por Mendo Castro Henriques
Introdução
Bernard Lonergan (1904-1984) foi, provavelmente, o mais importante filósofo do século XX. Antes de justificar esta afirmação, será útil constatar que tem seguidores em todom o mundo; que a sua obra principal Inteligência: um ensaio sobre o conhecimento humano, a ser publicada em Portugal, está editada em quatro das geolínguas; que existem mais de uma dezena de centros dedicados à sua obra; que a bibliografia sobre o seu pensamento alcança mais de mil monografias e artigos; e que por ano se realizam quase uma dezena de colóquios sobre ele.
No entanto, a esmagadora maioria das pessoas nunca ouviu falar de Bernard Lonergan.A maioria dos filósofos e teólogos apenas identifica um nome e uma obra. A maioria dos economistas, epistemólogos e cientistas sociais nem o nome identifica. Contudo, esse autor escreveu com preparação profunda sobre disciplinas tão diferentes como ética, economia, epistemologia e teologia. Também é verdade que um autor capaz de analisar com rigor assuntos tão díspares como o método de São Tomás, a psicologia freudiana, a teoria económica de Keynes, e as teorias de Newton, Einstein e Max Planck (com equações matemáticas como trufas raras para connoisseurs) parece ou um enciclopédico ou um paranóico convencido.
Sucede que, para o apreciar, é preciso ainda uma forte dose de realismo espiritual e de liberdade perante os poderes mundanos, condições hoje desfavorecidas nas universidades. E como revelam os debates sobre o seu pensamento, para ser atraído por Lonergan é preciso conhecer a tradição clássica e cristã e ter independência de espírito suficiente para elaborar pessoalmente os resultados.
Lonergan nasceu em 1904, em Ontário, no Canadá; o pai era engenheiro de ascendência irlandesa e a família da mãe era inglesa. Aos treze anos, trocou a casa pela Faculdade de Loyola, uma escola jesuíta em Montreal, e de lá entrou para o noviciado na cidade de Guelph.
Frederick Crowe, S.J., descreve os anos de aprendizagem de Lonergan nesse mundo anterior ao Concílio Vaticano II: havia “leituras sobre a vida de Cristo e dos santos, a Imitação de Cristo, sobre documentos jurídicos e espirituais jesuítas, o velho Afonso Rodriguez (1532-1617) – a prática da perfeição e das virtudes cristãs. Havia as instruções do mestre aos noviços […], as ‘exortações’ pregadas por austeros sacerdotes da comunidade, e assim por diante. Havia as penitências, a publicação das faltas – admitidas voluntariamente ou indicadas pelos companheiros em ágapes transbordantes -, e havia muita oração […], a mais lenta de todas as práticas a aprender”.
Era uma vida que ensinava a disciplina e o estudo sério, embora de modo um pouco rígido e restritivo; serão marcas do trabalho de Lonergan. Em 1926, foi para Inglaterra estudar filosofia, regressando ao Canadá para ensinar na sua velha escola de Montreal. De 1933 a 1937, licenciou-se em teologia em Roma. Não foi um aluno premiado, mas desenvolveu ambições intelectuais exemplificadas por uma carta de 1935 a um superior: “Consigo elaborar uma metafísica tomista da história que ofuscará Hegel e Marx, apesar da enorme influência deles nessa obra. Tenho já escrito um esboço, disso como de tudo o mais. Examina as leis objectivas e inevitáveis da economia, da psicologia (ambiente, tradição) e do progresso…, para encontrar a síntese superior destas leis no Corpo Místico”. Não escapará ao leitor que Hegel e Marx não eram leituras recomendadas para um jovem sacerdote em Roma e, ainda mais, na Itália fascista. Mas fica bem claro como ele era já audaz, capaz de pensar sem imprimatur. E também fica claro que o corpo místico de Cristo é, desde São Paulo, um dos conceitos mais integradores da teologia.
Os registros da Universidade Gregoriana em Roma mostram que, a 6 de dezembro de 1938, a dissertação de Lonergan intitulada O pensamento de São Tomás sobre a graça operativa foi aprovada para apresentação, sendo completada em 1940. Segundo as suas palavras, “…demorei anos até atingir a mente de São Tomás de Aquino” [1]. Até 1949, continuou a publicar artigos sobre a tradição tomista e, mais especificamente, sobre o processo de conhecimento, deslocando-se das perguntas teológicas sobre a graça para as questões filosóficas sobre a interioridade, isto é, como Deus se revela na consciência.
Após 1949, Lonergan redige Inteligência: Um estudo do conhecimento humano, publicado em 1957. O livro tem 875 páginas na edição definitiva, da Universidade de Toronto; são muitos os que confessam nunca o ter lido por inteiro e poucos o leram com plena compreensão. A escrita é laboriosa, com evidente peso das expressões do latim escolástico. Mas é, talvez, um dos únicos tratados filosóficos que integra o conhecimento humano tal como se apresentava em meados do século XX com uma soma e complexidade que ultrapassavam em muito as situações epistemológicas racionalizadas por Platão e Leibniz.
O escopo da obra é imenso: “A auto-apropriação da nossa autoconsciência intelectual e racional começa como teoria cognitiva, expande-se para uma metafísica e uma ética, e avança para uma concepção e uma afirmação de Deus, para ser finalmente confrontada com o problema do mal que exige a transformação da inteligência autoconfiante no intellectus quaerens fidem” [2].
Se tiver realmente cumprido estes objectivos, bem poderá dizer-se que Inteligência foi a mais importante obra de filosofia do século XX. Aqui, apenas esboçarei cinco temas principais: as relações entre conhecimento e realidade, conhecimento científico e cosmologia, acção humana e ética, as questões de interpretação, e a relação entre natureza de Deus e filosofia.
Conhecimento e realidade
Sendo objectivo da obra a auto-apropriação do sujeito que se descobre no método transcendental subjacente a todos os tipos de discurso, Inteligência parece ser intelectualista. Mas, paradoxalmente, é um livro sobre o desejo, “o desejo irrestrito, imparcial e desinteressado de conhecer”. Conhecer não é o mais difícil: para isso consulta-se a internet, aprende-se uma ciência, freqüenta-se a universidade, escuta-se um conferencista. Difícil é saber de onde vem o desejo de conhecer e o que se passa na consciência quando conhecemos.
Lonergan integra os vários domínios do discurso mediante uma filosofia da consciência; o conhecimento procede segundo intelecções que são comuns às ciências exactas, às ciências humanas, à filosofia, à teologia filosófica e ao senso comum. A intelecção sucede quando alguém compreende e responde a uma questão suscitada por uma experiência. Não há regras para a intelecção. Pelo contrário: a intelecção é que origina as regras. Não se aprende com um método; os diversos métodos é que resultam dos actos de intelecção.
O princípio central desta teoria cognitiva é que se atinge o conhecimento pelo processo de experiência, entendimento e juízo. A experiência dá-nos peças soltas de informação. O entendimento capta uma unidade. Mas o conhecimento apenas fica completo com o acto humano de juízo que capta uma realidade como “virtualmente incondicionada”. Esta teoria cognitiva distingue entre acto e conteúdo, unidos por uma relação de intencionalidade. O visto é diferente do acto de ver, o pensado é diferente do acto de pensar, o feito é diferente do acto de fazer.
Se a correlação de conteúdos é do âmbito da ciência, a correlação dos actos interessa à teoria do conhecimento. Todo o conhecimento do virtualmente incondicionado baseia-se numa captação das condições do conhecido e do facto de que essas condições estão cumpridas. O conjunto destas condições é o que ocorre na consciência. Assim, no acto cognitivo existe um elemento superior ao conteúdo que o diferencia de ocorrências inconscientes. E o laço entre o condicionado e as condições reside na proposição “eu sou um sujeito cognoscente” – ou seja, uma consciência.
Ultrapassando a tendência natural para a extroversão, que situa a realidade como um conjunto de fenómenos no mundo exterior “agora lá fora”, o grande questionamento que conduz à experiência directa do ser começa pela atenção aos nossos próprios processos intelectuais. Com Lonergan, “o objectivo não é determinar uma lista das propriedades abstractas do conhecimento humano, mas ajudar o leitor a efectuar uma apropriação pessoal da estrutura concreta, dinâmica, imanente e recorrentemente operativa das suas próprias actividades cognitivas”. Por outras palavras: para pensarmos eficazmente, temos de tornar-nos cientes dos actos que modelam o modo como pensamos. É então que começamos a conhecer os nossos princípios e preconceitos, as nossas limitações e os nossos recursos.
Conhecimento científico e cosmologia
Se o senso comum trata das relações das coisas connosco, a ciência trata das relações inteligíveis das coisas entre si. O paradoxo bem resolvido dos métodos de investigação científica é que servem para conhecer o que ainda não se conhece e o êxito da ciência resulta de investigar correlações ainda não especificadas e funções ainda indeterminadas.
Nas estruturas heurísticas da ciência clássica – desenhadas desde Galileu e Newton – antecipa-se uma inteligibilidade adquirida por intelecção directa. A especificação obtém-se através de medidas tabeladas. As intelecções obtidas são apresentadas através de uma correlação geral , desejavelmente expressa numa função matemática, a qual, uma vez verificada, define um limite para o qual convergem as relações entre medidas futuras. Uma vez que os dados e as previsões convergem, as deduções tornam-se possíveis.
A ciência contemporânea criou novas estruturas heurísticas de tipo estatístico. As deduções são restritas ao curto prazo e as previsões limitam-se a indicar probabilidades. O método estatístico analisa um processo não-sistemático para o qual não existe uma intuição única abrangente. Uma conseqüência importante é que, enquanto o processo sistemático é monótono e reversível, o não-sistemático admite novidades.
Cabe à filosofia descrever as propriedades gerais de um universo a que se aplicam, simultaneamente, leis clássicas e estatísticas. Autores como Jacques Monod continuam a falar de acaso e necessidade como propriedades mais gerais desse universo. Bernard Lonergan propõe uma cosmologia diferente. As leis clássicas indicam o que acontece, uma vez reunidas condições necessárias; as leis estatísticas indicam a freqüência com que se espera que essas condições se reúnam. A investigação clássica preocupa-se com o que se passaria, mantendo-se constantes outros factores. A investigação estatística, com agregados de acontecimentos, ou ocorrências. Sejam movimentos de moléculas, partículas nucleares, saldos de natalidade ou fluxos financeiros, cada acontecimento isolado obedece a leis clássicas e a probabilidades de ocorrência – aquilo em que as freqüências efectivas divergem não-sistematicamente. O universo não funciona segundo concepções necessitaristas nem segundo a teoria do caos, ambas deterministas. Dado tempo e espaço suficientes, é mesmo possível e altamente provável que se realizem as possibilidades mais remotas desde o Big Bang. Parece ser deste género a emergência do fenómeno humano.
Esta cosmologia da “probabilidade emergente” contrasta com visões anteriores. A ciência antiga, de tipo aristotélico, distinguiu entre o necessário e o contingente, o que acontece sempre e o que acontece ocasionalmente. Hoje dir-se-ia que os “movimentos necessários do céu” são esquemas ou processos de recorrência que implicam outros esquemas mais complexos de recorrência. A ciência clássica do tipo de Galileu criou a explicação científica de como os elementos se relacionam, mas a “falácia do concreto mal colocado”, segundo Whitehead, amarrava essas leis a supostos “comportamentos de partículas materiais imaginadas”. O resultado é o mecanicismo.
A partir de Darwin, a probabilidade começa a ser utilizada como princípio explicativo porque uma planta ou um animal podem entrar num certo processo de evolução. Tal como a variação casual é uma instância da probabilidade de emergência, assim a selecção natural é um caso de probabilidade de sobrevivência. Com a teoria quântica, ficou estabelecido que também as partículas sub-atómicas podem saltar de órbita para órbita em torno do núcleo e a ciência do século XX generalizou esta presença do não-sistemático.
Uma conseqüência desta cosmologia é o reconhecimento da existência de estratos de ser no cosmos a que correspondem sucessivos níveis de pesquisa. As relações assistemáticas no plano físico apontam para pluralidades sistematizáveis num nível químico, sem violar as leis do domínio sub-atómico; o nível biológico permite sistematizar as ocorrências erráticas no plano químico; o nível psíquico de sensação e conhecimento introduz uma ordem explicativa face aos resíduos biológicos; o nível racional de intelecção introduz a reflexão, a deliberação e a escolha.
Conseguindo as ciências descobrir eventos e esquemas de recorrência segundo os quais as coisas acontecem, cabe à filosofia interrogar-se sobre “o que uma coisa é”. A resposta de Lonergan é que uma coisa implica uma unidade e identidade entre os dados dos sentidos de cuja existência nos apercebemos através de juízos. As coisas são extensas no espaço, permanentes no tempo, sujeitas a mudança, possuem propriedades e estão sujeitas a leis e à necessidade. Muitas vezes nem são objecto directo de experiência. Uma coisa não é um corpo, “agora aí fora”, como sugere a extroversão, mas sim um todo inteligível.
A noção de coisa permite introduzir o conceito de desenvolvimento. O desenvolvimento não é o que sucede, segundo as leis clássicas, nem o mais provável, segundo as leis estatísticas. É o modo como uma coisa muda e se adapta com o tempo. As seqüências em que as correlações e as regularidades se modificam são estudadas pelo método genético. Por exemplo, as espécies biológicas são séries de soluções para a sistematização dos agregados coincidentes dos processos químicos. O ponto essencial do método genético é acertar no operador, que explica a inteligibilidade da mudança de uma fase para outra.
Em resumo, quanto às ciências: o método clássico antecipa um sistema verificado pelos fenómenos; o método estatístico antecipa que esse sistema não é constante, e o método genético antecipa a seqüência mutável de sistemas. Para inteligir as relações entre os vários estágios dos sistemas criados pelo homem é necessário o método dialéctico, usado pelas ciências humanas.
A acção humana e a ética
Pode afirmar-se que, em Inteligência, Lonergan está simultaneamente a escrever uma Crítica da razão prática e uma Crítica da razão pura. Na esteira dos grandes realistas filosóficos, considera que os fenómenos que experimentamos e a ordem inteligível em que se inserem são aspectos do mundo objectivo e real. Os idealismos críticos e fenomenológicos atribuem à mente humana essa ordem inteligível e negam que ela exista na realidade. Bernard Lonergan demonstra que a imposição de quadros conceptuais à experiência através de actos de intelecção exige o ser, ou o “virtualmente incondicionado”, porque o ser é, simplesmente, “tudo o que há para conhecer”
O objecto do conhecimento é o mundo tal como ele é, o “universo da probabilidade emergente” que se pode desenvolver segundo vias diferentes. Nele, o homem realiza escolhas para que o possível se torne mais provável e, oportunamente, actual. Como opera com juízos de valor, deliberações e escolhas, constitui um horizonte de sentido mais amplo que os actos de conhecimento. As deliberações e o seu desejo constitutivo do bem – e do mal – são mais primordiais que o desejo de conhecer a verdade. Por isso Lonergan convida o sujeito humano a apropriar-se do que significa ser um agente, “um sujeito que escolhe”, e desloca a sua teoria da intelecção do exercício intelectual para o exercício existencial. O sujeito e a comunidade humana são convidados a apropriar-se do que significa agir e do que significa escolher.
Como agir? Que fazer? O que devo escolher? Como demonstrou Gadamer, as respostas às canónicas questões kantianas dependem das tradições do senso comum, filtradas pela experiência pessoal e histórica. Na acção humana, os sentimentos sobre pessoas e situações são a chave da decisão. Que é um sentimento? Como emerge? Que papel tem? Como se relacionam com os actos de intelecção e juízo? Em Método na Teologia, Lonergan designa os sentimentos como a fonte “da massa, do momento, da movimentação e do poder” [3] da consciência intencional e considera prioritária a compreensão desses sentimentos para orientar as nossas escolhas e acções num mundo por vezes absurdo e, infelizmente, perverso.
Na acção humana, a variedade de estratos do universo impõe diversos padrões de experiência. No padrão biológico de experiência, as relações inteligíveis ligam seqüências de sensações, memórias, imagens e movimentos, para realizar os fins de intussuscepção, reprodução e preservação. O padrão estético liberta o homem dos impulsos biológicos e das limitações práticas. Com o padrão intelectual, a memória mobiliza situações que comprovam ou invalidam os juízos e a imaginação antecipa possibilidades que verificam ou falsificam uma teoria. Mediante o padrão dramático, o animal social descobre os papéis que representa na sociedade.
As leis clássicas e estatísticas combinam-se para gerar recorrências nas acções humanas que funcionam segundo um esquema em que se X, então Y, e se X ocorre, então Y recorre. A população cresce, o capital acelera a produção, os governantes geram decisões políticas. Mas atenção: a acção humana é livre. A população pode decair. A expansão tecnológica pode parar. A economia pode regredir. A sociedade pode perder coesão, as crises serem mal geridas e originarem uma revolução. Por tudo isto, a probabilidade emergente combina-se com a liberdade na vida humana. Os processos sociais e políticos são inteligíveis porque podem ser entendidos como trabalho da probabilidade emergente, e são inteligentes porque são o fruto de decisão. O que é mais provável num país não o é noutro, porque a diferença não resulta de dados materiais externos, mas de um conjunto de intelecções disponíveis e operantes na sociedade. O senso comum prático consiste, tal como a ciência, numa vasta acumulação de intelecções, mas não coloca questões de ordem teórica porquanto se limita a soluções imediatas. É uma especialização da inteligência no particular e no concreto, mas sofre pressões deformadoras, desde os idola fori às “escotoses” e neuroses da inteligência pessoal.
O problema da interpretação
Uma quarta unidade temática desta filosofia é o “conhecido desconhecido”. Encontramos mais questões que respostas, pelo que o desconhecido aparecerá estranho e misterioso em oposição ao familiar e previsível. É o domínio do mistério e do mito de que se ocupam a história da cultura e a religião, e que exige uma teoria da interpretação para compreender os símbolos, ou seja a significação das palavras e acções, em qualquer tempo e lugar, e como expressão das fases da evolução do conhecimento humano de si e do mundo [4].
Tal como a personalidade se forma mediante juízos de valor e decisões, é das relações pessoais criadas por juízos de valor depositados em símbolos que se formam as comunidades, muito mais do que de uma base genética comum. O homem é um “animal simbólico” e criador de histórias, que são a estrutura em que os significados emergem, com enredo, personagens, começo e fim. O enredo fixa o relacionamento dos personagens entre si, e o relacionamento dos personagens modifica o enredo. A nossa vida está permeada pelas histórias contadas por sinais. E o que nasce como história contada à volta da lareira, na praça pública ou nas universidades, acaba por transmitir o horizonte da existência e tornar o homem um actor responsável no drama da humanidade.
O desejo de conhecer enraíza-se no mistério da existência. À medida que progride a tarefa de auto-apropriação, torna-se evidente que o mistério é decisivo para explorar novos horizontes e formular novas perguntas. Este horizonte, de tipo agostiniano e pascaliano, ganhou relevo nas obras posteriores a Inteligência em que Lonergan reconheceu o conceito de amor. Afinal, a grande razão de responder ao convite de Inteligência é que o convite é irresistível porque somos atraídos pelo que o mistério desperta em nós.
Os “exercícios intelectuais para cinco dedos” que seriam a obra Inteligência só são possíveis se nos “apaixonarmos” por essa conversão intelectual. Esta paixão implica um novo patamar de intelecção, a ser acrescentado à experiência, entendimento, reflexão e responsabilidade. Os sentimentos transformam-se em elemento crucial do projecto lonerganiano para trazer unidade às disciplinas do saber humano.
Todas as narrativas humanas se enraízam em uma experiência concreta. Se essa experiência se perdeu, a história narrada transforma-se em mito inquestionável e mudo. Mas se a experiência é transmitida por uma comunidade de sentimentos, ou “coração”, a história passa a ser sagrada e eterna. Assim, o “coração” é ponto de partida para a compreensão correcta da existência num patamar superior de intelecção. Caso se deixe absorver pelo subjectivo, perde o sentido do mistério. Mas se for suficientemente atento, inteligente, razoável e responsável, integra a existência. Somente um ser humano que ama pode apreciar as possibilidades inerentes ao acto da compreensão, porque o acto de intelecção não fundamenta só o conhecimento: também fundamenta a escolha do mundo mediante as decisões e as acções de todos.
Deus e a filosofia
Uma quinta unidade abrange temas como a natureza de Deus, argumentos sobre a Sua existência, o problema prático do mal, a compreensão em busca da fé, e fé e Humanismo.
A partir do desejo ilimitado de conhecer, a consciência humana ascende à concepção de Deus e confronta-se com o problema da permanência do mal. Este só pode ser enfrentado mediante uma solução que implica a graça divina e que respeite a liberdade do homem. Deste modo, a inteligência que confia em si mesma transforma-se em intelectus quaerens fidem.
Bernard Lonergan não admite argumentos ontológicos nem cosmológicos sobre a existência de Deus. Nem a concepção coerente de Deus nem a existência do mundo implicam que Ele exista. “Deus existe” é uma frase que só pode ser transformada em proposição analítica mediante definições apropriadas de “Deus” e “existência”. Mas, para isso, é preciso reconhecer que os termos definidos não ocorrem na experiência interna nem na externa, e sim no termo de uma reflexão crítica sobre a unidade da experiência do divino.
O ser humano está em permanente estado de desenvolvimento. Se somos independentes e transcendemos o empírico, a fortiori o faria um acto ilimitado de compreensão que entenderia tudo em todos e que seria imaterial, inextenso e intemporal, ou seja, Deus. A existência de Deus não se verifica pela afirmação racional a priori nem pela experiência a posteriori mas pela conclusão de um argumento que é o seguinte: se o real é completamente inteligível, Deus existe; ora o real o é; logo Deus existe. Se aplicados os três tipos de causas externas – eficiente, final e exemplar – que respondem às questões “quê”, “para que fim” e “segundo que modelo”, à afirmação “o universo existe”, genericamente encontraríamos um primeiro agente, um fim definitivo e um exemplar primordial do universo.
No termo de uma análise poderosa que ocupa os capítulos 19 e 20 de Inteligência, aqui não resumida, concebemos que um ser sem resíduo de facto, e capaz de tudo explicar, teria que ser um acto ilimitado de entendimento que compreendesse todos os mundos possíveis. Para mostrar que existe um entendimento ilimitado cuja vontade funda o mundo como ser livre, eterno e criador e mantenedor do tudo que existe, Lonergan vai eliminado possibilidades. Tem que ser um só; não pode ser necessário; não pode ser arbitrário. Mas o que é inteligível sem ser necessário nem arbitrário é o que decorre livremente da escolha de uma consciência racional. Assim, Deus é inextenso e intemporal. É criador porque faz emergir o mundo a partir do nada. É pessoal porque é consciência de si racional. É causa do mundo porque o mundo depende dele. Em resumo: a existência de Deus e de tudo o que existe é inteligível; e isso é possível porque existe o acto ilimitado de inteligibilidade.
Admitindo que há criação e que a vontade divina é eficaz, parece que Deus é responsável pelo males do mundo que podem ser físicos, morais e radicais. Os males físicos decorrem das insuficiências de uma ordem do mundo que resulta da probabilidade emergente generalizada. O mal moral consiste na falha da liberdade em escolher as acções boas e em rejeitar as censuráveis. Os males físicos e morais seriam o mal radical se o critério definitivo do bem e do mal fossem o prazer e a dor. Mas se o critério do bem é a inteligibilidade, o mal radical resulta dos actos humanos que Deus não quer, mas que não proíbe. A única justificação da permissão divina do mal radical é que possibilitou criar o homem como um ser que possui consciência e liberdade. Ainda assim, o mal radical é incompreensível porque resulta de deficiência na inteligibilidade das acções de um ser inteligente e racional. Na sua origem, existe um “mistério da iniqüidade”.
A articulação do problema do mal fornece uma estrutura heurística que permite descrever as características gerais da solução do problema. Uma vez alcançada a estrutura da solução, podemos apelar para os factos:
1) a solução será uma só, uma vez que existe um só Deus, uma ordem mundana e um indivíduo, e um só problema social do mal;
2) a solução será universalmente acessível e permanente, porque o problema se estende a todos os tempos e classes;
3) a solução dá continuidade à ordem já existente no universo.
A realização da solução exige uma meditação sobre a história e a participação em rituais que controlam emoções e purgam tendências agressivas. A solução comporta verdades reveladas que os homens nunca descobririam por si, ou que não compreenderiam. Os que souberem da existência da solução têm o dever de anunciar a boa nova e de a propagar. A tendência emergente da solução e realização da solução está escrita nos factos históricos do povo de Israel e culmina nas palavras e actos de Jesus Cristo.
Um humanismo consistente deve conter a solução do problema do mal e não poderá ser um humanismo revoltado contra o divino e que condene a experiência do mistério como um mito e que exalte a razão contra a fé. Um verdadeiro humanismo reconhece que a razão está orientada para Deus mas reconhece as limitações dos que professam a fé. Se o homem seguir o desejo irrestrito de conhecer, encontrará verdades sobre Deus e descobrirá a única solução contra o mal na graça sobrenatural que respeita a liberdade humana. O papel da filosofia é criticar os absurdos sociais e a carapaça protectora dos mitos e propagar estas verdades libertadoras. Assim termina a a magna obra de Bernard Lonergan.
Apreciação geral
A razão e a modernidade triunfantes têm sido criticadas pelas mais diversas correntes filosóficas que realçaram a finitude do ser humano e a necessidade de contextualização do conhecimento e da normatividade racionalistas. Essas críticas surgem na “nova ciência” de Giambattista Vico e na crítica de Hegel à filosofia moral de Kant; nas objecções de Dilthey à filosofia hegeliana da história; nos antropólogos Evans-Pritchard e Malinowski; na noção husserliana de Lebenswelt; no conceito analítico do “fundo” em Searle; nos “jogos de linguagem” de Wittgenstein; no princípio do conhecimento segundo “paradigmas” de Kuhn; na épistème de Michel Foucault; no “universo simbólico” de P. Berger e N. Luckmann. E Gadamer criticou o racionalismo do iluminismo, o “preconceito contra os preconceitos”.
Em meados do século XX, no eixo filosófico franco-alemão, este reconhecimento das insuficiências da modernidade gerou, ou degenerou, numa atitude de relativismo e cepticismo. Esse “pensamento débil” pós-moderno de Lyotard, Vattimo e Derrida anuncia a impossibilidade de uma matriz epistemológica universal, apela para interpretações de tipo nietzscheano e induz uma cultura fragmentária com perda do sentido de comunidade. O mesmo diagnóstico surge na teoria crítica da escola de Frankfurt, com Jürgen Habermas e Karl-Otto Appel. A cultura universitária norte-americana ameaçada do que Harold Bloom chamou de “clausura” acolheu estas sugestões europeias como o fim do sonho do que Rorty chamou “a medida universal” [5].
Tal como outros grandes realistas espirituais do século XX, Bernard Lonergan segue um caminho oposto ao do relativismo e liga a razão às experiências espirituais. A consciência humana orienta-se para a transcendência mas parte sempre de uma determinada orientação afectiva. Enquanto pré-reflexivo, o homem conhece antes de avaliar o que conhece. Escolhe, antes de avaliar o que escolhe. E como o mundo existe a partir das escolhas e acções do sujeito; como o que sabemos é o resultado de um misto de acção e inacção; como o que se escolhe é o que se julga ser valioso; e como o que se julga ser valioso é uma função do desenvolvimento, o que está em jogo é o valor e predomínio das grandes narrativas e das histórias que disputam o sentido da existência humana, com suas escolhas e valores.
Cabe à filosofia superar as narrativas dominantes da nossa época – “fim da história”, “choque das civilizações”, “luta pela sobrevivência”, “governo dos mais fortes”, “paz pelo comércio” – com as verdadeiras histórias de salvação que aceitam a “comunidade do espírito” e que deveriam ser instrumentos de redenção social.
Com base nesta concepção, podemos identificar cinco grandes orientações de Lonergan – que ele gostosamente chamaria de “cosmópolis” ou “perspectiva universal” – para os desafios do pensamento no início do século XXI:
a) O pensamento crítico é bem-vindo, mas sem aprisionar a história nas malhas da razão. Paul Ricoeur fala de uma aporia entre a reabilitação gadameriana da tradição com o fim do “preconceito contra o preconceito” e a defesa habermasiana de uma cultura emancipadora da razão. Lonergan supera essa aporia ao suprimir a contradição entre a tradição e a crítica.
Se a tradição, como Alasdair MacIntyre confirma, é a interpretação em curso do significado do passado, a crítica “não está inerentemente fora dos limites da tradição, a menos que a tradição seja essencialmente inautêntica” [6]. A hermenêutica do ser dotado de história exige a tradição como condição de pensamento crítico, porque boa parte do nosso conhecimento assenta na crença [7]. O pensamento crítico é necessário e possível, mas tal como não precisamos de captar todos os factos do universo e suas interconexões para realizar um juízo virtualmente incondicionado sobre um facto particular, também não necessitamos de compreender a totalidade da tradição para julgar um erro particular [8].
b) A cosmópolis deve combater a “tirania dos factos” induzida pelo imediatismo do senso comum, pelas irracionalidades das ideologias e pelo “pensamento único”. A filosofia deve combater todas estas visões fragmentárias e empobrecidas, tal como as ciências, a historiografia, a arte e a vida prática confirmam a possibilidade de uma existência autêntica [9].
A arte tem um papel decisivo porque pressente novas possibilidades da vida humana, ao introduzir imaginativamente novas intelecções e juízos de valor no fluxo da experiência. Essas visões alternativas desafiam as visões limitadas. Através do humor e da sátira, a arte denuncia os absurdos sociais e assim, torna-se um elemento chave para restabelecer a inteligibilidade e a saúde mental na cosmópolis [10].
c) A perspectiva universal convida à cooperação metódica, em que a teoria não se opõe à prática. É preciso cultura teórica para captar os desenvolvimentos a longo prazo, negligenciados pelo pragmatismo; e é preciso inteligência prática para aplicar as intelecções da cultura [11]. Como essa colaboração se estabelece ao nível da atitude metódica e não de uma teoria metafísica, mantém um carácter aberto e dinâmico [12].
As artes também cooperam na exploração de facetas diferentes das possibilidades humanas. A escultura é uma realização visual do espaço interior do sentimento. A arquitectura fornece eixos de referência para a comunidade. Se a poesia lírica expressa os modos e disposições existenciais da pessoa, a epopeia e o drama narram o destino de um grupo ou de um povo. A pintura é uma libertação de potencialidades, um assomo de energia que nos transporta além do espaço imediato e explora possibilidades de vida. A música representa uma forma não espacial que corresponde ao modo como os sentimentos se multiplicam e mudam, como na dureé pure de Bergson [13].
d) A educação deve assentar na tensão criadora entre tradição e crítica. A pedagogia deve incentivar a apropriação dos procedimentos da intelecção – ser atento, inteligente, racional e responsável -, e o sistema educativo deve ter condições para que a apropriação tenha êxito. A educação superior deve aprofundar o diálogo com os livros clássicos [14]. Deve alimentar a visão a longo prazo, e a aprendizagem desinteressada. A educação para as humanidades deve ser compatibilizada com o ensino técnico, profissional, e especializado.
e) A abertura à transcendência deve partir do desejo de saber de modo ilimitado até alcançar a presença sagrada que cura, renova, e sustenta essa orientação. A abertura não reside nos tradicionalistas, que se sujeitam às autoridades mas podem ser crentes inautênticos; nem nos pensadores independentes, que forjam novas tradições. Reside, antes, na fidelidade às normas da investigação – ser atento, inteligente, racional, responsável e amar a sabedoria -, respeitadas pelas minorias criadoras que criam a tradição, pelas autoridades que a desenvolvem e pelas maiorias que a praticam. Parte da pessoa individual enraíza-se nas comunidades de pertença que reconhecem o primado do espírito sobre o mundo.
Conclusão
A filosofia de Lonergan integra numa “perspectiva móvel” a pluralidade das intelecções que resultam da relação entre o discurso teórico e a práxis humana. Ao compreender a racionalidade de uma perspectiva não determinista nem essencialista, apela à auto-compreensão do indivíduo como ponto de partida da sabedoria. Lonergan sabe que não está a fazer a sua filosofia em cidades cujo horizonte físico é pontuado por castelos e catedrais, mas na cidade contemporânea com o skyline dominado por edifícios comerciais, bancos e escritórios, sem divindade aparente. Por isso o seu apelo não se identifica com a panóplia exterior de qualquer religião e credo, mas menos ainda se conforma com o ressentimento e a “escotose” de uma cultura puramente secular.
É espantoso verificar como essa proposta nasceu de um jesuíta, um brilhante professor da Universidade Gregoriana com todo o peso da tradição católica, a pedir que cada um de nós pense por si mesmo; e que nenhum dogma nos salva se não for “auto-apropriado” ou assumido. Nos bastidores do Vaticano II, onde o seu conceito de “desenvolvimento” foi muito referido, Bernard Lonergan era um teólogo fora do comum. Embora nunca tenha endossado a “ética de situação” nem a cristologia de Teilhard de Chardin, quase afirmava que a melhor validação da ética não é a doutrina mas o senso comum, ratificado pela meditação cristã. Nele existem ecos de existencialistas como Emanuel Lévinas e Thomas Merton.
Esta filosofia provou ser muito libertadora. Quem, tão a sério como Sócrates, defende que devemos prestar atenção à nossa própria experiência de pensar, e nos deixa extrair as nossas próprias conclusões, torna-se muito apelativo. Pede-nos para sermos científicos e adoptar o método transcendental como meio de analisar o pensamento; e pede-nos para sermos filosóficos e reflectir de acordo com o imperativo “sê tu próprio!” A “liberdade de espírito” que defendia é também o “espírito de liberdade” da sua obra. Por isso, os seus seguidores são algo místicos e rebeldes. De algum modo, são individualistas que, paradoxalmente, escolheram seguir um guru. O que se explica com uma fórmula lonerganiana que bem poderia ser a epígrafe de toda a sua filosofia: “O problema do conhecimento com que se confronta o ser humano já não é só uma preocupação individual inspirada por um sábio da Antigüidade. Tomou as dimensões de uma crise social e é lícito ver nele o desafio existencial do século XX”.
Mendo Castro Henriques é filósofo político e professor da Universidade Católica de Lisboa. É o autor de As coerências de Fernando Pessoa (1985) e A Filosofia Civil de Eric Voegelin (1992), além de ser o coordenador do projeto de tradução de Intelecção: um ensaio sobre o conhecimento humano, de Bernard Lonergan, a ser publicado em Portugal neste ano.
[1] Insight, “Epílogo”, pág. 769.
[2] Ibid.
[3] Method in Theology, New York: Herder and Herder, 1972, pág. 31.
[4] Insight, págs. 554-571.
[5] Allan Bloom, The Closing of the American Mind, New York¨Simon & Schuster, 1987
[6] Paul Ricoeur, “Ethics and Culture: Habermas and Gadamer in Dialogue”, Philosophy Today 17 (1973): 153-165; Alasdair MacIntyre, After Virtue: A Study in Moral Theory, Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1984, 2a. ed., cap. 15.
[7] Sobre a cosmópolis e a consciência, Insight, págs. 263-64; sobre autenticidade e inautenticidade, Method in Theology, págs. 110 e 252.
[8] Insight, dúvida universal, pág. 737; opinião, págs. 725-28; juízo de erro, págs. 366-71, 736; crítica do erro, págs. 197-98, 311-12, 314-16, 736.
[9] Sobre o conhecimento especializado, Method in Theology, caps. 5-10. Sobre enviesamentos do senso comum, Insight, págs. 250-67; absurdo social, págs. 255-57, 259, 262; testemunho de auto-transcendência, págs. 264-65.
[10] Sobre arte, Insight, págs. 208-9, Method in Theology, págs. 61-62; Topics on Education, vol. 10 de Collected Works, pág. 211, e Joseph Fitzpatrick, “Lonergan and poetry”, New Blackfriars 59 (1978), págs. 441-50, 517-26. Sobre humor e sátira, Insight, 647-49.
[11] Análise teórica, Insight, págs. 252-53, 255, 258-61, 265-66; comunicação prática, págs. 266, 585-87; e Method in Theology, págs. 78-79.
[12] Insight, cap. 7, págs. 415-21; Method in Theology, págs. XI, 6, 81-83, 93-96
[13] Sobre escultura, Topics on Education, págs. 225-26; arquitectura, págs. 226-27; poesia, págs. 228 -32; pintura, págs. 223-25; música, págs. 227-28.
[14] Method in Theology, págs. 161-2
[1] Method in Theology, págs. 161-2
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