por Giacomo Leopardi
Se os únicos e incomparáveis autores de bela literatura em toda a Antigüidade foram os gregos e os latinos (e possa eternamente descansar em paz quem porventura o negue), é evidente que em suma reverência e em altíssima conta se devem ter os juízos que eles mesmos fizeram das obras de gênio (direi à francesa por não saber dizer de outro modo), se é verdade que bem julga, é claro, a época que bem faz. Pelo que muitas vezes lamentei comigo mesmo a infelicíssima perda do Catálogo de autores de todos os gêneros, dividido em cento e vinte livros, de Calímaco, o caro autor de hinos e tantos outros poemas que também se perderam: para não falar da obra ainda mais vasta em que o grande crítico Longino apreciava e sentenciava tantos e tantos escritores da Antigüidade. Sem dúvida jamais lamentarei a contento, porém, os antigos autores que se foram e os bárbaros séculos que chegaram, os quais nos transmitiram com impertinente diligência e cópia de exemplares tantas obras menores dignas apenas, como se diz, de agradar às freiras prestes a adormecer, enquanto, mercê da sua inteligência obtusa e mil vezes mal-afortunada, tantas fadigas de altíssimos engenhos, tantas canções de divinos cantores, tantos e tão doces frutos de adoráveis fantasias (acima de quantos o sol das Musas jamais iluminou) morreram para sempre e como que jamais existiram, inúteis e em grande parte desconhecidos pelos séculos dos séculos: tanto que não se poderia percorrer a biblioteca grega de Fabrício sem lágrima e desespero, já que um terço dela é índice dos danos que o tempo nos causou, e um outro terço dos serviços que nos não prestou.
Quem de bom grado não daria as ridículas lengalengas de Proclo sobre Platão, as vergonhosas nugas de Artemidoro sobre o sonhos, as mortificantes disputas de Alexandre de Afrodísias, Amônio, Filopono de Olimpiodoro, Siriano e toda aquela barafunda de alquimistas gregos cuja mera leitura do índice já nos causa exaustão, a maioria dos superabundantes manuais de gramáticos e retóricos impressos ou ainda manuscritos e grande parte de Filo, Sexto Empírico, Porfírio, os mistérios de Plotino – mais eternos que o argumento do sétimo da terceira das Enéadas –, os comentários de Simplício, os mexericos de Aristides e de Libânio, a multidão de apócrifos que só faz crescer e a imensa escória de manuscritos que não se imprimem porque não se leriam em troca de algum poema perdido de Homero, Alceu, Anacreonte, Simônides, Estesícoro ou da grandiosa Safo, de quem quase nada nos restou; de alguma tragédia das trezentas e tantas de Ésquilo, Sófocles e Eurípides que se perderam; dos discursos de Licurgo e de Hipérides; das obras astronômico-geográficas de Aristarco de Samos, Eratóstenes e Hiparco; dos Idílios perdidos de Teócrito, Bíon e Mosco, e das Elegias de Calímaco, considerado o príncipe desse gênero de composição; dos vinte e cinco livros perdidos de Diodoro Sículo e outros tantos de Díon Cássio; das Vidas de Epaminondas, Cipião, Hesíodo, Píndaro e muitos outros escritos de Plutarco; das histórias da astronomia de Teofrasto e Eudemo, o qual compôs também uma história da geometria: quem de bom grado não trocaria todos os tomos in-fólio daquelas obras miseráveis por um precioso voluminho dessas últimas? Mas, porque o lamento seria infinito e inútil, e, assim fazendo, nos desviaríamos do bom caminho rumo a um beco, como dizem os latinos, que nos deixaria a mil quilômetros de distância do argumento, voltarei e direi o quanto me agrada meditar (brevemente, como se sabe) na fama de Horácio entre os antigos; porque ninguém espere que eu diga de suas obras ou do que quer que lhe diga respeito palavra não dita pelos antigos escritores.
E, para começar pelos seus contemporâneos, basta haver lido a Vida de Horácio escrita por Suetônio para saber que ele não foi daqueles a quem a fama chega depois da morte, a quem a tristíssima necessidade obriga, pois, a apelar à sentença do futuro; que, se o benefício e a familiaridade dos grandes fazem um sábio feliz, ele foi raríssimo e felicíssimo exemplo de felicidade: já que Mecenas lhe endereçou este epigrama, a ele, nascido de baixa estirpe:
Já não menos te amo, Horácio,
que as minhas próprias vísceras:
tu, que a este teu amigo bem pareces
mais teimoso que um jumento:
e escreveu ao próprio Augusto: “Lembra-te de Horácio Flaco como de mim mesmo”: e o imperador o tratava de tal modo que amigo a amigo de igual condição não seria mais íntimo nem mais afável. E ainda grandes varões, cuja grandeza se devia a tudo menos à pequenez dos cidadãos, o tinham na mais alta estima, de vez que Virgílio, Tibulo, Vário e outros daquele tempo se contavam entre os seus melhores amigos, e, uma vez morto, foi celebrado por Ovídio no dístico em que alude à harmonia dos seus versos:
E o polimétrico Horácio cativou
nossa atenção
quando tocou na lira pátria canções
esmeradíssimas.
Meio século mais tarde, a Petrônio agradava em Horácio certa curiosa felicitas, que aquele mostrou com toda a evidência lá quando, dizendo que se devia “fazer com que as sentenças não se destacassem do corpo do discurso, mas antes parecessem as cores com que a veste é tecida”, cita Homero, os líricos, Virgílio e essa propriedade de Horácio. Delicado, chamou-lhe gracilem na mesma época Lucano, se é que é ele o autor do poemeto a Pisão que lhe atribuem: e Marcial, pouco depois, parece que o teve por príncipe dos líricos latinos – assim como, em tempos mais recentes, Ausônio e São Jerônimo, enquanto Sidônio Apolinário, no século quinto, o antepôs a Alceu, e recenseou-lhe as obras todas não em prosa, mas em cinco versos. Já no sexto século, Venâncio Fortunato chamou-lhe pindárico, e, em outro passo, que o poeta lhe era especialmente caro. Isso tudo sobre as Odes. Das Sátiras belo elogio foi Pérsio quem fez – e bem lhe convinha falar sobre o assunto – naquela célebre passagem:
O agudo Flaco espetou todos os vícios
do amigo que sorria e, entrando-lhe no peito,
ali brincou, tão hábil em pendurar o público
no seu nariz que não pára de coçar.
Também Juvenal, juiz competentíssimo, não deixou de lhes fazer as honras lá onde, recordando, disse:
Não hei de crer tais coisas sejam dignas
da horaciana lâmpada? Não hei
de pôr meu dedo nelas?
Mais ou menos dois séculos mais tarde, Lactâncio chamou-lhes corretíssimas, e máximo poeta ao seu autor; e pouco depois um dos antigos comentadores de Horácio disse que a sua sátira tinha a aspereza de Lucílio e a suavidade de Juvenal, e estava no ponto médio entre um e outro. Mas muito mais autoridade tem o juízo de Quintiliano, que das Sátiras e das Odes escreveu: “Eu, contudo, não concordo nem com eles nem com Horácio, o qual estima que Lucílio flua qual rio lamacento e tenha algo que se possa suprimir. Mas há nele uma espantosa erudição e liberdade, e, pois, mordacidade e muito sal. Horácio é muito mais límpido e puro, e, se não me engana o amor que lhe tenho, imprescindível. […] Dos líricos latinos, pois, apenas Horácio é digno de ler-se: porque chega a alçar vôo e é rico em beleza e em graça, e felicissimamente ousado no uso de diversas figuras e palavras”. Tácito, no Diálogo dos oradores, diz que naquele tempo esperava-se do orador “certo decoro poético mesmo, não eivado daquela letargia de Ácio e Pacúvio, mas colhido do sacrário de Horácio, Virgílio e Lucano”, e censura aos que lêem Lucílio e Lucrécio de preferência a Virgílio e Horácio. Por fim, Lamprídio nos recorda a propósito do imperador Alexandre Severo que se deleitava com a leitura de Horácio; e de um certo Passieno Paulo, poeta lírico e elegíaco, diz o seu amigo Plínio o Moço que foi grande imitador de Horácio nas Odes e de Propércio – a quem tinha entre os seus maiores – nas Elegias.
Mas, alguém porventura dirá, o que queres dizer com essa tua conversa fiada? Que por Horácio grandíssima estima nutriram os antigos, tal como nós? E já o não sabíamos, aliás, antes desse mundaréu de citações? Ao que responderia, pelo contrário, que o meu ponto é precisamente mostrar que entre os mais antigos (note-se que eu disse ‘mais antigos’ e não simplesmente ‘antigos’, com o que pretendi referir-me aos que viveram nos primeiros séculos depois dele) Horácio não gozava desta altíssima fama que lhe soemos atribuir: e este é o principal objetivo deste texto. Fique-se, pois, sabendo que nos tempos mais antigos Horácio não foi tido por tão grande e soberano poeta como agora o têm, e como tiveram a Virgílio ontem, hoje e sempre, mas a ele não, já pouco depois. Que assim tenha sido, eis, a propósito, um passo de Frontão (e talvez seja esta a primeira vez que se invoca na Itália a autoridade e as palavras deste excelentíssimo escritor), referindo-se a um dos Sermones [1]: “Horácio Flaco me fez mil gracejos naquele trecho, poeta digno de nota e, ao que me toca a mim, por seu amor a Mecenas e aos jardins que este lhe dera, não desagradável”. Ora, não vos parece que Frontão, chamando a Horácio poeta não desprezível, quase discorda do que diz? E por que razão miserável vem a dizê-lo! Porque ganhara os jardins de Mecenas… Sem dúvida muito me espantei na primeira vez que li tais palavras. Quem, entre nós, dissesse: Horácio não me desagrada, diria coisa ridícula; menos ridícula se dissesse: Não gosto muito de Horácio. Convém dizer, portanto, ou bem que Frontão escrevesse coisa insulsíssima, o que a engenho assim tão exímio não quero nem poderia creditar; ou bem que Horácio, naquele tempo, reputado por muitos homens doutos um grande poeta, não houvesse, porém, por consentimento geral, chegado àquele supremo grau da fama em que ora o temos. Isso me parece evidente. Um florentino poderia dizer: por amor da pátria, Cavalcanti não me aborrece; porque esse poeta não goza de tão alto mérito e fama que toda a gente, fora de qualquer dúvida, concorde a seu respeito: mas não sem suma estultícia diria: Dante é poeta digno de nota e, ao que me toca a mim, por amor à Florença, não desagradável; haja vista que Dante, a qualquer florentino ou não-florentino minimamente são, não é já digno de nota, mas divino. Visto que Frontão, pois, disse que Horácio lhe não fosse desagradável, e acrescentou razão leviana, “por amor a Mecenas e aos jardins que este lhe dera”, só nos resta pensar que não houvesse atingido um tão alto renome que não espantaria quem fizesse menos que honrar a sua obra; assim como não atingiu o mencionado Cavalcanti, a título de exemplo.
Aduzirei outra prova, conquanto menos concludente. Possuo num códice escrito em 1475, cujo autor morreu dois anos depois, dois opúsculos ainda inéditos de Pier Candido Decembrio: ora, o primeiro, intitulado Perigrinae historiae libri tres, termina com uma espécie de apêndice, Epilogus de imperatoribus illustribus et poetis, no qual, entre outros tantos, se aprecia o poeta em pauta. É surpreendente como em ambos os opúsculos, muitas vezes (como era uso entre os escritores do tempo), o autor emprega trechos e sentenças dos antigos latinos sem lhes creditar a citação; donde pudesse ter colhido num antigo isto que diz de Horácio, e que agora transcrevo. Eis as suas palavras: “Horácio Flaco, nascido de pai liberto, mercê do seu saber ou da sua poesia, granjeou a benevolência dos homens ilustres. Foi especialmente recomendado pelo grande Virgílio a Mecenas, pôs-se a escrever poemas líricos – nos quais alcançou admirável glória e louvor – e também várias sátiras e epístolas: obra de pouca monta, como se vê, em que a precípua utilidade supera a beleza. Em poética, contribuiu com uma refinada arte ou doutrina da poesia; sem dúvida rica em sentenças, sua eloqüência, a bem da verdade, era rude e inferior, mas é possível que essa como austeridade no dizer agrade a alguns do mesmo modo que no vinho um certo amargor. Pareceu mais propenso a dedicar-se à filosofia, em especial ao epicurismo: de vez que não se abstém das palavras simples, e, sobretudo, abusa das sentenças menos nobres e obsoletas. Pela autoridade, contudo, dos maiores homens, e pelo empenho e disciplina da escrita, merece contar-se entre os poetas ilustres”. E, em seguida, falando de Juvenal, diz: “Júnio Juvenal, oriundo da cidade de Aquino, em ordem e idade foi posterior a Horácio Flaco, em eloqüência e engenho e suavidade e doutrina muito superior”. Esse juízo é mui desfavorável ao mísero Flaco. E poderia alegar ainda o silêncio de Veleio, que certamente há de perecer espantoso a quem de mim discorda; pois, enumerando os escritores do período áureo, recorda Cícero, Hortênsio, Crasso, Catão, Sulpício, Bruto, Calvo, Júlio César, Messala Corvino, Salústio, Varrão, Lucrécio, Catulo, Virgílio principem carminum, Lívio Tibulo, Ovídio, e até Calídio, Célio, Polião e Rabírio; mas de Horácio não há palavra. E, certamente, conquanto os argumentos negativos não tenham, em geral, um grande peso, não assim quando se trata de renome, sendo manifesto que não é muito famoso aquele de quem se cala, se já não fosse um Heróstrato [2].
Ora, tendo mostrado com suficiente clareza que se encontrava Horácio entre os mais antigos num outro patamar de fama, diferente do que entre nós se encontra, parece-me que há de investigar-se a razão dessa diferença. Ninguém vá dizer que a Antigüidade nutria máxima estima por um escritor guiada pelo vulgo, e que Frontão, vindo um século e meio depois de Horácio, viveu num tempo em que este não se podia ainda dizer antigo nem tampouco estimar clássico por toda a gente: visto que mil exemplos comprovam ser um século e meio suficiente para dar a um escritor renome de clássico e antigo. E sem sair da Itália, nos Seiscentos e já mesmo nos Quinhentos Ariosto e Tasso se citavam como agora, tanto que as personagens dos seus poemas eram tão famosas entre nós quanto as de Homero ou de Virgílio. E acerca de Dante, morto em 1321, sabe-se que a Divina Comédia se lia e se estudava já em 1373 por Boccaccio em Florença, e no mesmo século por Benvenuto de’ Rambaldi em Bolonha, e por Francesco da Buti em Pisa, e por Gabriello Squaro em Veneza, e por Filippo da Reggio em Piacenza. E Virgílio chegou rapidamente àquele grau de reputação em que sempre esteve e estará sempre, de sorte que Propércio, quase contemporâneo seu, escrevesse da Eneida o celebérrimo dístico:
Anuí, gregos, anuí, latinos:nasce um quê maior que a Ilíada;
e Ovídio, coevo de Propércio, do mesmo poema dissesse:
obra nenhuma excele o ilustre Lácio,
e noutro passo:
Títiro e as searas e as armas de Enéas ler-se-ão
enquanto Roma for a capital do mundo;
e Sílio Itálico, no tempo menos distante de Virgílio que Frontão de Horácio, escrevesse da pátria do poeta:
Mântua é a casa, a habitação das Musas,
e o canto andino a elevou aos céus,
desafiando o plectro lá de Esmirna;
honrando, além disso, grandemente a sua imagem, e comemorando o seu aniversário “mais religiosamente que o próprio, sobretudo em Nápoles, onde se soía ir ao seu monumento como se vai a um templo”; e Estácio, ao final da Tebaida, dirigindo-se ao seu poema:
Não chegues perto da divina Eneida:
segue-a de longe, adora-lhe as pegadas.
e Juvenal:
Há de cantar o criador da Ilíada,
e de Marrão altissonante o poema
cantando o incerto remo.
Quis trazer à baila todas essas passagens para que se notasse a diferença, nos primeiros tempos, entre a fama de Virgílio e a de Horácio. Depois disso, nós, mencionando-os juntamente, diríamos tanto Horácio e Virgílio quanto Virgílio e Horácio; mas a coisa não se deu assim entre os mais antigos, nem Frontão diria jamais ser Virgílio poeta digno de nota e não desagradável a si por causa de uma bagatela: justo Frontão, que nos seus Exempla elocutionum se valeu de Virgílio como de autor precípuo em matéria de língua.
A primeira razão de tal diferença eu julgo tenha sido a diferença das obras. A Eneida, vasto poema de grande argumento e aos romanos particularmente caro, tido por muitos desde o seu nascimento como superior à própria Ilíada – a Ilíada que por tantos séculos se acreditou inigualável –, encheu as almas de estupor e as fez ato contínuo considerar o poeta como o maior dos vates latinos. As pequenas Odes de Horácio, lidas com prazer por muitos, com maravilha por poucos, não podiam nem pela dimensão nem pelo argumento se elevar tão logo a tão alto posto; e as Sátiras e as Epístolas, que muitos têm tido por prosa metrificada, e a que o mesmo autor chamou Conversas, o vulgo as reputou obras bem feitas, nada mais. E quem fizer madura consideração acerca dos líricos e épicos de cada povo, verá claramente que os últimos, na comum estima, são de ordinário tidos em mais alta conta que os primeiros, não só porque a perfeição, se é tão difícil e necessária em todo gênero de poesia, no lírico é dificílima e necessariíssima, mas também porque o vulgo (e quando digo ‘vulgo’ não me refiro à plebe senão à máxima parte dos literatos, juízes da fama dos escritores) costuma dar mais sublime posto à épica do que à lírica. Petrarca, que está entre nós dignissimamente ao lado de Ariosto e de Tasso, constitui um raro exemplo, sem dúvida, nem sua espécie de poesia pode confundir-se com a de Horácio. E que, talvez, junto a certo povo num momento felicíssimo, certo gênero de poesia seja tido em baixa estima, o qual, noutro momento igualmente feliz, se eleve à mais alta reputação, decorre claramente do exemplo supracitado. Quem negará que século venturosíssimo para as letras haja sido o XVI? Contudo se sabe que pouco ligavam, àquela altura, para as traduções, de sorte que Caro, publicando a excelentíssima sua tradução da Eneida, a qual o tornou famoso, escrevesse então a um amigo: “Sei que faço coisa de escasso louvor traduzindo de uma língua noutra, mas meu intuito não é ser louvado”. E nos séculos seguintes até o XIX não houve quase tradutor em cujo prefácio não se recitasse a mesma ladainha sobre o valor das traduções, que muitos não consideravam boas senão por colocar a obra em pauta em condições de ler-se por quem não sabia a língua dos textos. Ora, finalmente se soube que um grande tradutor era também um grande escritor, e, o que é melhor, coisa não rara, visto que a Fênix não é rara. Por isso não espanta que Virgílio, sumo poeta no seu gênero, fosse tido acima de Horácio sumo no seu.
Demais, se não me equivoco, Frontão lá teve o seu motivo para não amá-lo grandemente. Porque ele não foi um fabricante de palavras muito comedido, donde Bentley o ter chamado de grande inovador: basta ler o que deixou escrito a propósito na Arte poética, onde também, assim como em outras obras, se revelou pouco afeito aos antigos poetas romanos, e proferiu contra Plauto aquele famoso juízo a que Escalígero chamou sine iudicio, o qual, no dizer de Justo Lípsio, nunca lia aquela passagem sem uma indignaçãozinha, sine indignatiuncula. Tais coisas a Frontão, sumo defensor dos antigos e zelosíssimo da pureza da língua, não deviam saber a mel. E eu noto que Aulo Gélio, amigo de Frontão e amante, como ele, daquela áurea pureza, não citou Horácio senão de passagem e uma única vez lá onde, nas Noites áticas, discute gramática e palavras, mas muitíssimas vezes a Virgílio. Quanto a Decembrio, penso que o seu desamor ao nosso poeta provenha do fato de haver anteposto (ou ele, ou o antigo onde colheu a sua sentença) a sátira de Juvenal à do mesmo Horácio; coisa que outros também fizeram: mas que prefiro não comentar.
Tradução de Érico Nogueira. (Giacomo Leopardi. Della fama di Orazio presso gli antichi. In: Tutte le poesie e tutte le prose. Grandi Tascabili Economici Newton, pp. 950-953.)
[1] Designação comum às Sátiras e às Epístolas (N. do T.).
[2] Jovem grego que em desmedida busca de fama ateou fogo ao templo de Ártemis em Éfeso por volta de 356 a.C. (N. do T.)