Ocorreu ontem, em plena Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, um debate inusitado entre o professor da casa José Arthur Giannotti e um membro do IFE e editor da Dicta, Henrique Elfes. De um lado, um ateu de formação marxista; de outro, um católico estudioso do pensamento de Bento XVI.
O título do evento era “Dialética da Secularização Revisitada: Razão, Religião e Estado Secular”, e fazia referência ao debate entre Jürgen Habermas e Joseph Ratzinger em 2004. Talvez pela ambiguidade do título (o tema do debate atual era o debate de 2004 ou o tema do debate de 2004?), Giannotti e Elfes prepararam falas muito diferentes.
Giannotti fez um comentário aos pressupostos de Habermas, em particular sua fundamentação do Estado e da política em um conceito de razão que seria impossível de se sustentar em face à multiplicidade de razões que o século XX descobriu. Não é mais possível falar em uma razão, garantidora de discursos verdadeiros ou válidos; diferentes concepções de razão levam a resultados diferentes. É possível, contudo, afirmar o valor da tolerância – fruto, até onde entendi, do embate e do equilíbrio de forças políticas – e permitir que diferentes opiniões e crenças convivam em paz. Embora ateu, disse concordar mais com Ratzinger do que com Habermas.
Já Elfes, sem fazer referência direta ao diálogo entre Habermas e Ratzinger, traçou brevemente um panorama histórico do secularismo no Ocidente, de suas raízes na Idade Média até hoje. Identificou a causa desse processo no excessivo clericalismo da Igreja Católica em seu primeiro milênio de existência.
Depois dessa fala, que dava uma perspectiva francamente católica e, dentro do catolicismo, conservadora, nada restou a Giannotti senão exclamar: “Olha, devo dizer que concordo mais com o Habermas do que com você!”. E daí o pau comeu.
Seguiram-se trocas entre os dois sobre vários assuntos: história da tolerância no Ocidente; religião como experiência pessoal do inefável ou como instituição detentora de missão divina; crise nas religiões institucionais; papel da razão na política; fundamentação última da ética e dos direitos; até a história da Igreja e o número atual de seminaristas entrou na discussão. O evento foi todo gravado pela organização, então imagino que em breve ele estará acessível a todos.
Curiosamente, foi justamente Elfes, o partidário da religião, que defendia a existência de uma razão objetiva – e secular – que deve fundamentar a vida política, e ser o critério para definir direitos, deveres e leis. Ao mesmo tempo, sua leitura da história me pareceu um tanto enviesada e pré-pronta para enaltecer a Igreja, vendo tudo o que discorda da visão católica conservadora como uma espécie de “ressentimento” contra a Igreja ou mesmo contra Deus.
Eu estava na plateia, e tentei provocar o prof. Giannotti. Ele afirma o valor da tolerância; mas nem todos o afirmam. Como defender a tolerância sem algum tipo de justificativa racional e portanto acessível a todos os homens? Ele respondeu que essa defesa se dá não no plano racional, e sim no político. E a discussão política não envolve a argumentação racional?, retruquei. Como resposta ele ofereceu o exemplo da última campanha de prefeito de São Paulo. Mas sem razão, a política não se reduziria a um mero jogo de poder? Não, respondeu, mas a um jogo de persuasão política.
Ele provavelmente levou a melhor sobre mim nessa curta troca, mas ainda estou convencido de que no próprio posicionamento dele está contida a premissa implícita do valor e da capacidade da razão como meio de se chegar à verdade objetiva, do qual a política não pode prescindir, sob pena de se reduzir ao maquiavelismo puro e simples: ao poder das armas e à persuasão mentirosa. Sem a convicção racional, resta apenas saber quem grita mais alto e engana o maior número de trouxas. E nesse jogo, valores como a tolerância por ele defendida não têm garantia nenhuma. Há algo além de um capricho subjetivo na defesa da tolerância? Se sim, então por mais que se o negue, é ainda a razão humana que dá as cartas. Se não, então não temos motivo nenhum para defendê-la. Todo o discurso secular de direitos humanos inalienáveis parte de uma tradição iluminista oposta à de Giannotti, e não fica claro como, negando os pressupostos dela, ele ainda queira manter essas conquistas não apenas como fatos constatáveis historicamente, mas como valores a serem preservados.
Acho que debate poderia ter chegado mais às situações concretas de nossos dias: os perigos do fanatismo, as questões sociais e morais que volta e meia chegam à política e que são sempre associadas à religião (aborto, eutanásia, casamento homossexual), laicidade do Estado e presença social de símbolos religiosos, etc. Que concessões um católico está disposto a fazer a um Estado que não segue sua religião? E um ateu a um Estado que respeita todas as religiões? É possível chegar a um ponto de acordo nos princípios e superar enfim a briga desgastante entre laicistas e religiosos? Mesmo assim, achei o saldo muito positivo; esse é um tipo de discussão e diálogo que precisa ser incentivado. O debate de discordâncias frontais, ainda que contrarie um pouco a tendência brasileira a tudo conciliar, é imprescindível para nossa cultura. Fico imaginando o que os partidários da visão de Giannotti ali presentes acharam do evento.
Caro Joel,
Obrigado pela presença ontem, pelo ótima pergunta ao prof. Giannotti (é o que eu teria perguntado, embora não da mesma forma) e por este texto. Como um dos organizadores do evento, gostaria de fazer apenas um esclarecimento: a despeito da ambiguidade do título, não havia ambiguidade nenhuma na proposta feita aos dois debatedores. Se as suas falas foram diferentes e, mais que isso, pouco convergentes, isso se deve ao fato de que (i) eles não seguiram à risca o que lhes foi proposto, e (ii) os dois defendem posições realmente muito distantes.
Um abraço,
Fábio
Olá Fábio! Obrigado pelo esclarecimento. E parabéns por ter organizado o evento; que mais debates como esse possam ocorrer lá e em outras faculdades no futuro!
Com todo o respeito ao Sr Henrique Elfes mas que estudioso é esse? Ele pode ser inteligente, e é, mas daí a se dizer dele que é um “estudioso do pensamento de Bento XVI” vai anos luz de distância. Aonde ele atua como estudioso? Quais artigos publicou? Quais livros? Quais capítulos de livros? De quais debates participou? Com quem trabalha? Quais orientações de mestrado e doutorado ele concluiu? Aliás, que estudo além de graduação ele possui?
Vejam bem, não estou dizendo que ele não é inteligente, não estou dizendo que ele não tem razão! Concordo mais com ele do que com o professor!! Também não digo que apenas um acadêmico, no sentido formal, possa ser um estudioso!
Mas não há como ser um estudioso isolado da comunidade!!
Além de tradução e editoração, de um “debate” infeliz sobre o filme “Código Da Vinci” em um jornaleco e de escassos artigos publicados nesta Dicta – que, aliás, ele nega que seja Contradicta – não há “debate” nem “conversa” pública que este senhor esteja inserido.
Só lamento, mas chamá-lo de “estudioso do pensamento” é demais!
Teria que ver bem o que o Giannotti quer dizer com essa defesa da tolerância em vista de uma multiplicidade de razões (a tolerância que é o típico eixo (pois era preciso pelo menos um eixo para haver algo) do relativismo na pós-modernidade, debatido pelo Julio em outro post), mas aparentemente é algo furadíssimo, não? Essa resposta dele foi apenas tautológica e exigiria uma definição mais esclarecedora de “política”, que mostrasse a) que ela não é pautada por uma razão “intolerante” na discriminação dos critérios das suas escolhas, e que b) não sendo pautada assim ela não seja um mero jogo de poder. Pelo que eu entendi ele não mostrou nada disso, que era a pergunta do Joel, mas negou a conclusão simplesmente chamando isso de “política”. Será que a tolerância de diferentes razões também inclui a tolerância por coisas sem razão como essa ou “política” significa algo realmente revelador nesse sentido todo?
Caio,
“Estudioso” não tem nada demais pra se implicar, né?
Não levou a melhor sobre você não, Joel. Pilantras como Lenin e Hitler também “persuadiram políticamente”.
“Estudioso”. Que implicância inútil, Caio.
Será que o que o cara diz (bom/ruim) não é mais importante? E que patrulha é essa a respeito do isolamento? Provisoriamente, pode ser bom. O resultado de tais estudos é que deve ser comunicado, para ser julgado bom ou ruim pelos demais. Quer estudioso mais isolado do que Isaac Newton?
Caio, com todo respeito, Enrique Elfes é estudioso sim. Estudou toda a obra de Bento XVI, bem como a vasta fortuna crítica a respeito, buscou situá-la na tradição de discussões própria a que ela pertence, e teve o cuidado de fazer um batimento dialético das doutrinas de Bento XVI com o pensamento de várias escolas que se dedicam aos mesmos temas que ele. Tudo isto feito com afinco, dedicação, labor, esmero, cuidado, varando madrugadas e ocupando-se em feriados, consultando a vasta bibliografia a respeito, tendo cuidado com se manter atualizadíssimo a respeito do status questionis, sem jump to conclusions, mas in the rithm of moving slowly.
Bom, na verdade eu não conheço Enrique Elfes, mas presumo que ele tenha feito isto. Se o fez é um estudioso. Você não sabe se ele o fez, logo não pode negar a ele o título de estudioso. Sobre o que não se pode falar, se deve calar. A inexistência de prova no mundo editorial e acadêmico de que Enrique Elfes é um estudioso de Ratzinger não prova que Enrique Elfes não é um estudioso de Ratzinger. Com que razão você nega a Elfes o epíteto de estudioso de Ratzinger senão o argumentum ad ignorantia?
Sá a título de ilustração conheço o maior estudioso de Wittgenstein vivo hoje no país. Ele mora em Timóteo-MG e já faz 10 anos que se trancou no quarto estudando Wittgenstein todos os dias, por 10 horas diárias. Ele não se relaciona com ninguém, não tem celular, televisão, rádio, nada disso, e já não faz barba há dois anos. Eu garanto: é o maior estudioso vivo da obra de Wittgenstein. Em 2015 ele pretende fazer uma aparição pública na USP e contar o que tem aprendido com Witt ao longo destes 10 anos. Na boa, é tudo verdade.
Abraços.
Joel,
” E a discussão política não envolve a argumentação racional?, retruquei. Como resposta ele ofereceu o exemplo da última campanha de prefeito de São Paulo.”
No que a última campanha de prefeito em São Paulo, segundo Giannotti, fundamentou o não envolvimento da argumentação racional no debate político?
E como a tolerância relativista deve tratar a tortura ou a aplicação da sharia, por exemplo, em Londres ou Paris?
Tem pelo menos 3 textos de Ratzinger que vale a pena ler sobre esse tema: o livro “Fé, Verdade e Tolerância”, o debate com Paolo Flores D’Arcais intitulado “Deus existe?” e o discurso proferido em Subiaco, um dia antes da morte de João Paulo II, chamado ” A Europa na crise das culturas” (pode ser encontrado aqui: http://www.deuslovult.org/tag/subiaco/
Esse último é uma “pérola”.
“Sá a título de ilustração conheço o maior estudioso de Wittgenstein vivo hoje no país. Ele mora em Timóteo-MG e já faz 10 anos que se trancou no quarto estudando Wittgenstein todos os dias, por 10 horas diárias. Ele não se relaciona com ninguém, não tem celular, televisão, rádio, nada disso, e já não faz barba há dois anos. Eu garanto: é o maior estudioso vivo da obra de Wittgenstein. Em 2015 ele pretende fazer uma aparição pública na USP e contar o que tem aprendido com Witt ao longo destes 10 anos. Na boa, é tudo verdade.”
Se o rapaz citado dedicasse todo esse esforço a algum pensamento original…
Já que alguém citou o Wittgenstein, pelos critérios do Caio S., provavelmente Saul Kripke nao seria considerado um “estudioso” do filósofo.
Tanta coisa para se falar sobre o post… Sinceramente!
Em resposta ao segundo comentario do artigo, do Caio S, vale a pena ver esse video: http://www.youtube.com/watch?v=0dhGJINi0N8
Minuto 8:35.
Que seja o primeiro de muitos eventos do tipo e que haja melhor divulgação deles.
Acho que ninguém saiu ganhando, o que deveria ter acontecido, é uma maior discussão entre o que os dois entendem tanto por razão quanto por política. Acredito que exista uma divergência grande entre os dois nesses temas, e como foi resposta de uma pergunta da platéia, imagino que deva ter ficado um pouco vago. O problema é que não era você, Joel, o outro lado do debate, embora, eu pessoalmente, preferiria mil vezes ver você no lugar do Elfes.