Paulo Francis dizia descaradamente que o jornalismo só valia a pena para prestigiar os amigos e fazer novos inimigos a cada dia que passa. Já faço a segunda opção há dez anos – e os meus leitores devotos de Christopher Hitchens estão aí para provar isso – e neste post farei a primeira sem hesitar.
O romance As almas que se quebram no chão, de Karleno Bocarro, é, para mim, um marco, tanto na história pessoal do próprio autor como no momento em que se encontra a literatura de nosso país. Karleno é, de fato, um amigo meu, mas antes foi um leitor atento dos meus primeiros ensaios em O Indivíduo. Quando veio a São Paulo, mostrou-me os originais de seu romance e confesso que, naquele dia, o meu humor não estava lá muito bom porque disse brutalmente – e este é um dos meus defeitos que a idade não curará – que o livro tinha problemas sérios. Geralmente, quando digo isso do texto de alguém, é certo que o autor ficará nervoso e ambos (eu e o autor) começaremos a brigar para preservarmos o ego de cada um, sem nos preocuparmos com as imagens das respectivas mães.
Mas Karleno não fez nada disso. De forma surpreendente, ele me ouviu – e reescreveu o livro.
Se ele fez o certo? Poderia dar uma de falso humilde e dizer que não. Afinal, quem sou eu para ser ouvido? Mas, por algum mistério que certamente só pode vir do talento e da obstinação deste escritor, o romance ficou mil vezes melhor – e posso dizer, sem nenhum medo, que é o livro que a geração da década de 90 gostaria de ter feito e que nunca conseguiu. Depois de anos de marasmo, este é a primeira amostra que, após o desaparecimento de Osman Lins, podemos ainda fazer o grande romance brasileiro contemporâneo.
Sim, eu vi o processo de parto do livro – e talvez seja por isso que posso dizer de suas qualidades. As almas que se quebram no chão é um romance que não tem nada de favelado e nada de pobretão injustiçado. Trata, isto sim, de pobretões em Berlim que querem viver às custas do Estado. E, por incrível que pareça, As almas mostra a descida épica de uma juventude que escolheu a decadência como forma de expressão existencial e que, obviamente, só poderia dar com os burros n´àgua.
Não é um livro fácil. É pesado, é sombrio. Lembro-me que, enquanto lia seus originais reescritos, tive de parar por uns três meses porque a atmosfera me oprimia. Mas é um livro muito bem narrado, com diálogos que soam naturais, com um ritmo bem calculado, que exaspera a sensibilidade do leitor. Ora, não é isso que todos nós esperávamos de um romance nacional – aquela aura da arte com A maísculo e que cospe na nossa cara o quão idiotas somos? Pois bem: Karleno Bocarro conseguiu fazer isso – e se vocês acham que estou exagerando e que eu deveria elogiar o Bernardo Carvalho ou o Joca Reiners Terron, que vão plantar batata, seus leitores de meia-tigela.
Karleno – que foi batizado assim porque o pai idolatrava Karl Marx, vejam só! – pode até não ter a Cia. das Letras ao seu lado, nem ir à Flip. Mas garanto que uma obra promissora foi descoberta e sugiro aos poucos leitores que ainda sabem ler um livro, aqueles que simplesmente fecham a página de um livro e vão tocar as suas vidas, que conheçam este romance e redescubram o que é a literatura brasileira.
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