“Mas você está sendo incoerente!”, dizemos, muitas vezes, ao perceber que alguém acaba de defender algo que não está de acordo com o que professa, ou professou há pouco, acreditar.
Cada pessoa possui um conjunto de crenças capaz de representar explicitamente aquilo em que acredita. Por exemplo, que o Corinthians é o melhor time do mundo, que a água ferve a 100 graus Celsius, que a sua mãe é esposa de seu pai, que o Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral, etc. São proposições, ou seja, conteúdo dessas sentenças, e não meras sentenças. “O Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral” é uma sentença, e a alegação segundo a qual uma pessoa de nome Pedro Álvares Cabral ‘descobriu’, num sentido mais ou menos preciso, um país territorialmente definido de nome Brasil, seja qual for a sua formulação em uma linguagem determinada, é uma proposição. (“Pedro Álvares Cabral hat Brasilien entdeckt” e “Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil” são sentenças materialmente diferentes, mas que possuem, a rigor, o mesmo conteúdo proposicional. Obviamente há sério debate a respeito do que constitui uma proposição e um conteúdo proposicional, e até sobre a sua ‘existência'; debate aqui ignorado.)
Enxergar todas as crenças de um indivíduo como um conjunto consistente sujeito a expansões, contrações e revisões foi um passo insofismavelmente importante dado nas últimas décadas do século XX (especialmente, mas não isoladamente, com a publicação do artigo On the logic of theory change: contraction functions and their associated revision functions publicado por Alchourrón-Gärdenfors-Makinson, um jurista, um cientista da computação e um lógico, respectivamente, em 1982), ainda que poucos se tenham dado conta disso.
É possível que uma pessoa acredite em proposições contraditórias? Novamente, há muito debate a respeito. Mas vamos supor — e eu já o vi acontecer — que um professor de sociologia diga defender o marxismo ortodoxo em suas aulas e, em almoços em família, diga que um engenheiro é diferente de um operário, e que o tratamento dado ao primeiro deveria ser privilegiado; e que, em aulas particulares de filosofia, esse professor afirme que a matéria não existe. Essas contradições ocorrem quando em um contexto, até por atavismo ou automatismo, uma pessoa é como que impelida a afirmar crenças que não confirmaria em outro contexto. Relativistas costumam pregar a indiferença total diante dos valores, mas quando suas vidas estão em jogo — um salário, por exemplo — costumam preterir um valor em favor de outro, de modo permanente e absoluto, geralmente de acordo com uma visão nada heterodoxa, na verdade bastante hierárquica e realista, sobre o que deve vir em primeiro lugar. Na prática, vemos que ao menos as pessoas parecem, sem perceber, acreditar em proposições contraditórias. Em teoria é difícil explicar porque, e como, isso acontece.
Mesmo que esse comportamento epistêmico seja corrente, ou seja, que o encontremos em qualquer lugar, em salas de aula e na televisão, na vida pública e na vida privada (experimente o presidente da república tal repetir oficialmente, em público, o que disse ontem no café da manhã ao seu primo sobre os palestinos), poucos em sã consciência o defendem. Faz parte do senso comum o entendimento de que não devemos sustentar crenças contraditórias, mesmo que sem perceber. Que não podemos, por exemplo, dizer (i) que nossa mãe é honesta e (ii) que nossa mesma mãe, tendo visto satanás cair como um raio, foi-lhe ao encontro e abraçou os seus mandamentos de iniquidade.
Com apoio nesse dado do senso comum ético, costuma-se dizer que dois critérios de racionalidade devem ser usados na construção dos nossos conjuntos de crenças:
(1) o conjunto de proposições aceitas deve ser consistente;
(2) as consequências lógicas daquilo que aceitamos devem ser aceitas.
Ilustrei o que é desobedecer o critério (1), ou seja, manter duas ou mais proposições contraditórias ao mesmo tempo (admite-se que revisões sucessivas de crenças possam nos levar a pensar que, ao ter acreditado antes que o Papai Noel existia e agora que não existe, acreditamos em uma contradição; mas isso não é assim, pois considerado em sua totalidade o nosso conjunto de crenças é dinâmico, e só crenças simultaneamente contraditórias num dado estado do conjunto de crenças não devem ser aceitas). Colocado contra a parede, o nosso professor de sociologia seria obrigado a confessar, ou que a matéria existe, ou que a matéria não existe. Quanto ao critério (2), se o nosso professor aceitou o marxismo (que tem como axioma básico a tese de que a matéria é o fundamento de tudo), ele também deve aceitar que a matéria é o fundamento de tudo. E se ele aceitou que a matéria é o fundamento de tudo, deve ter aceitado também que a matéria existe. Se não, você tem o direito de o colocar contra a parede e obter uma resposta satisfatória.
Isso tudo parece muito límpido e simples. Mas nos esquecemos disso. Esquecemo-nos de que, ao aceitar A, que implica B, devemos aceitar também B. Muitas vezes a conexão entre A e Z, uma viagem que perpassa 23 implicações, pode ter sido perdida. Mas continua sendo um fato — aqui pressuposto o condicional– que quem aceita A, aceita B, e que quem aceita B, aceita C, …, e que quem aceita Y, aceita Z. Ao menos deve aceitar, a levar-se em conta que aceitou (2) como critério aplicável.
Contradições extremamente sutis são também frequentes. A atitude de um profissional responsável situado num alto cargo deve ser tal que não venha a punir um seu funcionário sem ter certeza de que este agiu injustamente. Num caso imaginado, João ouviu dizer que seu funcionário Carlos vem vendendo produtos por um preço maior que o praticado e guardando para si a diferença, lançando o valor habitual na contabilidade. Olhando os documentos contábeis, de fato, João confirma que formalmente não existe desvio. Entrevistando outros funcionários, ninguém confirma o boato de que Carlos vem embolsando dinheiro ilicitamente. A câmera de segurança também não pegou nada. Responsavelmente, João arquiva o caso. Não pode punir Carlos com a demissão se não confirmou um boato. Mas veja que interessante! João, o responsável profissional, não obstante acredita em astrologia e, mais grave, acredita que o mundo irá acabar em 22 de dezembro de 2012, e anda tomando sérias medidas para se preparar para o apocalipse. Há uma óbvia contradição entre a sua crença de que (a) “se não tiver evidências suficientemente fortes para crer que João embolsou dinheiro ilicitamente, não devo tomar uma atitude”, e (b) “se não tiver evidências suficientemente fortes para crer que o fim do mundo se aproxima, mesmo assim devo tomar uma atitude” (!). São metacrenças — crenças que se dirigem à quantificação de probabilidades de verdade de crenças –, critérios que João usa para avaliar aquilo em que acredita, mas ainda são crenças. E são crenças rigorosamente contraditórias. A sutileza dos casos reais de inconsistência, como essa hipótese de João mostra, é quase ilimitada. Tenho certeza de que o leitor enfrenta esses problemas diariamente, mesmo que não os tenha formalizado. A formalização — que é aqui mínima, mas que se pode complicar consideravelmente — ajuda a explicitar esses problemas de um modo antes não imaginado. Se quisermos construir um robô que precise se decidir com base em um mapa do mundo ao seu redor, ele terá de agir com base em crenças semelhantes, computacionalmente formalizadas (é preciso programar detalhadamente, sem omitir nenhum detalhe, o comportamento do robô, i. e., é preciso ser exato). Na verdade, isso já é realidade em inteligência artificial.
Voltando ao chão do chão, quem não aceita os critérios acima dificilmente poderá ser admitido em uma discussão. Na verdade, deve ser excluído imediatamente dela. Por mais que privadamente, informalmente, pense e aja de modo incoerente, ao entrar em uma discussão racional a pessoa necessariamente tem de aceitar (1) e (2), sob pena de se considerar que entrou e que não entrou em uma discussão, simultaneamente, e que portanto estaria autorizado, contra toda racionalidade, a não responder sempre com coerência, fazendo-o apenas quando tivesse vontade. Às vezes é difícil vê-lo, mas rejeitar (2), por exemplo, implica rejeitar (1) e a acreditar virtualmente em qualquer coisa. Porque se rejeito (2), aceito que posso aceitar A, que implica B, e não aceitar B. Um exemplo de rejeição de (2): João ganha de seu pai autorização para ir até o centro da cidade, mas não se atreve a sair de casa, pois seu pai não o autorizou a ir até a porta de sua casa. Um contrassenso, não? Quem pode o mais, pode o menos. Mas isso acontece em discussões. Não raro alguém mostra ao seu interlocutor que, ao defender a tese de que o estado não deve interferir nas escolhas do indivíduo, ele também defende consequentemente que o estado não deve interferir nas escolhas (anti)religiosas, cinematográficas, sexuais, tabagistas e alimentícias do indivíduo, e que portanto o interlocutor também é contrário a que um canal privado de televisão seja compelido a exibir filmes nacionais (como diz um amigo, “filmes de terror”), ou que não se possa fumar em uma repartição pública. Não raro, também, vemos debatedores políticos que usam dois pesos e duas medidas: a esquerda não pode ofender ninguém, mas a direita está a tal autorizada, porque os coitadinhos são perseguidos etc.
Os dois critérios de racionalidade que apresentei são universais. Não há diálogo possível sem respeito a eles em uma discussão. Parecem óbvios, triviais, mas na prática a sua aplicação pode resultar obscura, como quando se logra fazer propaganda da incoerência apenas com o objetivo de defender o indefensável (basicamente, a conclusão é correta: se meu conjunto de crenças é inconsistente, posso defender literalmente qualquer coisa). Esse tipo de propaganda deve ser combatido usando-se contra os argumentos do indivíduo as próprias consequências infinitas e arbitrárias do seu conjunto inconsistente de crenças.
[Veja que, embora não sejam sinônimos, tratei aqui “inconsistente” e “incoerente” como sinônimos. Fica como exercício para o leitor o avaliar se fui consistente. Uma outra pergunta: quando acredito em uma coisa, num contexto, e precisamente na sua negação, em outro, sem mudança de significado, em que acredito? No que afinal consiste acreditar em algo, já que, ao que parece, é possível acreditar também no seu contrário, simultaneamente?]
Julio,
hum, que interessante este seu post.
Aprendi em aulinhas de ética e moral que para saber se o argumento é moralmente/eticamente aceitável é preciso levá-lo ao extremo e analisar as consequencias. Fazendo isso veremos que pouca, pouquíssima coisa, restaria no mundo. Que bom que a vida não é reta!
Dada a introdução, exigir este nível de coerência que você propõe, ao meu ver, só levaria a um mundo totalitário e fanático.
Segundo o catolicismo, eu posso mentir? Não. Então quando um bandido bate à porta e pergunta se há mais alguém em casa eu devo responder a verdade (no caso fictício): – Não! E aí ele invade e assalta porque eu estava sozinho.
Sim, mas… mas… mas…
Você esqueceu dos “mas…” Júlio.
A vida não é reta! Já diz a sabedoria popular que “Deus escreve certo por linhas tortas”, e torta é a vida. Além disso, há um problema gigantesco de linguagem; o que dizemos, na imensa maioria das vezes, não é realmente aquilo que acreditamos. Por maldade? Por ignorância? Não, simplesmente porque linguagem, mente e alma são coisas diferentes. Podem até se confundir, embora não acredite nisso, mas são distintas.
Na vida cotidiana a gente corta, emenda, remenda, faz conta de cabeça… E assim também se dá com os valores, com as atitudes, com as crenças.
Eu posso ser um excelente católico mas adotar atitudes que contrariem a tal coerência, ao menos o status quo. Exemplo? Uma pessoa que, para salvar empregos, recorra a práticas “não ortodoxas” na transferência de recursos para o exterior (qualquer semelhança com fatos acontecidos no Uruguai é mera coincidência). Um católico pode contrariar leis justas? Mas e no caso concreto? Aonde estão os deveres cotidianos do cristão?
Não, eu não confundo lei com justiça.
Júlio, eu entendo que os debates sejam ruins. Entendo que um mínimo de coerência deva ser exigido. Mas não posso esquecer que não há argumentação sem emoção. Ou você virou cartesiano agora e não nos avisou?
Ora, eu defendo que o estado tenha uma atuação mínima na vida individual. Mas entendo que o estado também tem o direito, ou melhor, o dever de proteger a sociedade de si mesma. Sim, eu sou contra uma proibição taxativa ao fumo. Mas eu entendo que o gasto absurdo com a saúde pública dos fumantes possa levar a uma injustiça gritante de elevar a contribuição dos não fumantes para tratar vícios e escolhas pessoas e individuais de outrem.
Eu sou contra qualquer restrição à liberdade de expressão, mas não acho que deva ser permitida uma passeata de nudistas em frente a colégio de crianças. Incoerente? Não. Os princípios convivem e dialogam entre si. Me parece que você esqueceu disso.
Aliás, me estranha, e muito, que você, um ardente defensor do independentismo, do casuísmo “ad hoc” na análise dos fatos e na tomada de posição, venha dizer, com todo o respeito, o contrário agora. Se aceitando uma ideologia existem esses supostos furos, quantos não existiriam em um mundo “ad hoclogiano”??
Por isso defendo que não há existência (humana) sem ideologia. O que não implica em adesão cega e irracional. Eu critico, e muito, minhas próprias escolhas lógico-filosóficas. Eu acredito no real, no material! Mas dialogo com a tal da construção social da realidade. Eu sou um liberal mas vejo com bons olhos teses da social democracia (vertente terceira via).
Talvez o verdadeiro problema seja a emoção ao defendermos nossas ideias. Exageremos e não percebemos que estamos sendo contraditórios. Mas antes isso do que um mundo feito de robôs cartesianos. Júlio, lembra das três leis da robótica? Você viu os filmes? Lembra do que acontece?
Ainda temos a questão da construção. Muitas vezes não temos ideias formatadas e prontas. Ao debatermos estamos também raciocinando, testando nossas ideias, percebendo furos. Mas precisamos de sustentação. Se não chegarmos a um debate com algumas ideias de muleta não sairemos dele, ao menos vivos! Hehe Eu posso dizer que acredito piamente na teoria da evolução, tal qual Darwin a definiu. Mas ao longo de diversas argumentações posso ver que ela não explica alguns furos de milhares de anos. Não daria tempo para ela, só ela, dar conta da evolução. Isso significa que sou incoerente? Muito pelo contrário, esta abertura para rever posições deveria é ser elogiada.
Finalizo dizendo: há também o pecado! Eu sei que a gula é pecado, mas quantas vezes caio… Serei impedido de debater a gula? Não me parece certo.
De que discussão você participou que te deixou tão cartesiano assim, de repente????
Caio, creio que contradições, muitas vezes aparentes, sejam o interessante na vida. Por que nos contradizemos? O que é acreditar em algo? Talvez lhe falte o gosto filosófico para captar a relevância da questão. Mas o fato é que, numa discussão, não nos podemos dar o luxo de ser contraditórios. Por isso creio que as ideologias são nefastas. Defender crenças contraditórias é uma ocorrência necessária para alguém movido por uma ideologia; e por isso previ ali a hipótese de alguém fazer propaganda da incoerência como sendo um expediente, na minha opinião, ilegítimo. Você, parece-me, caiu no ativismo.
E agora ser ‘cartesiano’ virou xingamento? Não penso, nem que eu mesmo seja cartesiano, nem que não se possa sê-lo legitimamente.
Mais, as sucessivas revisões de crenças podem ser entendidas como “voltar atrás”, ou mesmo desfazer-se de crenças antigas e incorporar novas. Nesses casos não há contradição, mas atualização; o resultado final é, tem de ser, consistente. Trata-se, como eu apontei, de um processo dinâmico. Moldamos nossas expectativas de acordo com as evidências e reavaliações de fatos. Isso tudo não pode ser inteiramente calculado, mas entender esse processo é um passo adiante na compreensão das nossas crenças. Em nenhum momento deixei de defender a prudência, que avalia sentenças e as compara com o que acreditamos de modo consistente. A prudência não é inconsistente, mas amiga da revisão. Não é porque não sou católico que vou jogar fora um critério como a prudência.
Só uma curiosidade: o símbolo ai no início do post foi para ilustrar como exemplo de contradição de crenças a dupla presença do conjunto de crenças maçônico e cristão na fundação do estado americano que muitos autores apontam?
Tenho que constatar certos enganos cometidos.
1- Há de se diferenciar os exemplos citados como se fossem todos na categoria de “crença”:
– Que a água ferva a 100ºC é uma verdade absoluta, pois que é um postulado científico, dado de uma constatação verdadeira. Sendo assim, é eterna.
– A descoberta do Brasil por P.A.C. é uma verdade histórica, passando a existir apenas a partir de 22/04/1500. Portanto e uma verdade indefinida, mas não infinita, pois que tem um início.
– O Corinthians ser o melhor time do mundo é uma mentira absoluta com potência de se tornar uma verdade indefinida.
No mais, os exemplos são falhos, pois a contradição de verdades é absolutamente impossível. Não posso dizer que 2+2 são 4 e 5 ao mesmo tempo. (embora muitos pais o façam para não chatear os filhos quando estes cometem faltas). Sem contar que sua citação estrangeira é desnecessária. Como disse Fernando Pessoa “Tudo vale a pena se a alma não é pequena” (“Totul este util dacă sufletul nu este mic”). Viu? Sem sentido e desnecessário.
as contradições inerentes à alma humana são de certa forma incompreensíveis, como impossíveis.
Isso ocorre porque há uma dualidade irracional e oposta impregnada no nosso ser.
A existência da matéria, como foi citado, é algo por si só irracional. Não há como conceber a sua existência, bem como sua inexistência.
Pessoalmente sou agnóstica quanto a existência do Papai Noel, por exemplo. Há diversas evidências de sua existência, bem como de sua inexistência. Eu sempre recebi e até hoje recebo presentes dele, mas há pessoas que não recebem. A contradição é portanto inútil para que se perceba determinada coisa e as evidências são pessoais e portanto indissociáveis do ser e da racionalidade, embora estes dois também tenham a existência questionável. É impossível a nós discernir o que existe e o que não existe. Como podemos provar nossa própria existência? Simples. Não podemos! Pois que uma conclusão dessas estaria impregnada de pessoalidade e experiências vividas. A afirmação de Descartes, por si só é falha, pois podemos pensar sendo personagens inexistentes de um sonho alheio. Qual o sentido disso? Não há sentido. E o sentido existe? Não sabemos. Eis a máxima de Sócrates.
Julio Sérgio, antes de apontar um engano, certifique-se de que você mesmo não se engana.
1) Todos os exemplos de crença citados são crenças. Acreditamos, ou com base na autoridade da ciência, ou porque o medimos nós mesmos, que a água ferve a 100 graus Celsius. Agora experimente ferver água em uma cidade que não esteja no nível do mar. Terá uma surpresa, e será obrigado a revisar a sua crença. Mesmo que a água fervesse sempre na mesma temperatura, seria uma verdade contingente, não necessária, “eterna”. As leis físicas funcionam para uma determinada disposição dos objetos no mundo. Um universo diferente exige leis diferentes; logo, essa verdade não é eterna. Ademais, você se enganou redondamente ao dizer que a temperatura a que a água ferve é um “postulado” científico. Sabe o que é um postulado? Os outros exemplos são todos de crença. O extremo seria afirmar que acredito que 2 mais 2 são quatro; ainda assim, é uma crença em uma verdade matemática, que portanto nunca será revisada (bem, estou acatando aqui a visão dominante em filosofia da matemática, de que verdades da aritmética são necessárias, o que não é, por outro lado, aceita por todos os filósofos; eu mesmo tenho dúvidas, preferindo deixar a necessidade às verdades lógicas, porque enunciados matemáticos muitas vezes dependem de algumas premissas sobre a quantidade de objetos no universo, como o axioma da infinitude, e outros axiomas relativamente controversos, como o axioma da escolha em teoria de conjuntos). Verdades históricas são contingentes, embora o passado, como tal, seja necessário; a mediação das fontes, contudo, faz com que elas estejam também sujeitas à revisão. Suponha que eu encontre três novas fontes autênticas sobre a descoberta do Brasil. Eu, como santista não praticante, também não acredito que o Corinthians seja o melhor time do mundo — nem se fosse corinthiano.
2) Ao contrário, os exemplos citados provam que caímos o tempo todo em contradição. Pelo princípio de não contradição, não podemos afirmar A e não A. Todavia, na vida diária o fazemos. É logicamente impossível sustentar, mas no entanto o fazemos, quase sempre sem perceber. Como lidar com esse fato? Não basta dizer que os exemplos são falhos (até porque eu os testemunhei, e muitos os confirmam) e dizer algo sem sentido em seguida.
3) Não fiz nenhuma citação estrangeira. É necessário para a distinção entre sentenças e proposições, a título de exemplo, mostrar que duas sentenças em línguas diferentes têm como conteúdo uma mesma proposição. Se você estivesse familiarizado com a literatura, nunca teria dito o que disse. Fernando Pessoa escrevia em português, caso não se lembre.
Procure pensar antes de dizer as coisas. Dá trabalho, mas compensa.
Vinícius: é uma interpretação possível…
O exemplo do cristão que cai em pecado não contradiz o que o post afirma.
Quando pecamos (adoto aqui o ponto de vista do religioso), há duas alternativas: (1) ou estamos cientes do pecado cometido; (2) ou não estamos cientes.
No primeiro caso, não há contradição. Suas crenças são consistentes — e é por isso que você procura o perdão de Deus. Um ato contrário a uma crença não invalidade nem contradiz a crença se for interpretado, precisamente, como um desvio, um erro, uma falha.
No segundo caso, também não há contradição. Se minha religião proíbe que eu pratique X, e se eu pratico X sem acreditar que eu tenha agido de forma contrária a um preceito de minha religião, aquela proibição não faz parte do meu sistema de crenças (e, portanto, não fui inconsistente em relação àquela proibição em específico). A inconsistência nesse caso diz respeito à própria adesão àquele credo. Se a religião proíbe X, mas eu acredito que X é permitido, tenho duas crenças contraditórias: acredito na religião, e acredito na não-proibição. Nesse caso é possível, ainda assim, salvar a consistência — basta que eu acredite que a adesão àquela religião em particular não implica em adesão a todos os seus dogmas (ou que a proibição de X não faz parte do conjunto de crenças que devo subscrever ao aderir àquela religião).
Enfim, o que quero dizer é que os erros e incongruências da vida cotidiana não afastam nem elidem a necessidade de consistência. Quando erramos, e estamos cientes de nossos erros, preservamos a consistência de nossas crenças. Podemos ter sido fracos ou termos uma falha de caráter, mas não fomos inconsistentes.
As ideias do ‘pecado original’ e da ‘imperfectibilidade humana’ têm sido usadas para derrubar a possibilidade de uma discussão racional. Não creio que isso seja útil, ou mesmo correto. Quando levada ao extremo, essa crença acaba redundando num relativismo puro e simples.
Lembro: o perdão de Deus aos pecados não os torna corretos. Um pecado é sempre um pecado. Praticá-lo não é torná-lo correto, nem incorporá-lo ao nosso sistema de crenças.
É difícil conceber que esse princípio de consistência de crenças de um indivíduo consiga extrapolar a simples prudência e se tornar um esquadrinhamento lógico da conduta do sujeito na vida, como o texto parece reivindicar com o que afirma através dos seus exemplos. Porque parece uma crença exagerada no sistema lógico, que estaria sendo usado para aferir algo muito mais múltiplo e paradoxal para ele e que dificilmente ele conseguiria esgotar.
Por exemplo, pensemos na nossa postura em juízos estéticos. Não acho que o elenco de obras-de-arte das quais nós gostamos seja necessariamente irracional no sentido de não poder ser descrito por um ou mais critérios aos quais o nosso gosto tenha certa fidelidade – pode dar trabalho e pode variar um pouco, pela dificuldade de se quantificar essas coisas, mas às vezes dá pra encontrar um vocabulário do porquê de certas coisas serem consideradas boas à luz de certos critérios. O problema é que, mesmo sendo otimista nesse caso, é um exemplo de algo que trabalha com valores *apriorísticos*: como cobrar consistência de crença em algo que pode abrigar valores tão diversos? E penso que, no mais, a relação com a vida está sujeita precisamente a isso: em um escrutínio lógico, certas posturas assumidas na vida podem ter como origem valores concorrentes elencados de maneira muito mais livre do que um mesmo plano de ideias a ser medido, e não sei se em todo caso a culpa é “da vida” em não se adequar à simplicidade de um mesmo plano de ideias. Se o seu patrão não é amigável com você mas o paga em dia, você deve acreditar que ele é um bom ou um mau patrão? O que é mais consistente? O elemento apriorístico sendo tão relativo na multiplicidade de coisas que se apresentam na vida não torna essa visão, como disseram, cartesiana muito pertinente, pra chegarmos a esse ponto extremo de a *cobrarmos* em absoluto da vida. Ou seja, se quisermos superar a simples prudência pra criarmos uma regra disso, teremos problemas tanto com valores muito distintos que concorrem pra definir uma mesma postura, quanto pra medirmos certos valores imensuráveis – o que neste caso eu até ignorei nesses exemplos pra tentar ser otimista.
Mas saindo desse extremo e pensando agora nesse princípio da consistência durante uma discussão dentro do próprio plano das ideias: é claro que concordo com o propósito da clara organização das premissas e dos argumentos em uma discussão, é o que torna a comunicação possível. Mas mesmo nesse caso gosto de lembrar que há exemplos retóricos em que uma contradição pode ter um efeito controlado para expressar certas ideias. Se aceitarmos que nem toda discussão assume ou exige o tom da lógica estrita, não é difícil reconhecer que a enunciação de uma contradição pode ter o efeito de gerar um pensamento crítico no interlocutor, etc. Mas cito isso apenas pra, de novo, pensar como esse princípio lógico da consistência não precisa ser uma regra tão generalizável e pretensiosa assim.
Na verdade, Leonardo, se eu encontrasse qualquer contradição no seu texto, para usar um exemplo atual e concreto de uma discussão, você seria o primeiro a pedir desculpas. Não é um ‘sistema lógico’ (não sei bem o que é isso) que tudo esquadrinha, mas uma regra de consistência que ninguém pode afastar sem sair da discussão. Quando uma contradição é usada retoricamente, a sua função é demonstrar ou reforçar uma tese, e não demonstrar uma tese e o seu contrário ao mesmo tempo. Portanto no fim das contas não existe contradição. Acredito que você se tenha confundido no seu comentário. E não vejo nada de errado em Descartes. Em todo caso, você é que parece estar lendo demais os franceses…
É que quando você dá especialmente o segundo exemplo, parece que você está se propondo a submeter a vida e as crenças de um indivíduo ao mesmo escrutínio que um argumento sofreria em uma discussão, e interpretar uma vida e suas crenças como proposições parece uma ideia tão motivada que nem sempre funcionaria de maneira pacífica (procurei ilustrar com os dois exemplos que citei). Mas claro, quando a questão já é uma discussão e a defesa de uma tese, consistência é nada menos que o sentido mínimo.
Difícil é não cair em contradição quando se fala de orientação política, uma pessoa que se defina esquerda/direita dificilmente vai estar de acordo com todas as ideias da orientação, eu sempre tenho dificuldade em explicar porque sigo tal orientação mas não concordo com tudo.
Anônimo, embora isso não seja tema do texto, o melhor talvez fosse não se identificar nem com a direita, nem com a esquerda, e julgar cada tese ou programa de acordo com o seu mérito. Não faz sentido comprometer-se previamente com um conjunto de teses prontas. A motivação dos ideólogos dos dois lados não costuma ser a verdade. Movem-nos uma pletora de razões quase nunca expressas, como a vontade de pertencer a uma igrejinha, a vontade de chocar, o gosto de denunciar iniquidades para sentir-se superior. Aprenda com os clássicos: fuja dos clubinhos.
Eu confesso que não tive muita facilidade pra ler e interpretar o texto (pelos comentários aqui não fui só eu…), eu me identifico mais com a esquerda, mas acho muito difícil discutir política no Brasil pq o pessoal é muito alarmista, tudo é o fim do mundo, me cansa tanto… vou seguir seu conselho!
Júlio
Acredito que um sujeito possua crenças incongruentes simplesmente por ainda não ter percebido esta relação entre elas. E também que, quando consegue enxergar sua incompatibilidade, seja pelo raciocínio, seja pela experiência, acaba por eliminar ou substituir ao menos uma delas.
Mas o que ocorre em casos como o citado, da interferência do Estado na vida privada? Não vejo incongruência. Uma pessoa pode acreditar que o Estado não deva interferir na vida dos indivíduos; mas isso não significa que tal pessoa deva acreditar que o Estado nunca, em hipótese alguma, deva interferir na vida do indivíduo. Não vejo a violação da regra 2.
Uma primeira crença é limitada pela segunda, que parece contrapor-se àquela mas que, na verdade, apenas subordina sua validade a determinado contexto. É como você disse em um dos comentários: (i) a água ferve a 100 graus Celsius, (ii) mas apenas ao nível do mar (1 atm). A temperatura de ebulição varia conforme varia a pressão. Ou seja, o contexto é variável, e a segunda crença exerce justamente o papel de contextualizar a (isto é, definir a validade da) primeira.
Assim, não deixo de acreditar na validade da primeira crença quando esta é afetada pela segunda. Acredito que o estado não deve interferir na vida dos indivíduos — dentro de certo contexto. E as implicações (A,B,…Z) devem subordinar-se a ambas as crenças, uma vez que sua relação não pode ser ignorada.
O que eu creio é que seja impossível uma pessoa manter crenças conflitantes quando sabe que são conflitantes. Isso, claro, considerando que a pessoa possui honestidade intelectual. E concordo com você: quem não está disposto a respeitar os critérios de racionalidade que você expôs, não deve ser aceito em uma discussão. Falácias são perdoáveis; falta de caráter, não.