por Alex Flemming
Minha vivência em Berlim nesses últimos 18 anos se somam àquelas que experimentei aqui da primeira vez quando morei nas duas partes da cidade nos anos 80.
Quem não esteve de corpo presente na Berlim murada não pode realmente entender sua alma dividida. De um lado, um mostruário do mais fino que o mundo capitalista poderia oferecer, do outro um governo que se dizia “do povo”, mas o aterrorizava como uma jibóia a um rato. Do lado ocidental, com apoio financeiro americano, jorrava-se dinheiro para tudo. Mas era o brilho daqueles falsos dourados pelos quais muitas pessoas gostam de ser enganadas. Era um mundo de fantasia, coroado pela KDW, a mais espetacular loja de departamentos do mundo de então, e que carrega em si o sugestivo nome “Kaufhoh des Westens”, “Loja de Departamento do Ocidente”. Ela era o espelho negro do lado oriental, comunista só no nome, onde a falta de víveres era tanta que muitas vezes ia-se a um restaurante, olhava-se o cardápio e pedia : “Quero X”. “Ah… isso não tem”. “OK, então quero Y”. “Isso não tem também”. “Quero Z” – já irritado. “Não tem… Posso lhe sugerir: hoje nós só servimos a comida A”. Meninos, eu vi.
Outra particularidade do lado oriental era que quando eu falava ao telefone em alemão a conversa corria normalmente, mas se eu mudasse a língua para o português, abrupta e imediatamente a linha caía, pois na verdade SEMPRE havia alguém monitorando as conversas “suspeitas” (como estrangeiro serei sempre um “suspeito”).
A parte boa de toda essa esquizofrenia era que o ocidente permitia a existência de uma válvula de escape para todos os freaks do mundo capitalista, que não se ajustavam a ele: para Berlim Ocidental, por exemplo, podia vir qualquer cidadão alemão masculino que não queria servir o exército. E também, já nos anos 70, o homossexualismo era aceito em Nollendorf Platz, quando em Nova York ainda se perseguiam bares gays.
Com a queda do muro, símbolo máximo do comunismo, tudo se modificou. É claro que para melhor, mas não podemos nos iludir: nesta cidade tudo é e sempre foi ideológico. O muro pode ter caído fisicamente, mas ainda está bem sólido na cabeça de uma boa parte da população.
Alex Flemming é artista plástico. Em 1980 teve sua primeira exposição individual no Museu de Arte de São Paulo (MASP), de lá para cá expôs em inúmeras ocasiões no Brasil, América Latina, Estados Unidos e Europa. Quatro livros foram publicados no Brasil sobre a sua obra: Alex Flemming, de Ana Mae Barbosa (Edusp); Alex Flemming – Uma poética, de Katia Canton (Metalivros); Alex Flemming Obra Grafica 1978-1987 – V.16, de Mayra Laudanna (Edusp); Alex Flemming – Arte & Contexto, de Roseli Ventrella e Valeria de Souza (Moderna Editora).