Livros

O horror da beleza

 por Jessé de Almeida Primo

 

Dados técnicos: Jonathan Littel, As benevolentes (Rio de Janeiro: Alfaguara, 2007), trad. de André Telles, 912 págs. Título original: Les bienveillantes (Paris: Gallimard, 2006), 903 págs., Grand Prix du Roman da Academia Francesa e Prix Goncourt.

 

 

“Uma frase de Chesterton galopava na minha cabeça: ‘Eu nunca disse que era errado entrar no reino das fadas. Disse apenas que era perigoso’. Então era isso a guerra, um reino das fadas pervertido, quintal para as brincadeiras de uma criança demente que quebra seus brinquedos às gargalhadas, que atira inconseqüentemente a louça pela janela?”

Maximilien Aue

 

Há muitas décadas vem-se anunciando a morte do romance, como outrora Nietzsche – que coroou sua carreira intelectual fazendo genuflexão a um cavalo – anunciou a morte de Deus, provocando uma reação tão bem-humorada quanto perspicaz em um muro londrino: “Deus está morto, ass. Nietzsche”, tinha grafitado alguém; e, em baixo, outro emendou: “Nietzsche está morto, ass. Deus”.

Nada, porém, confirma esse curioso óbito, de modo que somos levados a concluir que não estamos lidando com análise, mas apenas com militância – ilustrando aqueles típicos casos em que o carrasco, para parecer mais simpático, pretende passar-se por médico-legista. Considerando que o real se importa com seus pretensos reformadores tanto quanto uma pedra se importa com os xingamentos que lhe dirigimos após uma dolorida topada com o dedão, eis que esse real se manifesta na forma de um volume de mais de novecentas páginas. Mais ainda, ao ler o citado volume, cujo nome é As benevolentes, do escritor globe trotter Jonathan Littell, percebemos até que ponto esses reformadores de qualquer coisa estiveram, ou nos bastidores, ou mesmo na parte ativa do nacional-socialismo.

Como se trata de um movimento político composto por pessoas cujos rígidos princípios morais não têm Deus por companhia, sua moral resulta a um só tempo estéril e obsessiva. Por se pautar apenas em princípios sem fundamento, deixa de ser um norte pelo qual o homem guia sua conduta para se tornar mero instrumento de propaganda; Nietzsche, de tanto pregar a impiedade contra os homens que não são super-homens, comove-se às lágrimas com a sorte de um cavalo maltratado –
e hoje ganharia certamente um prêmio Nobel da Paz -; da mesma forma, as nossas leis penais são mais eficazes contra quem usa uma rede inadequada para pesca do que contra um homicida.

Essa realidade pode agora ser testemunhada através dos olhos e da biografia de um franco-alemão, outrora oficial e agora empresário do ramo de rendados, chamado Maximilien Aue. No passado, Aue tinha construído uma carreira brilhante na burocracia nacional-socialista, alcançando altos postos na administração dos campos de concentração; e, diante da solução final, teve de conter os ânimos exaltados daqueles que queriam matar judeus a qualquer custo, insistindo em que propunha uma opção muito mais prática: usá-los como mão-de-obra barata para a construção do Reich. Na verdade, punha em prática o que Ortega y Gasset dizia, ironicamente, sobre a escravatura, que teria representado maravilloso adelanto “porque antes lo que se hacía era matar a todos los vencidos. Fué un genio bienhechor de la humanidad el primero que ideó, en vez de matar a los prisioneros, conservarles la vida y aprovechar su labor”.

As Benevolentes é, a um só tempo, uma aventura histórica e a aventura de um indivíduo. Pela narração de Aue acompanhamos a ascensão do regime desde o início dos anos trinta, passando pelo desastre da campanha russa até os sucessivos bombardeios de Berlim e a entrada dos aliados. Presenciamos a generosa cooperação de diversos países da Europa que ofereceram os seus judeus para a morte. Podemos observar o avanço científico dos meios de extermínio, especialmente as primeiras câmaras de gás, que não visavam tanto evitar o sofrimento das vítimas como diminuir as reclamações dos carrascos, pois estes não suportavam mais o sangue que respingava em seus rostos quando aplicavam o tiro de misericórdia. Acompanhamos também toda a exposição das teorias e escolas filosóficas que fundamentaram o regime – os “reformadores” acima citados -, muitas delas expostas de maneira sistemática nos famosos “congressos de eugenia” de que o narrador participa, ou então nos afiadíssimos diálogos que percorrem o livro de ponta a ponta.

Tudo isso, para horror dos amantes da arte, acompanhado pelas maravilhosas suítes de Bach. Bach, naturalmente, não era nazista; mas a beleza parece participar de tudo aquilo, ou ao menos, quem sabe, estar na origem de tudo. Afinal, foi a busca pela beleza surgida da fragmentação do espírito – a mesma que presidiu também à arte contemporânea, embora esta, para os sensíveis e exclusivos nazistas, fosse um show de horrores – que motivou a construção de todo um aparato técnico para a destruição do real a fim de que o “belo” pudesse ocupar o seu lugar. De fato, a beleza na imagem da morte é a inspiração deste romance: segundo Jonathan Littel, tudo começou quando Aue viu a fotografia do corpo de uma rebelde russa após o enforcamento, numa das mais belas passagens da narrativa:

 

“…e ela jazia na neve do jardim dos sindicatos com a nuca rasgada, os lábios inchados, um seio nu roído pelos cães. Seus cabelos espetados formavam uma crista de medusa em volta da cabeça e ela parecia fabulosamente bela, habitando a morte como um ídolo, Nossa Senhora das Neves

(pág. 172; grifo nosso)

 

As referidas suítes bachianas dão nome a cada capítulo; à medida que o leitor avança na leitura, elas vão gradativamente servindo de trilha sonora para um horror que aumenta a olhos vistos. Um horror para o qual qualquer explicação parece inútil ou, na melhor das hipóteses, insuficiente, exposto numa linguagem tão crua e tão repleta de violência e de escatologia que, se o Marquês de Sade soubesse escrever, teria escrito esta obra. Prova disso são as descrições que giram em torno do belo rosto de Una, a irmã gêmea com quem o narrador mantinha uma relação incestuosa, entre doces recordações da infância que se confundem com mais este horror, como se, juntamente com a música de Bach, o justificassem. O mito de Narciso aparece restaurado nessa relação incestuosa, pois apresenta-se sob uma forma mais próxima da intenção mitológica original.

A história de Aue, uma espécie de Orestes a quem falta o concurso de Apolo, acompanha passo a passo as tragédias de Ésquilo e, principalmente, de Sófocles. Longe de ser uma mera referência erudita, o título As benevolentes define o que esta obra realmente é: uma tragédia grega clássica, que hoje encontra no romance sua melhor expressão e na Europa nazista seu melhor ambiente. Se não há um caprichoso habitante do Olimpo determinando todos os passos de Orestes para levá-lo a matar sua mãe, por outro lado há uma determinação, imperiosa ao menos na aparência, imposta pela própria guerra:

 

“Os filósofos políticos assinalaram freqüentemente que em tempos de guerra o cidadão, macho pelo menos, perde um de seus direitos mais elementares, o de viver […]. Mas eles raramente observaram que esse cidadão perde ao mesmo tempo outro direito, igualmente elementar e para ele ainda mais vital no que diz respeito à idéia que faz de si mesmo um homem civilizado: o direito de não matar. Ninguém pede sua opinião

(pág. 24; grifo nosso)

 

Não poderiam faltar outras personagens essenciais à tragédia: a mãe que, após o desaparecimento do marido, para salvar a situação financeira da família, aceita a proposta de casamento feita por um homem rico, personagens análogas respectivamente a Clitemnestra, Agamenon e Egisto. Maximilien Aue alimenta forte mágoa contra a mãe por ter desistido de esperar pelo seu misterioso pai, assim como manifesta hostilidade contra o padrasto que, assim como Egisto, aparecera para consolá-la. Como se não bastasse, quando o narrador retorna para vê-los após anos de afastamento, são brutalmente assassinados e ele passa a ser suspeito e perseguido insistentemente por dois investigadores da Kripo (Polícia criminal), Weser e Clemens, os quais, como as Erínias, não cedem nem ante os obstáculos da guerra ou da ocupação para exigir o cumprimento da justiça.

Como em Édipo Rei, As benevolentes provoca grande suspense através de um elemento ignorado pelos personagens mas conhecido de antemão pelo leitor, pois toda a narrativa, assim como a peça, é o relato de uma tragédia anunciada. Da mesma forma que as advertências de Tirésias não foram suficientes para que Édipo visse a si mesmo como responsável pela peste que assolava Tebas e percebesse que era contra si mesmo que lançava suas maldições, os ideólogos do regime simplesmente resolvem ignorar as advertências da profetiza chamada História, os relatórios da nossa personagem e o barulhento murmúrio de quem se encontra na frente de batalha.

No plano individual, Aue persiste na obsessão por sua irmã, com quem teve um tórrido caso do final da infância até o início da fase adulta, quando ele viaja para estudar e depois é absorvido pelas atividades administrativas do Reich, e ela se casa com um músico frustrado e inválido, com quem se muda para a Suíça. Soma-se a isto a esperança de rever o pai, uma figura ambígua, misto de herói e monstro – tal como o já citado Agamenon -, que havia viajado em missão militar quando o narrador era ainda criança e desapareceu, fazendo a mãe aceitar a proposta de casamento de um homem rico e solitário, o que por sua vez alimenta o ódio da nossa personagem, que enxerga no ato dela uma traição.

Assim, se na obra se misturam a literatura fantástica ou de horror e a tragédia grega, por outro lado é notável como esses elementos conseguem a um só tempo destacar pela peculiaridade de sua natureza e estar perfeitamente incorporados ao cotidiano. É como se sempre estivessem ali, presentes em todos os aspectos sem soarem anacrônicos, sempre atendendo às exigências mais atuais. Podem ser de ordem moral-espiritual, como a conduta das personagens na sua relação com o destino e com os problemas surgidos do livre-arbítrio, como se vê no trecho a seguir:

 

“Se você nasceu em um país ou uma época em que não apenas ninguém vem matar sua mulher e seus filhos, como ninguém vem lhe pedir para matar as mulheres e os filhos dos outros, agradeça a Deus e vá em paz.Mas nunca tire isso da cabeça: pode ser que você tenha mais sorte que eu, mas não é melhor. Pois se tiver a arrogância de pensar assim, aí começa o perigo. É agradável opor o Estado, totalitário ou não, ao homem comum, canalha ou bom moço. Mas se esquece então que o Estado é composto de homens, todos mais ou menos comuns, cada um com sua vida, sua história, a série de acasos que fez com que um dia ele se encontrasse do lado bom do fuzil ou da folha de papel, enquanto os outros encontravam-se no mau. Esse percurso é raramente fruto de uma escolha ou fruto de uma vocação”

(págs. 26-27).

 

Ou podem ser de ordem estético-estrutural, ao mostrar que uma intensa carga de erudição e uma viagem pela história das idéias, quando incorporadas à sensibilidade e por fim também à trama, fazem uma narrativa funcionar muito bem; e ao mostrar igualmente que os elementos constitutivos de uma tragédia, mas também certa nobreza, podem perpetuar-se, e sem perda, em outras formas de expressão, como num romance do século XXI. Temos aqui a prova de que esta arte não apenas sobreviveu incólume a todas as sentenças de morte, como voltou a trazer à tona as grandes manifestações da vida do espírito encarnadas nos nossos clássicos.

 

Jessé De Almeida Primo é crítico literário e autor de A Linguagem da Poesia (Tulle, 2007).

 

Não perca seu tempo

por Marcelo Ferlin Assami

 

Dados técnicos: Ian McEwan, Na Praia (São Paulo: Cia. das Letras, 2007), trad. de Bernardo Carvalho, 130 págs. Título original: On Chesil Beach (Jonathan Cape, 2007), 176 págs.

 

Ah, meu amor, sejamos verdadeiros

Um com o outro! Pois o mundo, que parece

À nossa frente uma paisagem de sonho,

Tão nova, tão bela, tão variada,

Em realidade não tem nem luz, nem amor,

[nem alegria,

Nem certeza, nem paz, nem qualquer consolação.

Matthew Arnold, Dover Beach,

trad. Marcelo Coelho

 

Na Praia (On Chesil Beach), o breve romance de Ian McEwan, relata em 130 páginas a noite de núpcias do casal Florence e Edward, jovens, virgens e educados, às vésperas da revolução sexual dos anos 60, cheios de esperança e amor. Se se limitasse a narrar uma relação sexual, seria menos tedioso.

A capa da edição brasileira, de autoria Angelo Venosa, mostra uma praia com tons menstruais muito sugestivos. Também serve como alerta a quarta-capa, com o anúncio de que a tradução é de Bernardo Carvalho, autor de Mongólia, e os elogios dos jornais The Guardian (“autor está maduro”) e The Observer (“é um escritor brilhante”).

O tradutor esforça-se para manter a fluência do texto. Contribui com alguns anacronismos, como “dar uma força” ou “deu duro”. Entre os chavões, como “o serviço fora digno”, “gafes significativas”, alguns são dele, mas a maioria já estava lá. Recordo de “boa índole”, “pela centésima vez”, “era um misto de”, “ato aviltante”, “nos mais formidáveis hotéis”. As expressões estranhas são poucas, como “delírio de eterno retorno” e “encetar o assunto”.

Se McEwan usa as eróticas palavras “cavidade”, “filtro nasal” e “nervo do folículo”, o tradutor abusa de “canhestro”. E “par de sapatos” vira “muda de sapatos”. O autor também repete uma construção que a tradução manteve: o uso de substantivo seguido de dois adjetivos, como “sotaque rural e fanho”, “personalidade intrincada e profunda”, “fluido viscoso e tépido”. Essas repetições e os chavões fazem a leitura demorada e cansativa; o leitor pode não perceber nem entender, mas sente que a leitura é penosa e previsível.

Temos então a cena da noite de núpcias e a narrativa do que acontece em seguida, com muitos flashbacks, digressões e relatórios sobre o vento e a temperatura. E, claro, o casal: a grande rebeldia de Edward foi ter-se formado em História em Londres, em vez de ir para Oxford. Seu pai era professor, sua mãe tivera o crânio fraturado pela pesada porta metálica de um vagão de trem quando estava grávida de gêmeas. Cria-se uma ficção familiar, em que a mãe é uma dona de casa exemplar e uma artista plástica, em vez de ser uma demente, o que levou Edward a aprender logo cedo a viver de mentiras.

Florence é o primeiro violino e mentora do quarteto Ennismore. Superprotegida pelo pai, empresário de sucesso, tem uma mãe intelectual de pouco afeto, caricatura de uma bluestocking do século XX, cética quanto aos movimentos coletivos, opositora do regime soviético e amiga de Iris Murdoch. A promissora Florence tem de lutar intimamente contra sua repulsa ao contato íntimo e à idéia de se entregar fisicamente a Edward.

Sozinhos no quarto do hotel, livres, não conseguem deixar as formalidades. Levam seus medos para a cama, com o resultado esperado, que conduz o casal à praia de Chesil, onde Florence faz uma proposta para salvar o casamento e a resposta de Edward os separa para sempre. A existência apagada de Edward é resumida em alguns parágrafos: aproveitou os novos tempos, entendeu como a proposta de sua mulher, que podia descrever como “a mulher mais quadrada da civilização ocidental”, era apenas um arranjo avançado para a época, e compreendeu que só amara Florence.

Os resenhistas gostam de chamar de “jogo de espelhos” o efeito da quadrada Florence fazer a proposta “avançada” para Edward ou ser descrita como atrapalhada e desastrada, sem que tenha derrubado ou quebrado nada ao longo das núpcias. Contraponto seria uma palavra apropriada. (É claro que, se procurassem no site do Mercado Livre, aprenderiam que “jogo de espelhos” é algo composto de retrovisor e espelhos laterais para o fusca.).

A narrativa pretende lembrar muito uma peça musical. Alguns temas são anunciados e abandonados, como elementos do romance novelesco do século XIX: a babá de Florence, que teria sido demitida por conta de algum escândalo, sugestões e suspeitas sobre a relação entre Florence e seu pai ou o destino do homem responsável pela condição da mãe de Edward. Mas fica a indicação de que a história é de fato moderna, realmente século XX. Eu teria preferido o novelesco a passar a noite na cama com o casal; o contraste entre a riqueza de truques do narrador e o modo superficial como é tratado o envolvimento de Edward e principalmente de Florence com a música estraga o livro.

A maioria dos resenhistas de Na Praia insistiu em citar o poema de Philip Larkin que McEwan quase usou para epígrafe: Annus Mirabilis: Sexual intercourse began / In nineteen sixty-three / (which was rather late for me) – / Between the end of the Chatterley ban / And the Beatles’ first LP. Uns poucos se lembraram de Dover Beach, de Matthew Arnold, em que os últimos versos falam de amar e ser verdadeiro. A impressão de que a revolução sexual dos anos 60 tomou esses ideais e promessas e os distorceu, não pela carnavalização do amor, mas pela vulgarização, pela leviandade, é algo que se presume ser criticado por McEwan em Na praia.

Aliás, no seu romance anterior, Sábado
que não passa de uma cópia sem graça de Herzog, de Saul Bellow (chega a usá-lo como epígrafe) -, McEwan usa o poema de Arnold como mote para uma reflexão sobre se a arte vale ou não a pena. Ao terminar o livro, percebi que não chegou a conclusão nenhuma – e a mesma coisa acontece com a história de Edward e Florence.

Enfim, o que os críticos evitaram dizer é que Na Praia, como todos os livros de Ian McEwan, não passa de farsa em prosa: personagens e situações ridículas e trama inverossímil (Reparação é reconhecida como obra-prima justamente por se entrincheirar nas questões da ficção. E, por ser mais volumoso que Na Praia, narcotiza os leitores e engana os mais bobos).

Para ir além da farsa, é preciso aceitar alguns pressupostos ou ter apenas metade do cérebro. No primeiro parágrafo há a afirmação de que o casal vivia num tempo em que falar de sexo era impossível. O segundo pressuposto é que Edward e Florence estão sozinhos, não podem contar com amigos, com a família, com estranhos ou com Deus. O terceiro pressuposto é a visão de classe: o narrador observa todas as diferenças entre o mundo em 1962 e o presente pelo olhar da classe média. A frivolidade das classes altas e a vulgaridade das classes baixas são tomadas por infantilidade, a que as classes médias teriam tido acesso depois da revolução sexual.

Se há um tema interessante em Na Praia, é a precipitação que põe tudo a perder: as palavras e os gestos – e a falta de gestos e de palavras que determinam todas as coisas que poderiam ter sido e que não precisavam acontecer. Essa experiência, que muitos vivem ao final da infância, o autor a retarda para o começo da vida adulta. Será que ainda existe alguém que se interesse por mais uma dupla de adultos infantilizados da galeria de personagens caídos de McEwan? Pelo andar da carruagem, parece que sim. Mas pelo menos há uma consolação: depois de um tempo, quem se lembrará de Ian McEwan? As apostas ficam guardadas para a próxima eternidade.

 

Marcelo Ferlin Assami é escritor e jornalista, e teve uma narrativa sua publicada na antologia A Visita, São Paulo: Barracuda, 2005.

 

A fúria do poeta

por Martim Vasques da Cunha

 

Dados técnicos: Geoffrey Hill, A Treatise of Civil Power (London: Penguin, 2007), 64 págs.

 

É comum ouvir hoje, da boca de artistas e intelectuais, que a poesia perdeu o seu significado. Afirmam que não tem mais uma função de denúncia, de mostrar os reais problemas do ser humano; afirmam também que não existe mais a estrutura do verso e que, por isso, deve ser ouvida ou transformada em uma espécie de instalação hermética que somente alguns podem entender. E, como se não bastassem essas afirmações, procuram justificá-las com citações de teóricos que dizem entender de poesia, quando apenas tentam entender o umbigo de suas auto-referências; obviamente, a referência mais comum é a Theodor Adorno, que em algum dia infeliz de sua vida sentenciou que não podia mais haver poesia depois de Auschwitz.

Geoffrey Hill vem demonstrar justamente o contrário. Nascido em 1932 em Bromsgrove, pequena cidade rural do Worcestershire, na Inglaterra, Hill construiu uma obra sólida na poesia e na prosa crítica, marcada pela erudição, pelo domínio completo das formas e, em especial, pelo questionamento metafísico-moral. Seu primeiro livro, publicado quando tinha 26 anos, chamava-se For the Unfallen (1958) e provocou certo impacto nos círculos literários ingleses: tratava-se de um poeta que não hesitava em nenhum momento de seu verso e além disso tinha a coragem de abordar os assuntos mais espinhosos sem nenhuma concessão ao gosto da época, com a determinação do artista que sabe a função de sua arte. A partir daí – com livros memoráveis como King Log (1968), Mercian Hymns (1971) e Tenebrae (1978) -, Hill provou aos seus pares que, ao lado de Yves Bonnefoy, Seamus Heaney e Ted Hughes, era um dos maiores poetas da Europa.

Contudo, se toda a celebração que sua obra recebeu não o fez ficar quieto – pelo contrário, escreveu livros cada vez mais ousados, como The Mystery of Charity of Charles Péguy (1983) e Canaan (1997) -, ainda não o tornou tão conhecido como merece, especialmente em terras brasileiras. Afinal, se temos traduções das poesias completas de Bonnefoy (publicadas pela Iluminuras como Obra Poética), de Heaney (cortesia da Companhia das Letras) e mesmo de Hughes (Cartas de Aniversário, Record), por que Hill ficou de fora dessa lista?

O motivo é simples: Geoffrey Hill é um poeta difícil. O adjetivo não está aqui para provocar o leitor; em cada livro, percebe-se que procura tornar os versos mais cifrados, mais elusivos. Para compreender realmente o que está dizendo, é preciso conhecer muito bem a história da Inglaterra – especialmente dos séculos XVI e XVII -, a história da Europa, as duas Grandes Guerras, um pouco do breviário dos santos católicos e anglicanos e, last but not least, detalhes das execuções realizadas nos campos de concentração alemães. Além disso, não se trata de um poeta que emocione no sentido vulgar do termo; sua linguagem é sempre marcada por uma tensão entre a crueldade da situação sobre a qual medita e a limpidez com que a descreve. E a sobriedade nos sentimentos é o resultado de querer fazer da poesia mais do que uma mera denúncia do estado de coisas; Hill deseja que o leitor sinta a poesia como uma maneira de levar um pouco de dignidade à vida humana, que perceba que a arte representa “uma triste e enfurecida consolação” (“a sad and angry consolation”).

Este é o tema de seus quatro últimos livros: The Orchards of Syon (2002), Scenes from Comus (2005), Without Title (2006) e A Treatise of Civil Power (2007), este último publicado no meio do ano passado. Não seria exagero dizer que Hill escreve o mesmo livro há pelo menos seis anos, publicando-o em partes diferentes e separadas. A semelhança temática é óbvia: os poemas falam, sem exceção, do papel do poeta em um mundo onde a consciência individual é dominada pela libido dominandi dos poderes e dos potentados –
leia-se dos Estados Nacionais e Impérios. O título da última parte, A Treatise of Civil Power (“Um tratado sobre o poder civil”), inspirado nos escritos de John Milton e de Richard Hooker, deixa clara a intenção política. Mas não se deve confundir a política que Hill defende com aquela que os ideólogos de plantão exigem para a idiotização do mundo; o que está em jogo é o delicado equilíbrio entre a ordem secular e a ordem espiritual de uma Europa que perdeu o seu propósito e só pode recuperá-lo se o poeta reassumir a sua vocação de profeta.

Dessa forma, as referências crípticas de Hill aos trabalhos de Milton e Hooker não são exibições de erudito. Ele se vê herdeiro da mesma linhagem destes dois grandes homens que viveram o tumulto da Revolução Gloriosa na Inglaterra e percebe as assustadoras semelhanças entre aquela época e a nossa: o fanatismo das ideologias que substituem o humano por uma idéia, a loucura dos governantes que não dominam as suas paixões e o papel solitário de alguns que tentam provar para a posteridade que não viveram um sonho insano. Em A Treatise, além de dialogar com esses novos mestres, Hill continua a aprofundar em seus velhos temas, como a tensão entre a poesia e a religião, o mistério da santidade e do martírio e, em especial, o velho e bom problema da teodicéia.

Por isso, a galeria de “profetas-irmãos” aumenta consideravelmente neste último livro. Temos Milton e Hooker, mas também temos Edmund Burke e William Blake, dois visionários que anteciparam e vivenciaram a loucura da Revolução Francesa. Podemos caminhar juntos com o profeta Joel, com o chanceler alemão Willy Brandt e até mesmo com Elias Canetti, presente em uma versificação exemplar de um trecho de Massa e Poder. Entretanto, quem nos pega pela mão e nos mostra como estão os nossos dias é o próprio Geoffrey Hill, que prova que ainda há poesia depois de Auschwitz em versos como estes:

 

It is not a matter of justice. Justice is in another world.

Or of injustice even; that is beside the point, or almost.

Nor even of the continuity of hirelings, the resourceful;

those who are obese – the excellent heads of hair -,

the beautiful or plain wives, secretaries and translators.

The riots and demonstrations that now appear

like interludes, masques, or pageants, or students’ rags;

the police water-cannon; you look for the film’s director

but cannot find him. There is the captioned Wall;

there the Reichstag, the Brandenburger Tor

variously refurbished, with and without wire;

there’s Willy Brandt kneeling at the Ghetto Memorial

on his visit to Warsaw, December of Nineteen Seventy:

I did what people do when words fail them.

(On Looking Through 50 Jahre im Bild:

Bundesrepublik Deutschland)

 

É uma pena que a riqueza do poema o impeça de ser traduzido adequadamente. Quem desconhece a língua inglesa não perceberá a rapidez do raciocínio em versos que serpenteiam, que tentam encontrar a expressão justa da indignação que ronda uma nação e seus homens, até que, de repente, o próprio poema mostra que as palavras são precárias demais e que a única reação decente é ajoelhar-se e enfim pedir perdão.

Para Hill, a atitude de Willy Brandt é a de um herói que aceita plenamente o seu destino, a sua vocação. O poeta deve fazer o mesmo, sacudir-se e sacudir os outros o tempo todo para fugir do limbo. Contudo, não haverá serenidade nessa atitude: o poeta deve mostrar enfurecido em seus versos, deve mostrar ao mundo que não aceitará o atual estado de coisas e que a poesia, mesmo em sua precariedade, deve provar que ainda existe apesar de todos os holocaustos da História.

Geoffrey Hill sabe que a “tragédia tem tudo sob o seu olhar” (tragedy has all under its regard), mas também sabe que a poesia pode ajudar a reverter um pouco tal situação. Em A Treatise of Civil Power, prova que Theodor Adorno estava errado: a poesia continua a mostrar seus caminhos precários na História. A lição está em mostrar-nos que, muitas vezes na vida, quando a arte apalpa a sua impotência, a única coisa a fazer é juntar as mãos e pedir que não ocorra o holocausto da própria poesia. Somente dessa forma não veremos o sacrifício do ser humano realizado por ele mesmo.

 

Perigosa simetria

por Guilherme Malzoni Rabello

 

Dados técnicos: Marcus du Sautoy, Finding Moonshine. A Mathematician’s Journey Through Symmetry (London: Fouth Estate, 2008), 376 págs.

 

O gênio matemático precoce e atribulado sempre foi uma das grandes imagens da história das ciências, e de fato seus personagens fornecem material abundante para uma quase mitologia dessa figura. No entanto, o impressionante desenvolvimento e o grau de complexidade cada vez maior dessa disciplina fizeram com que, no século XX, essa mitologia perdesse força. Diz-se que Poincaré teria sido o último a dominar todos os campos da Matemática, o que já não é possível hoje. As grandes intuições não bastam mais; além delas, é necessário um longo período de estudo –
coisa que não costuma ser muito do agrado dos jovens atribulados.

Finding Moonshine. A Mathematician’s Journey Through Simmetry começa com o autor – Marcus du Sautoy, professor de matemática em Oxford -, comemorando o seu aniversário de quarenta anos. Se o ditado popular diz que a vida começa aos quarenta, para um matemático essa sempre foi a marca do seu encerramento; tanto é assim que até hoje as Field Medals, talvez o maior reconhecimento na área, são entregues de quatro em quatro anos exclusivamente para pesquisadores abaixo dessa idade. “Por esta época, no ano que vem”, diz melancolicamente Du Sautoy na primeira página do livro, “a próxima leva será anunciada em Madrid, mas agora já sou velho demais para estar na lista”.

Finding Moonshine não é apenas um livro de divulgação científica, mas também uma crônica muito particular sobre a vida e o dia-a-dia de um matemático. Um fato raro em livros de ciência é a preocupação com a forma e o estilo, e o que vemos no caso já é bastante louvável; daí a querer que o autor seja de fato um grande estilista seria, talvez, pedir demais. Organizado como um diário, com um capítulo para cada mês do ano, o livro às vezes chega a ser irritantemente banal, por exemplo quando insiste em nos contar as opiniões de Tomer, filho de oito anos do autor. A tentativa em si é até inteligente, pois Du Sautoy precisa explicar algumas obviedades ao leitor, e fazê-lo de maneira explícita poderia ser humilhante; assim, vale-se do recurso de explicar os fatos mais elementares à criança, que no entanto parece preferir o skate ou o GameBoy às explicações do pai.

Mas nem toda a narrativa pessoal do livro é banal, pelo contrário. Du Sautoy faz um relato bastante interessante dos meandros do mundo acadêmico e de algumas aflições que cercam quase todos os pesquisadores: a necessidade – e a cobrança – de ter um insight genial, a competição e a inveja no mundo acadêmico, as dúvidas e as angústias de um matemático que teve uma idéia mas tem medo de contá-la a seus colegas – que afinal podem “roubá-la” -, a solidão do especialista que não pode dividir o seu trabalho com os amigos ou a família, tudo isso é narrado com maestria no livro. O autor não esconde, por exemplo, o misto de orgulho e frustração que experimenta quando um orientado seu lhe conta que resolveu o problema no qual ele mesmo havia trabalhado sem sucesso por anos. Ao mesmo tempo, as figuras que se enquadram perfeitamente no estereótipo do “gênio maluco” – o professor que sabia todo o cronograma do sistema de transportes inglês, o pesquisador que decorou o número pi até centenas de casas decimais… – acrescentam sabor à narrativa.

Se o tempero do livro são as digressões, seu prato principal é um dos temas mais fascinantes da matemática. De Pitágoras ao Código da Vinci, do caramujo à estrela do mar, a simetria sempre esteve envolvida numa aura quase mística: ela seria, dizem alguns, o “alfabeto de Deus” ao criar a natureza. Como não podia deixar de ser, o livro começa a narrar a sua história com os gregos: tudo teria começado quando Pitágoras teve o primeiro contato com um dado de doze faces, usado na época pelos etruscos. Os doze pentágonos formando um sólido perfeitamente simétrico foram quase uma obsessão do antigo geômetra, que também estudou a simetria do cubo e do tetraedro (pirâmide de base triangular), e percebeu que havia uma ligação entre estes sólidos que não se estendia, por exemplo, às pirâmides do Egito.

Da Grécia ao estudo atual da simetria foi preciso percorrer um longo caminho. Se alguns elementos da natureza sempre abriram os nossos olhos para a repetição de padrões, não foi nada fácil chegar a um tratamento estritamente matemático do tema. A história narrada por Du Sautoy terá de passar por todo o desenvolvimento da álgebra até chegar ao século XIX. Aqui, o autor lança mão de outro artifício interessante: histórias, casos e curiosidades da matemática. Se os gráficos e equações inspiram terror até aos corações mais frios, as fascinantes histórias ligadas à matemática sempre são animadoras. O livro apresenta várias, algumas simplesmente interessantes pelas circunstâncias, outras que nos levam a pensar profundamente no trabalho do matemático. Uma delas conta a visita do jovem Cauchy ao senado da França revolucionária, levado pelo seu pai, que era Senador:

 

“Um dia, o pai de Cauchy deixou que o filho o acompanhasse até o seu trabalho no Palais du Luxembourg e mostrou aos grandes sábios da Academia um pouco da matemática em que o rapaz andara trabalhando. Lagrange mostrou-se impressionado e, voltando-se para o seu colega Laplace, declarou: ‘Está vendo este menino? Pois bem! Ele nos suplantará a todos, ao menos na medida em que somos matemáticos’. E o conselho que o mesmo Lagrange deu ao pai de Cauchy acerca da educação da criança também foi pouco habitual: ‘Não o deixe tocar um livro de matemática nem escrever um único número antes de ter completado os estudos de literatura’. Era preciso desenvolver primeiro as suas habilidades lingüísticas, acrescentou”.

 

De fato, o conselho tem tanto de incomum quanto de pertinente. Costuma-se em geral supor que as habilidades lingüísticas são totalmente desnecessárias na Matemática, o que é um erro gigantesco. De nada vale um insight genial se não for possível traduzi-lo numa linguagem compreensível, no caso a linguagem matemática. O estudo da simetria é um grande exemplo disto: apesar de sempre ter chamado a atenção dos homens, só se pôde desenvolver realmente depois que a álgebra criou uma linguagem capaz de exprimir aquelas realidades de forma objetiva.

O primeiro passo nesta direção foi dado por Galois, que percebeu que poderia usar (e como poderia expressar) a simetria na resolução de algumas equações algébricas; mas o grande turning point ocorreu quando Arthur Cayley, em 1854, publicou um artigo que propunha uma maneira nova de olhar para o assunto e expandia enormemente os horizontes. Ao focar a análise nas permutações e interações, e não nas equações e nas raízes, Cayley tornava possível classificar e comparar simetrias que aparentavam ser completamente diferentes; e, mais do que isso, deixava claro que alguns objetos possuíam grupos de simetrias diferentes de outros – e assim nascia a teoria dos grupos.

Foi como o descobrimento de um país completamente inexplorado. Nas décadas seguintes, os matemáticos se transformariam em exploradores à busca de novos grupos de simetria. O mais interessante, no entanto, é que a partir do momento em que a simetria passou a ser estudada de forma algébrica, toda relação com os objetos simétricos do nosso dia-a-dia passou a ser completamente irrelevante. Afinal, nenhum matemático que se preze hoje em dia vai se preocupar com objetos de três dimensões, não é mesmo?! Esqueçam o caracol, esqueçam a estrela: os grupos precisavam ser classificados, mas o ambiente será muito mais inóspito do que pode supor a nossa vã filosofia.

Com o passar do tempo, os grupos foram sendo mapeados e surgiu uma nova questão: haveria um número finito de grupos, ou seria possível criar um conjunto de simetrias sempre mais complexo? Ninguém sabia a resposta e os matemáticos se dividiram entre os “exploradores”, que achavam que poderiam continuar a descobrir novos grupos, e os “colonizadores”, que queriam provar que nenhum outro era possível. A resposta começou a surgir no horizonte quando J.H. Conway provou, no final década de 1970, a existência de um objeto (ou melhor, “objeto”) que contém 808.
017.424.794.512.875.886.459.904.961.710.757.005.754.368.000.000.000 simetrias, e só pode ser construído, ou “visualizado”, num universo de 196.883 dimensões. Esta “coisa” foi carinhosamente batizada de “o Monstro”.

Em 1985, publicou-se The Atlas of Finite Groups – uma espécie de manual com os diferentes tijolos necessários para criar qualquer objeto simétrico possível, que pôs fim à viagem de exploração e por fim deu razão aos colonizadores (mas depois de se chegar bem mais longe do que pensavam). Um novo campo da Matemática havia sido dominado –
só que desta vez o trabalho fora feito por tantas pessoas que não poderia ser creditado a nenhum matemático em especial. O esforço exploratório, num caso raríssimo para essa ciência, havia terminado sem um autor principal: a totalidade das provas de classificação reunia algo como dez mil páginas publicadas em várias revistas especializadas. Não havia elegância alguma naquela massa de dados, mas o trabalho estava feito.

No entanto, permaneciam no ar as relações entre os grupos de simetria e o restante da Matemática. Seria possível construir uma ponte entre estas novas ilhas e o mundo já conhecido? Há algumas indicações neste sentido, mas o que está por trás de tudo permanece um mistério. E daí vem o título do livro: com a classificação dos grupos finitos, os matemáticos definiram a “luz da lua”, mas essa luz tem de vir de algum “sol” que permanece oculto. “A luz da lua foi encontrada, mas o verdadeiro sol permanece um mistério”.

Balanço final: será que realmente aprendemos alguma coisa, neste livro, sobre os grupos e as simetrias? Há algumas passagens espetaculares, em que o autor consegue apresentar as idéias propriamente matemáticas de uma maneira que vem ao encontro da nossa experiência: as duas mais interessantes são a visita de Du Sautoy ao Alhambra de Granada, em que explica (junto com Tomer e seu GameBoy, mas enfim…) as diferentes simetrias usadas pelos mouros para decorar o palácio; e quando explica as Variações de Goldberg e esclarece o modo de compor de J.S. Bach. Mas da teoria dos grupos não se pode dizer que compreendemos alguma coisa. O que sobra é a vaga idéia de que se trata de um tema muito difícil, e que na verdade não tem absolutamente nenhuma relação com os objetos simétricos que nos atraem ou com qualquer coisa que chamaríamos de “simétrica”.

Talvez não seja um problema deste livro em particular mas de todo o trabalho de “divulgação científica” em geral, que no mundo anglófono já constitui quase um gênero literário (Popular Science). Por um lado, merece aplausos a tentativa de popularizar o conhecimento científico, que está em perigo de se tornar esotérico e rarefeito; por outro, essa atitude corre o sério risco de transformar-se numa apologia do pseudo-conhecimento. E pior, a partir do momento que se torna dominante (e já o é), precisamos ficar atentos para não confundir impressões e imagens com conhecimento real. Num mundo dominado pelas concepções cientificistas, esse tipo de trabalhos de divulgação pode dar-nos a falsa impressão de “estar por dentro”, de atualidade, mas assim passam apenas a funcionar como guias espirituais de uma nova pseudomística (no caso, de 196.883 dimensões).

Em conseqüência, Finding Moonshine é certamente um livro interessante, um ótimo passa-tempo para quem gosta de matemática. Mas não é mais do que isso – nem precisa sê-lo.

 

Tratado do desespero atual

por Dionisius Amêndola Valença

 

Dados técnicos: Michael Burleigh, Earthly Powers: Religion and Politics in Europe from the French Revolution to the Great War (New York: HarperCollins, 2005), 576 págs., e Sacred Causes: Religion and Politics from the European Dictators to Al Quaeda (New York: HarperCollins, 2006), 576 págs.

 

 

No debate intelectual moderno, a concepção clássica da religião como aquilo que “religa” o Homem à divindade e o torna mais consciente de si – que remonta a Cícero – foi substituída pela “re-construção” do Novo Homem: não se trata mais de religar com o divino, mas de divinizar o terreno. O desafio de entender a razão desta ruptura e as suas conseqüências já foi enfrentado por muitos grandes pensadores, desde a visão esotérica de René Guénon (A crise do mundo moderno), passando pela obra-prima do pe. Leonel Franca (com título homônimo ao de Guénon), até a catedral poética de Bruno Tolentino (O mundo como idéia) e o monumental estudo Order and History, de Eric Voegelin. Agora surgem dois livros que não apenas aprofundam esse debate, como o trazem para mais perto de nós: Earthly Powers e Sacred Causes, do historiador britânico Michael Burleigh.

Burleigh é o autor de um grandioso estudo sobre o Terceiro Reich (The Third Reich: A New History) e, depois de praticamente esgotar o tema, percebeu que havia um novo e revigorante aspecto da história humana no campo daquilo que chama de “Religiões Políticas”. Com o atentado às Torres Gêmeas, a necessidade de compreender tornou-se imperiosa. E onde a maioria dos intelectuais e pensadores modernos vê apenas um ato de terrorismo contra uma nação poderosa e carnívora, ele identifica a culminância de uma nova e mais brutal Religião de Estado.

Afora seu interesse de historiador, Burleigh, pela sua origem britânica, atravessou a fase mais dura dos ataques do IRA e sua esposa sofreu as conseqüências físicas e psicológicas de dois ataques de terroristas islâmicos em 2005. Obviamente, estes fatos o afetaram muito, fazendo com que suas opiniões às vezes soem contundentes demais; por outro lado, despertaram nele um interesse pessoal que o impede de fingir um “distanciamento crítico” intelectual, como se esses temas não nos atingissem de perto a todos nós.

Mas comecemos a entrar na matéria por meio de algumas definições. As Religiões Políticas, que são o tema central dos dois livros, podem ser consideradas a grande tentação do intelecto humano. O termo foi muito utilizado a partir de 1917 para descrever os regimes totalitários que surgiram neste período; diversos pensadores o usaram, desde desconhecidos do grande público como Lucie Varga e Fritz Gerlich, até nomes celebrados como Raymond Aron. Têm em comum o fato de se haverem constituído por analogia com o cristianismo, com o propósito de enfraquecer a influência judaico-cristã na história, de despojar o homem da “imagem e semelhança” da divindade, de emular os ritos da religião e, principalmente, de tornar realidade o “Paraíso na Terra”. Já Tocqueville dizia que os seus seguidores encontram-se imbuídos de “uma fé fanática em sua vocação de transformar o sistema social […] e regenerar a raça humana”.

Burleigh, perguntando-se onde tudo isso começou, responde: no antigo Egito, com seus deuses-faraós; nas civilizações babilônicas, com a ordem da sociedade “copiada dos céus”; na construção do Império Romano, com os seus Césares divinizados; mas também no proto-paraíso terrestre buscado pelas reduções jesuíticas no Novo Mundo. Essas civilizações, ideais e movimentos estão ultrapassados, sem dúvida; mas serviram de inspiração para a Revolução Francesa, que por sua vez, a partir 1789, será o ideal de todos os reformuladores sociais.

A Revolução culminou no quase esquecido massacre da Vendéia, onde aproximadamente quatrocentos mil camponeses foram mortos pelos revolucionários porque se negavam a alistar-se no exército do novo Estado e a renegar sua fé. Os horrores deste genocídio, mesmo depois da experiência que acumulamos na matéria, ainda hoje chocam. Mas nenhum genocídio, seja na Vendéia, na China, na Alemanha ou em Ruanda acontece “do nada”. Ele é o fruto maléfico da desconstrução da sociedade, de sua corrupção, da destruição de suas tradições. E esta é a principal característica de todas as revoluções, golpes ou atos de terrorismo.

É a análise desta destruição que Burleigh
inicia em Earthly Powers. Um livro que, ao longo das suas quase seiscentas páginas nos conduz pelas mentes de intelectuais radicais, jornalistas revolucionários, Estados falidos e Igrejas nacionais divididas, em um embate entre a Fé dos Homens e a Razão dos Novos Homens que culmina no grande Terror. Ao longo desse embate, assistimos aos movimentos de submissão por parte da Igreja e da Monarquia francesa aos revolucionários, à adesão de Louis Philippe, duque de Orléans e primo do rei, e de mais quarenta e sete nobres à Assembléia Nacional, à decretação da Constituição Civil do Clero que submete, divide e fere profundamente a Igreja Francesa, e a muito, muito mais.

Há por exemplo a biografia do “garoto-mártir da revolução”, Joseph Bara, tornado peça de propaganda pelo pintor Jacques-Louis David, que depois organizaria as grandes cerimônias de homenagem à “deusa Razão” na catedral de Notre-Dame, invadida, depredada e posta à disposição desse culto grotesco. E há também Robespierre, “Pai do Terror”, que envia todos os que ousam discordar dele em levas sucessivas para a guilhotina, até dirigir-se para lá ele mesmo, em meio a uma sensação de alívio geral.

Mas a palavra de ordem estava lançada. O advento da Nova Sociedade já estava inscrito no evangelho da Revolução. E essa Nova Sociedade será copiada, revista e atualizada na Rússia, Itália e Alemanha, embora lançando mão sempre dos mesmos meios: as brigadas populares, os regimes de “Salvação Nacional”, as acusações de “atividades contra-revolucionárias”, os tribunais de exceção e, tetricamente, o Terror e os Gulags. Em todos os países, em todas as suas renascenças, o padrão da Nova Sociedade seria monotonamente igual: a criação de um Novo Homem por meio de novas regras comportamentais e sociais, da eliminação da religião como guia do ser humano, da supressão das liberdades individuais, do culto ao Estado ou ao Povo. O objetivo era construir idéias que, finalmente, libertassem o Homem da realidade…

Burleigh quer demonstrar que o principal fator de que as Religiões Políticas se valeram na sua ascensão foi o alto nível de tolerância das sociedades tradicionais aos novos elementos revolucionários, sem perceber que estes almejavam, não um espaço apenas, mas todos. Ao mesmo tempo, lança-nos em cheio nessa espiral descendente da história, nesse caleidoscópio de idéias e líderes: o filho da revolução, Napoleão Bonaparte; o general da Itália, Garibaldi; os “possessos” russos, que tanto preenchiam a mente – e a nação – de Dostoievsky…, até chegar ao abismo que contempla e engole o Homem – a Primeira Grande Guerra e o fim da Europa aristocrática e cristã.

O mais polêmico dos dois livros – Sacred Causes – tem início na devastação deixada pela Primeira Guerra Mundial e na tentativa da Europa de curar-se, de reordenar o caos instaurado por uma devastação sem precedentes. Burleigh mostra que, dentro desta tentativa, já estava plantado o germe de um novo tipo de estatolatria, pois em países como a Inglaterra o Estado celebrava “cultos cívicos” para comemorar o fim da guerra; na Alemanha, a Igreja Luterana pronunciava-se contra uma cláusula do Tratado de Versalhes; e no horizonte erguiam-se a Revolução Soviética e sua “nova realidade”. É o período da grande reconstrução; e em toda a parte, tem-se a certeza de fazer surgir das cinzas uma nova forma de sociedade. Como de costume, para isso é necessário antes de mais nada que a Igreja seja desacreditada, vilipendiada, mutilada. O clero é o inimigo a ser suplantado ou utilizado e seduzido para ser descartado depois.

Como no primeiro livro, também neste o autor nos apresenta as personagens e os intelectuais que combateram em um campo e outro. Mas é nos capítulos sobre o terrorismo irlandês e islâmico que Burleigh, atingido de maneira mais pessoal, chega a sua interrogação central: até que ponto é válido e necessário o nível de tolerância que as sociedades civilizadas ocidentais têm para com estes grupos? Não os irlandeses do norte ou os islâmicos como um todo, note-se bem, pois neste caso ele mesmo incorreria no erro que combate; mas com os grupos ideológicos que recorrem ao terrorismo como instrumento político.

Antes de mais nada, Burleigh escancara a patologia vitimista que habitualmente acomete os grupos extremos: “sempre há motivos para o nosso ódio”, “‘eles’ merecem o que tiveram, pois são todos opressores”. Outro ponto importante da sua análise é a forma como os militantes marxistas influenciaram e até determinaram ações do IRA. No caso dos terroristas islâmicos, o autor revela a admiração que Bin Laden tinha pelo exército soviético quando da guerra no Afeganistão, principalmente em comparação com as forças americanas, “desprezíveis” por não discriminarem sexo ou raça em suas tropas.

Desde as primeiras páginas de Earthly Powers até as últimas de Sacred Causes, somos levados a tomar consciência da enorme medida em que, apesar de suas falhas óbvias, as sociedades ocidentais (monarquistas, democráticas, parlamentaristas ou presidencialistas) sempre buscaram e tiveram por fundo comum a tradição judaico-cristã. Foi esta influência que fez com buscassem um equilíbrio entre as várias forças que compõem uma nação e o conjunto das nações entre si. Mas o problema abordado por Burleigh é que justamente essa busca do equilíbrio, essa tolerância, ajuda muito mais os destruidores do que aqueles que buscam preservar e fortalecer a própria tolerância. É uma questão inquietante e nada fácil de responder: Como ser tolerante com aqueles que não possuem nenhuma tolerância?

 

DIONISIUS VALENÇA é gestor de empresas.

 

 

Somos fascistas?

por Luiz Felipe Estanislau do Amaral

 

Dados técnicos: Jonah Goldberg, Liberal Fascism: The Secret History of the American Left, From Mussolini to the Politics of Meaning, Doubleday, 496 páginas.

 

Em sua segunda semana na lista dos best-sellers de não-ficção do The New York Times, Liberal Fascism: The Secret History of the American Left, From Mussolini to the Politics of Meaning, de Jonah Goldberg, atingiu a terceira colocação. Provavelmente para desgosto dos editores do jornal, uma vez que o livro não poupa o NYT nem qualquer outra publicação “liberal” (no sentido americano do termo, é claro; mais sobre isso adiante). Goldberg não hesita em associar os movimentos de esquerda ao fascismo, e o faz baseado em um argumento bem estruturado e fundamentado. Obviamente, um livro com tal tema teve grande sucesso em atrair as opiniões mais extremas: nas 131 críticas de clientes da Amazon.com, as notas mais freqüentes são a máxima e a mínima…

Jonah Goldberg é jornalista e editor da National Review, e apresenta-se honestamente como conservador. Neste livro, propõe-se contar uma história: a do nascimento do progressismo no final do século XIX e do seu desenvolvimento e repercussões no século XX. Com isso, pode-se dizer que elabora um “quem-é-quem” do progressismo, uma lista que principia pelo filósofo John Dewey e chega até Hillary Clinton, não sem antes passar por uma série de figuras inesperadas.

À primeira vista, chamar um livro desses de exagerado soaria a eufemismo, mas Goldberg dá provas, no mínimo, de que, se houver exagero, ele se dá sobre algo palpável. Ao longo de sua exposição, exaustivamente documentada, mostra como tanto o fascismo quanto a linha-mestra do movimento socialista se originam dos mesmos pais ideológicos (se voltarmos até a Revolução Francesa), como houve muita simpatia mútua entre os nomes mais destacados das duas correntes e como a aparência de contradição entre o progressismo e o fascismo que existe hoje é, em grande parte, fumaça e espelhos: uma cuidadosa confusão orquestrada para que as duas correntes parecessem contrárias.

Aliás, o problema da manipulação dos conceitos já é levantada pelo próprio título. Em português, a palavra “liberal” está relacionada com o liberalismo clássico, de Smith, Ricardo, Tocqueville, do laissez-faire; para os anglófonos, porém, diz respeito à esquerda, às políticas sociais inchadas, à intervenção estatal na economia, o que explica a relação do Liberal Fascism com a esquerda americana citada no título. Mas como um termo pode chegar a significar praticamente o oposto? Ocorre que o conceito de “liberal” tem duas origens distintas, independentes e quase opostas: a clássica, de Smith, e uma outra na Revolução Francesa e no movimento liberal espanhol do século XIX. Este não tinha como objetivo a liberdade de mercado, mas o enfraquecimento da monarquia e da Igreja na Espanha. Seus membros diziam-se liberales por contraposição com os “servos” do Rei; e, curiosamente, o liberalismo no sentido norte-americano provém desta segunda origem.

Se por um lado é possível distinguir com certa clareza as diversas origens do “liberalismo”, o conceito de “fascismo”, por outro, tem uma definição muito mais complexa. E se os liberals souberam explorar a ambigüidade de sua autodenominação, também a dificuldade de conceituar o fascismo serviu-lhes muito bem: Goldberg afirma que uma prioridade para a esquerda americana é justamente não esclarecer o que o termo fascismo significa, o que lhe proporciona a possibilidade de utilizá-lo simplesmente como uma espécie de xingamento universal: “algo ruim”.

Entretanto, desde o início o fascismo entendeu-se a si mesmo como fenômeno de esquerda e até se situou deliberadamente perto do comunismo. Mussolini, antes de se tornar duce, escrevia tratados socialistas e era admirador de Lênin e admirado por ele. Tão pragmático e oportunista quanto ele, Hitler também era tudo, menos conservador, pois desprezava ao mesmo tempo os valores tradicionais e a ordem republicana alemã da época. E o próximo grande fascista a constar no livro não é um ditador como Franco, mas… Woodrow Wilson, presidente americano durante a Primeira Guerra Mundial. Aliás, é a partir dele que Goldberg passa a descrever o liberal fascism de fato, mostrando como nesse momento os EUA estiveram realmente próximos do fascismo em toda sua “glória”: mais dissidentes foram presos ali durante a primeira Guerra Mundial do que em toda a década de 1920 na Itália; além disso, o governo americano criou um gigantesco ministério da propaganda, jornais foram fechados e as liberdades civis tiveram um forte retrocesso. Para não mencionar as políticas de eugenia, praticadas nos Estados Unidos antes ainda do que na Alemanha.

E como se o fascismo de Wilson não fosse surpreendente o suficiente, o próximo líder a ser examinado é aquele que é tido como o maior presidente americano do século passado: Franklin Delano Roosevelt, cujo New Deal se apresenta como uma “via intermediária” entre o estatismo absoluto e o liberalismo, de modo muito semelhante à autoclassificação de Mussolini e Hitler como simultaneamente anti-bolchevistas e anti-liberais (no sentido clássico). De FDR Goldberg passa para a década de 1960: os movimentos populares e os governos Kennedy (adotado postumamente como símbolo dos liberais) e Johnson. Nos movimentos populares, identifica aquilo a que chama a “culpa liberal”: a culpa experimentada pela esquerda sentiu por estar “deixando para trás” crianças, negros, gays, ou seja, os “oprimidos”, e que a levou a transferir a tônica da sua militância para eles. E esse sentimento de culpa serviu-lhe ao mesmo tempo como armadilha para os conservadores: afinal, se você discorda das ações dos liberals, é porque “odeia os oprimidos”.

Goldberg não se detém apenas nas idéias e na história do progressismo, mas traz a discussão aos dias atuais. Da leitura do livro ficam claras certas características permanentes do fascismo, tanto do tradicional quanto do “liberal”: a idéia da via intermediária, o culto da ação, o entendimento da nação como um corpo único e a mobilização desse corpo para atingir um dado objetivo – freqüentemente a guerra ou algum “equivalente moral” dela -, o pragmatismo, a politização de todos os componentes da vida (sexo, raça, gostos culinários), o populismo econômico. Há como afirmar seriamente que estes não são componentes da vida atual?

É aqui que o argumento de Goldberg e sua definição de fascismo ganham peso. Goldberg trabalha com um fascismo que, na verdade, é uma religião de Estado, tem sede de um líder que una os desejos do povo e é totalitário na medida em que toda ação estatal se justifica se for feita em prol do bem comum. Somente levando em consideração todos esses fatores é que podemos entender como e por que o autor define o fascismo como essa “religião” que apresenta o Estado como “salvador”, responsável pela solução dos problemas da humanidade, seja ele o big brother orwelliano ou o “admirável mundo novo” de Aldous Huxley – que, por sinal, foi quem cunhou o termo liberal fascism. O liberal fascism não é um pai malvado e perseguidor, mas uma mãe boazinha que quer apenas o bem de seus filhos. Enfim, “se houvesse uma tomada de poder fascista na América, ela não viria sob a forma de tropas de choque arrombando portas, mas sim com advogados e assistentes sociais dizendo ‘Eu sou do governo e estou aqui para ajudar'”.

As constantes ressalvas que aparecem no texto indicam que a intenção do autor não é mera propaganda eleitoreira. Por mais que identifique traços fascistas no New Deal e nas propostas políticas de Hillary Clinton, Goldberg deixa claro que não se pode tomar os seus autores como indivíduos desejosos de prejudicar os concidadãos nem como ideólogos totalitários sedentos de sangue. Entretanto, é fato que nas suas propostas e ações há aspectos que provêm claramente do fascismo. Em que medida os liberals entendem as repercussões e as origens de suas propostas já é tema para outra discussão. Neste contexto, o autor observa também que o fascismo assume diferentes formas em diferentes culturas e que, nos Estados Unidos, assumiu felizmente uma forma menos violenta que na Itália ou na Alemanha.

Ainda sobre todas as ressalvas espalhadas sobre o texto, fica uma reflexão: não seria a necessidade dessas ressalvas justamente um indício de que vivemos em um ambiente fascista? A força de alguns lugares-comuns e dos hábitos politicamente corretos é hoje clara como o dia. Sempre que alguém foge desses padrões de pensamento, é acusado por tudo aquilo que está como errado, numa situação é muito parecida com a da armadilha que a “culpa liberal” da década de 1960 representou para os conservadores. Mas o simples lançamento do livro indica que há uma luz no fim do túnel; o diagnóstico precede a cura. E Goldberg diagnostica o mal de forma muito clara: o fascismo, liberal ou não, está presente no nosso cotidiano.

 

Luiz Felipe Estanislau do Amaral é economista pelo Ibmec-SP.