um fato muito interessante na história da consciência humana: o de que qualquer um que fale em nome de Deus conquista o respeito da sociedade.
Quem sabia jogar o sal nesta ferida era H.L.Mencken, ateu militante que lia a Bíblia às escondidas (e em compania de dois grandes bêbados, Edmund Wilson e W.C.Fields). Para Mencken, um homem escolhia a profissão de clérigo ou de pastor pelo simples motivo da preguiça. Ele não se interessa pelo trabalho duro da medicina ou da advocacia – prefere andar com seu Ford com a intenção de chamar as mulheres e conquistá-las o respeito por sua suposta castidade. Quanto mais “puro”, mais “sensual”. Para um pastor, pregar é apenas uma ferramenta para prestígio social – as palavras de Deus se tornam um exercício de futilidade intelectual, e tudo o que for autêntico para uma vida dedicada ao espírito é de uma opacidade que só pode resultar na incoerência entre ação e pensamento.
O Harry Powell que Robert Mitchum interpreta segue esses preceitos um por um. Logo depois do casamento com Willa, depois que esta descobre a verdadeira intenção de seu novo marido, Powell (que sempre “dialoga” com o Senhor) a mata sem hesitar. Essa seqüência é uma das mais pertubadoras do cinema: Willa está deitada na cama, os olhos fechados, resignada com seu destino, pronta para ser oferecida em sacríficio. Powell tira uma pequena faca, “conversa” com Deus e corta a garganta dela. Enquanto isso, as crianças dormem, e somente Jonh escuta o som do carro saindo, como se estivesse num sonho. Laughton, num lance magistral de montagem, funde a imagem das crianças na cama com a de Willa morta no fundo do rio, amarrada no carro, os cabelos loiros flutuando, um plano inesquecível.
Powell alega que Willa o abandonou por causa da bebida e da devassidão. Todos na vila acreditam, menos o pequeno Jonh que, junto com Pearl, se preparam para fugir. O que se segue é justamente a caçada do título original; o problema é que não se sabe quem é o caçador: se o onipresente Harry Powell ou o esperto Jonh Harper. Já a noite deste evento é uma das mais mágicas que uma câmara já captou: escapando graças ao um bote de um pescador bêbado da vila (e depois de Powell ter descoberto que o dinheiro estava escondido na boneca de Pearl), Jonh e Pearl atravessam o rio protegidos apenas pelas luzes das estrelas e pela vigilância dos animais. Há todo um tratado de metafísica nessa seqüência: Laughton e Agee querem nos dizer que, de uma forma ou de outra, alguém protege os inocentes, mesmo com a corrupção perseguindo-os sem parar. Qualquer um chega à mesma conclusão depois da cena em que, escondidos num celeiro, Jonh pode ver no horizonte da aurora a silhueta de Powell montada num cavalo, cantando um salmo e o garoto pergunta para si mesmo: “Será que ele nunca dorme?” (Don´t he ever sleep?).
“Será que ele nunca dorme?” – essa questão mostra como a inocência não tem nada de tola e pode conhecer a lógica de seu inimigo. Como qualquer símbolo do mal concreto, Harry Powell é incansável: realmente ele não dorme porque o sono é um presente que somente os justos possuem. Há uma famosa história que São João Evangelista estava com seus discípulos brincando como crianças quando alguém perguntou porque não estavam em seus exercícios de ascetismo espiritual. São João pediu a pessoa, que era um excelente arqueiro, que treinasse várias vezes com o arco e a flecha. A pessoa fez como o combinado e, já na décima vez, se sentiu muito cansado. “Então pare”, disse o Evangelista, “porque o mesmo ocorre com o espírito: ele deve descansar para não ser levado à exaustão”. É o famoso ditado de que “Deus dá a dor conforme o cobertor”. A inocência tem seus instantes de fraqueza – pois isso faz parte do ser humano – mas sempre deve persistir em continuar no seu caminho para encontrar a unidade de todas as coisas tendo como medida a sua própria consciência.
Jonh e Pearl são encontrados por uma senhora chamada Rachel Cooper, interpretada por Lilian Gish e uma clara homenagem de Laughton ao gramático do cinema, D.W.Griffith. A sra.Cooper cuida de crianças órfãs ou abandonadas não por uma questão de caridade social e sim por uma questão de dever moral. Como a própria diz ao ver um casal se beijando numa feira: “Eles fazem os filhos e depois sou eu quem toma conta deles”. Ela compreende a brutalidade do mundo ao ver um gavião agarrar um coelhinho e entende que Jonh e Pearl Harper estão sendo perseguidos por algo que está além da razão. Quando Powell aparece para resgatar as crianças com sua fala de pastor, a sra.Cooper olha para Jonh e percebe que ali não há pregador nenhum. Empunha uma espingarda e expulsa Powell da sua fazenda.
No entanto, o pastor vigia a fazenda, cantando o mesmo salmo de sempre, sobre “o braço duradouro”. Num momento revelador, a sra. Cooper canta o mesmo salmo com Powell e sua voz frágil ganha da voz de trovão por uma simples palavra: ela acrescenta “Jesus” no final de um verso. Outra vez, a oposição entre o Bem e o Mal se torna uma estranha união, e Laughton faz sutis comparações sobre os modos de Powell e os da sra. Cooper de ensinarem a palavra de Deus. Se o primeiro quase nunca cita a Bíblia, preferindo salmos, metáforas e alegorias, a segunda faz algo mais simples e eficaz – conta histórias, como a de Moisés. Aqui está o ponto central da questão: como semear a palavra de Deus? Até mesmo o Padre Antonio Vieira tinha essa mesma preocupação e praticava o mesmo método, extraindo os mais diversos sentidos das párabolas do Evangelho. Quem prega demais está fadado ao fracasso do espírito. Afinal, a Bíblia, mesmo nas epístolas de Paulo, é nada mais nada menos que um livro composto de histórias, e são as histórias que desenvolvem a imaginação humana para a solidificação da alma. Jesus não pregava; Ele contava parábolas, e mesmo o que seria as suas “lições de moral”, segundo a atual linguagem idiota, são mais enigmas dentro de enigmas que podem explicar apenas em parte, mas mantendo a interrogação e o mistério. A pregação embala o mistério na prisão da idéia, e o que era poesia vira ideologia, envenenado o que poderia ser uma educação eficiente a uma descida sem volta.
Depois de um confronto noturno em que Powell tenta sequestrar as crianças, a sra.Cooper atira no pastor, que foge latindo como um cão e se esconde no celeiro. A polícia chega, prende Powell e descobre que ele é o assassino de 23 viúvas, incluindo Willa Harper. A cena da prisão faz Jonh Harper relembrar da captura do pai e pede aos gritos que não prenda o homem que matou sua mãe porque, ali mesmo, ele dá o perdão que torna o Mal inútil, o perdão que paga com o bem o que já era corrompido (É interessante observar a reação da sociedade – representada pela mesma sra.Spoon – em querer linchar Powell durante seu julgamento, em um momento que antecipa o insight de René Girard.). As crianças ficam com a sra. Cooper que, toda a noite, conta uma história nova da Bíblia e todos se preparam para o Natal.
É neste epílogo que “O Mensageiro do Diabo” se mostra como uma verdadeira fábula. Enquanto a sra. Cooper recebeu das outras crianças vários presentes, Jonh dá a ela apenas uma maça embrulhada numa toalha de pano. Ela percebe o que aconteceu e diz: “É o presente mais importante que se pode receber”. Em resposta, dá a Jonh um relógio, que fica fascinado com o objeto, escutando o seu tique-taque. “Use com cuidado”, recomenda a sra. Cooper. E, a partir daí, saberemos que Jonh Harper seguirá o conselho à risca: em sua jornada, este garoto recebeu e compreendeu o dom mais precioso – o conhecimento do Bem e do Mal, da finitude da vida e da transcendência dela. Enquanto a palavra divina foi usada com outros propósitos, tudo parecia lógico e pacífico. Mas ela não é assim. É uma semente afiada, que provoca uma perturbação impressionante na alma humana, que só tem dois caminhos a escolher: ou sobe ou desce. Geralmente, como dizia Heráclito, o caminho de descida e de subida é o mesmo. É apenas uma questão de querer subir depois de ter mergulhado até o fim nas arestas do Inferno. Na vida, o mais díficil não é pagar o imposto de renda e sim manter-se íntegro neste mundo corrompido. Há muito espaço para o inútil e temos de tomar cuidado para que os Harry Powell que nos cercam, com seus deuses falsos, amantes da Dama Idéia, não acabem com a semente que sopra para onde quer, mas nunca sabemos para onde vai.
(2001)
Excelente artigo. Esse é o típico filme que nunca seria produzido na estúpida e politicamente correta Hollywood atual. E, ou muito me engano, ou “O Mensageiro do Diabo” reprisou há algum tempo no canal pago TCM, e infelizmente deixei passar. Na próxima oportunidade, com certeza assistirei.
Aluguei e assisti ao filme hoje.
Realmente muito bom (os comentários da caixa o classifica como um dos 10 melhores filmes já realizados). A fotografia surpreende.
Duas personagens me pareceram muito artificiais: a menininha, irmã do herói e uma outra menina que se apaixona pelo malvado no final.
Grande filme e boa crítica! Não entendi, no entanto, a referência ao gaiatíssimo H. L. Mencken como alguém que lia “às escondidas” a Biblia… Claro que ele conhecia a Bíblia, mas não precisava ler escondido, porque a lia justamente para, de vez em quando, ridicularizar algumas de suas passagens. Era um de seus hobbys. Em seus diários, ele se refere a esse “hábito” explicitamente.
Curiosidade: esse filme – realmente muito bom – integra o Guia de Vídeo Terror, publicação lançada pela Editora Escala em (salvo engano) 1996 – ao lado de coisas como Sexta-Feira 13, A Hora do Pesadelo…
(Nem acho que a classificação seja absurda, mas não deixa de ser curiosa – mais para quem se recusa a considerar o horror como gênero sério, claro, não deve ser o caso aqui).
Abraços.