Por Fábio S. Cardoso
Aos 92 anos, Antônio Cândido de Mello e Souza é o principal crítico literário do país. Ponto. E não é de hoje. Sobre isso, muito já se escreveu e é mesmo espantoso que apenas na nona edição da Festa Literária Internacional de Paraty ele tenha aparecido para dar o pontapé inicial no evento, com sua mistura de elegância carioca, cosmopolitismo paulistano e rabugice mineira. Por exemplo, ao dar uma pequena entrevista coletiva à imprensa – algo raro para quem já disse que estava aposentado da “vida intelectual” -, Cândido usou de todo o seu charme de gentleman para enfeitiçar os jornalistas, ainda que não parasse de reclamar dos achaques da idade ao viajar de automóvel pela sinuosa serra de Paraty; mesmo assim, um deles, uma mulher, ficou encantada com as palavras do Elder Statesman de La Rive Gauche e exclamou em seu twitter ao testemunhar os apupos efusivos do público quando o Mandarim da Crítica Literária nacional entrou no palco: “Ai que fofo!”.
Toda essa introdução se justifica não para apresentar quem dispensa “folha de rosto” ou contextualizações para não-iniciados, mas, essencialmente, para enfatizar que Antônio Cândido “frustrou” as expectativas de quem esperava por uma leitura acadêmica ou teórica sobre o homenageado da vez, o escritor modernista Oswald de Andrade.
Na platéia, o público, que já entronizava a figura de Antônio Cândido mesmo antes de ele subir no palco, alterava o seu estado de ânimo entre a comoção e admiração à medida que o professor discursava, seja porque o autor apresentou suas palavras com fluência acerca do tema proposto, seja porque é uma autoridade fundamental na crítica literária brasileira. E sua palestra foi, de um lado, a fala serena e sensível de quem conviveu com o homenageado e de quem, por outro lado, possui recursos ímpares para a interpretação da obra de Oswald de Andrade. Infelizmente, o professor emérito da Universidade de São Paulo esboçou pouca análise. Sobraram, isto sim, “causos”, como da briga com Mário de Andrade; ou de sua educação que contrastava com a verve provocativa e polêmica. À medida que as histórias eram reveladas, o público aprovava e se concentrava para ouvir mais. Cândido, aliás, enfatizou que Oswald soube utilizar a arma do riso, espécie de característica elementar do estilo do autor. Aqui é o máximo de interpretação que se ouviu do grande crítico literário brasileiro.
Os efusivos aplausos coroaram a palestra de Antônio Cândido, que, com um gesto, agradeceu.
A verdade é que o encontro poderia ter terminado ali mesmo. Mas, agora o público recordava, era a hora e vez de José Miguel Wisnik (o professor-cantor das aulas-show em São Paulo). Para além das teorizações sobre a música popular brasileira, Wisnik, figura carimbada da Flip, é autor de “Veneno Remédio”, obra que dá um verniz intelectual-uspiano ao futebol brasileiro. Na obra, o autor é capaz de esgarçar a ideia de pós-modernidade ao comentar as jogadas do Ronaldinho Gaúcho (“seus dribles são citações”, reflete Wisnik). Ao contrário de Cândido, Wisnik merece essa introdução para que sua fala sobre Oswald de Andrade seja justificada. O palestrante esbanjou erudição, apresentou à platéia as teorizações nem sempre acessíveis ao público comum (sobretudo a partir da linguagem utilizada) e, por fim, desferiu um name-dropping excessivo aos ouvidos do público, que, aos poucos, começava a se movimentar na cadeira.
Assim, embora tenha falado por menos tempo do que Antônio Cândido, a participação de Wisnik parece ter durado muito mais, como comprova a senhora que dormia tranquilamente enquanto o teórico comentava a questão da alteridade e do pensamento oswaldiano que existia para além da panacéia da antropofagia. Mas era evidente que Wisnik não contava com a mesma naturalidade, mesmo que tenha se preparado de forma consistente para a tarefa. O clima era bastante modorrento até que, numa dessas formidáveis ginásticas do discurso, Wisnik articulou a posição a favor da revisão dos direitos autorais com o texto de Oswald, que, em um de seus livros, manifestou desejo que seus textos fossem livremente disseminados em detrimento do copyright. Wisnik ponderou a atualidade desse debate. E foi candidamente interrompido pelo aplauso da platéia. É bom lembrar que, momentos antes, as câmeras registraram a presença de Ana de Hollanda – a ministra da Cultura, até aqui, é umas das principais adversárias das plataformas progressistas da distribuição de conteúdo nos meios eletrônicos.
Noves fora o comentário com viés político (antes dele, Antônio Cândido fez questão de enfatizar que Oswald de Andrade se mostrava incomodado com as diferenças sociais), o debate seguiu com mais presença literária e acadêmica. Ao fim, Wisnik encerrou com citações extraídas dos textos do autor homenageado. Entre as memórias sentimentais de um acadêmico e as teorias fora de lugar do mestre de cerimônias, talvez não seja o caso de analisar como um desastre. Mas também é correto afirmar que não se trata da melhor abertura de Festival Literário que se tem notícia. Em especial, porque o homenageado em questão talvez merecesse outra leitura, algo que ficasse entre o singelo e a deferência. Mas, a julgar pela reação do público, talvez o verdadeiro homenageado da noite tenha sido Antonio Cândido.
Fábio S. Cardoso é jornalista e professor universitário.