Dizem que o formato do conto é o mais difícil porque exige do escritor uma disciplina e uma concentração de meios. Suspeito que a definição é incompleta. Além do conto, temos também a poesia, que, se não incorpora o drama narrativo de forma explícita, também possui uma lógica narrativa própria e que nos faz perceber que o seu próprio autor passou por uma trajetória parabólica de percepção da realidade.
Esta trajetória, seja no conto, seja na poesia, pode ser vista na obra de dois autores representativos da literatura brasileira atual. O primeiro é Luiz Schwarcz, com Discurso sobre o Capim e Linguagem de Sinais, ambos publicados pela Companhia das Letras. O segundo é Érico Nogueira, com seus O livro de Scardanelli e Dois, por sua vez lançados pela É Realizações (que, infelizmente, não conseguiu dar a divulgação adequada a um livro que, sem dúvida, merecia muito mais).
Cada um usa o formato breve do conto e da poesia para exorcizar seus respectivos demônios, mesmo que não saibam. No caso de Schwarcz, os demônios estão no palácio da memória, por assim dizer. Desde do primeiro conto do primeiro livro, “Sétimo andar”, até o último do livro mais recente, “Faro”, o leitor percebe que o escritor tenta construir suas narrativas a partir de experiências já vividas e agora retrabalhadas pelo filtro ficcional. Em termos estilísticos, seu manejo da linguagem e da técnica o aproxima muito mais de um Raymond Carver do que qualquer contista nacional facilmente reconhecível. Schwarcz está preocupado com as fissuras entre o real e a ficção – e como a memória as trabalha de maneira inusitada.
Se consegue transformar isso em uma experiência satisfatória para o leitor, isto é outra questão. O problema aqui não se trata apenas de “estetizar” a criação já feita – eis um tópico sobre o qual falaremos adiante; é perceber se o autor conseguiu transmitir a intensidade da experiência vivida através do formato breve do conto. Infelizmente, isso não foi alcançado. Em ambos os livros, Schwarcz não consegue desenvolver suas aptidões através de uma trama, de um mero enredo, mesmo que esteja escondido no estilo e no modo oblíquo de narrar. Afinal, um conto deve ter uma boa história, ainda que ela fique oculta, já nos ensinou Ricardo Piglia. Não é o que acontece: tanto em Discurso como em Linguagem temos momentos que poderiam ser reveladores para o leitor, mas que se transformam em – com o perdão da expressão – “coitos interrompidos”, em epifanias que deveriam ser epifanias e ficam apenas no meio do caminho, bloqueados pela pedra que se tornou a falta de ousadia do próprio autor.
Por sua vez, ousadia é o que não falta na pequena obra de Erico Nogueira. Seu Dois é infinitamente superior a O livro de Scardanelli, seu livro de estréia. Se Luiz Schwarcz se atém aos demônios de sua memória e de seu passado, Erico mergulha fundo no demônio de seu próprio hedonismo estético. Segundo Mario Vieira de Mello, é o próprio esteticismo que marca a característica principal da literatura brasileira no século XX e no início do XXI – e se observarmos que o poema é sempre a antena da raça, seria conseqüente que um poeta da estirpe de Erico, preocupado com ambições técnicas e temáticas, não escapasse desta arapuca.
O ponto é que ele escapa da arapuca – e com muita elegância. Em Dois, resolve mandar tudo isso para as favas e enfrentar a vida com as sombras que ela tem e que merece. Dividido em duas partes, o livro deixa claro que manda a poesia como solução existencial para o lugar que merece – ou, pelo menos, a poesia que aí está – e isso novamente o coloca em um novo impasse estético e existencial que, creio, só será resolvida em uma abertura metafísica não só para a própria vida como também para a tensão da linguagem poética. Tal tensão é carregada de brevidade, concisão e, sobretudo, concentração. O que deixa claro a razão do livro se chamar Dois: não se trata de um mero segundo livro e sim de um pequeno tratado sobre a dualidade da existência – e a decisão do próprio poeta de ficar no seu intermezzo.
Schwarcz não consegue demonstrar em que lado está do intermezzo da existência em seus contos. Sem dúvida, temos a brevidade, a concisão, mas não temos a concentração – ou melhor, a própria tensão. Há episódios instigantes – como, por exemplo, o do síndico, a descrição de um pai idoso ou o que acontece durante um vôo a Lisboa – mas a linguagem, apesar de uma certa precisão que tenta imitar o estilo tépido de Carver, não consegue elevar a consciência do leitor. Os contos não se sustentam simplesmente porque não dão o salto mortal. Eles sequer mergulham; parecem ser mais um recorte de rascunhos que poderiam ser melhor aproveitados no futuro do que reunidos em uma coletânea coerente de histórias.
Tal falta de concentração não existe em Erico ao fundir o formato do conto com o ritmo poético na parte intitulada “Deu Branco”. Depois dos poemas meditativos da primeira parte, inspirados nas Elegias Romanas de Goethe, em que o eu-lírico atravessa uma sequência de paradoxos que se avolumam até chegar a uma espera do silêncio que se anuncia com uma simples palavra – “Há.” – agora em “Deu Branco” , se temos a continuação do controle formal, também se busca algo novo, sem nome ainda, algo que faça o poeta encontrar o seu silêncio interior no meio do barulho da vida. E, sim, para muitos pode ser apenas uma série de poemas, mas que também se lê igual a um conto, com uma perfeita e cerrada estrutura dramática.
Afinal, já dizia a rainha Gertrudes que deveríamos narrar as coisas com more matter with less art. O conto e a poesia fazem isso de forma precisa e exata, como um teorema geométrico. Contudo, quando lemos um conto que não atinge este objetivo, ficamos tristes. É como se o autor não conseguisse vencer os demônios dentro de si mesmo. No caso de Luiz Schwarcz, isso fica nítido em suas opções estéticas, explicitadas nos posfácios de cada livro. Ao contar como nasceu a história de “Antônia”, que abre Linguagem de sinais, ele afirma que a sua ficção era mais instigante do que a realidade que vivenciou. Quem ler o conto e também a anedota que lhe deu origem saberá que, desta vez, o contista errou – e por um simples motivo: não respeitou a realidade tal como é, estetizando-a e não se abrindo para o intermezzo da existência que nos massacra todos os dias.
De todos os demônios a serem vencidos, sem dúvida o Mefisto esteta é o mais fácil de combater. Basta apenas ter a ousadia necessária. E isso foi atingido por um jovem poeta que, com seu segundo livro, mostra ao contista já maltratado pela vida de que a brevidade não é apenas uma questão de estilo, mas sobretudo de coragem.
Caro Martim Vasques da Cunha,
sou leitor de seus textos aqui da Dicta on line e da impressa também.
Tenho uma curiosidade, que me surgiu agora que li este Da brevidade e outros Demônios. Você já leu o Introdução as artes do belo do Étienne Gilson? Se leu, gostaria de saber o que pensa dele. (do livro, claro.).
Abraços
Ainda não li o livro, mas farei isto em breve. Abraços, Martim.
Martim,
de que autores voce esta falando quando fala que a lit contemporanea brasileira fala de favelados e problemas sociais? da quase falecida Patricia Melo?
Daniel Galera, Ricardo Lísias, Carola Saavedra, Cristovão Tezza, Bernardo Carvalho, Carol Bensimon, Joca terron. Nenhum desses autores hypados pela nossa crítica sequer encosta em favelados e problemas sociais.