Not here the darkness, in this twittering world
T. S. Eliot – Four Quartets
Ah, que tal este admirável mundo novo da tecnologia, não é? Agora temos tudo: o Facebook, os blogs, o Orkut, o LinkedIn, a Internet, o iPhone, o iPod, o iMac, o Blackberry, o Windows Vista, a Apple – e, claro, o Twitter, este receptáculo de aforismos muito mal elaborados e que incentivam uma única coisa: a preguiça intelectual.
Mas, como se não bastasse, temos mais uma curiosidade tecnológica: o Kindle. Em um ensaio publicado na New Yorker, o escritor e editor Nicholson Baker descreve a sua experiência com o Kindle. Para quem não sabe, este é o último artefato da moda, que tenta unir as duas pontas da teconologia state of the art e a da paixão (ou consumo) pelos livros. Concebido por Jeff Bezos, CEO da Amazon.com, você pode ter todos os livros que deseja no Kindle, descarregados (ou será que o termo certo é downloaded?) em questão de segundos e ter a praticidade de lê-los em qualquer lugar do planeta (afinal, estamos em um mundo globalizado…).
O público-alvo é o mais desejado de todas as empresas: pessoas da alta casta econômica-burocrática , entre 30 e 70 anos, fãs de tecnologia e, sobretudo, praticidade. Todos que estão dentro deste escopo gostam de ter, em menos de três minutos, o seu Michael Porter, o seu Philip Kotler, o seu Sun-Tzu para dummies e o seu Lair Ribeiro em suas mãos.
(A propósito, alguém aí deste beautiful people ainda acredita em Lair Ribeiro?)
Nicholson Baker, apesar de ter 53 anos, não faz parte desse público-alvo. Foi editor de várias empresas de publishing nos EUA; e escreveu dois livros muito interessantes: o primeiro, Fermata, parte de uma inusitada premissa – homem começa a paralisar o mundo com a força de sua mente para fazer o que quiser – e descamba para uma espécie de Henry Miller pós-pós-pós moderno; o segundo é U & I, relato divertídissimo de memórias a respeito de seu relacionamento com ninguém menos que John Updike, considerado pelo próprio Baker como um de seus mestres.
Portanto, eis um sujeito que gosta de livros pelo simples prazer de tocá-los. Seu encontro com o Kindle se dá pela simples motivação do hype; todas as pessoas “descoladas” que ele conhecia afirmaram que esta seria a “verdadeira revolução da leitura” e que tornaria o livro físico um objeto – notem bem a palavra que será usada – “obsoleto”:
“Everybody was saying that the new Kindle was terribly important—that it was an alpenhorn blast of post-Gutenbergian revalorization. In the Wall Street Journal, the cultural critic Steven Johnson wrote that he’d been alone one day in a restaurant in Austin, Texas, when he was seized by the urge to read a novel. Within minutes, thanks to Kindle’s free 3G hookup with Sprint wireless—they call it Whispernet—he was well into Chapter 1 of Zadie Smith’s “On Beauty” ($9.99 for the e-book, $10.20 for the paperback). Writing and publishing, he believed, would never be the same. In Newsweek, Jacob Weisberg, the editor-in-chief of the Slate Group, confided that for weeks he’d been doing all his recreational reading on the Kindle 2, and he claimed that it offered a “fundamentally better experience” than inked paper did. “Jeff Bezos”—Amazon’s founder and C.E.O.—“has built a machine that marks a cultural revolution,” Weisberg said. “Printed books, the most important artifacts of human civilization, are going to join newspapers and magazines on the road to obsolescence.”
Lots of ordinary people were excited about the Kindle 2, too—there were then about fifteen hundred five-star customer reviews at the Kindle Store, saying “I love my Kindle” over and over, and only a few hundred bitter one-stars. Kindle books were clean. “I’ve always been creeped out by library books and used books,” one visitor, Christine Ring, wrote on the Amazon Web site. “You never know where they’ve been!” “It has reinvigorated my interest in reading,” another reviewer said. “I’m hooked,” another said. “If I dropped my kindle down a sewer, I would buy another one immediately.” “
Baker então compra o seu Kindle e, na hora de começar a sua leitura, tem a seguinte surpresa. Um de seus gadgets é justamente quando você pode ler um livro e, ao mesmo tempo, ouvi-lo em um audiobook muito mais sofisticado; até aí tudo bem. O problema é quando a voz em questão é muito parecida com a de … Tom Hanks:
“Reading some of “Max,” a James Patterson novel, I experimented with the text-to-speech feature. The robo-reader had a polite, halting, Middle European intonation, like Tom Hanks in “The Terminal,” and it was sometimes confused by periods. Once it thought “miss.” was the abbreviation of a state name: “He loved the chase, the hunt, the split-second intersection of luck and skill that allowed him to exercise his perfection, his inability to Mississippi.” I turned the machine off.”
(OK: Algum engraçadinho aí – afinal, sempre os há, é como se fossem uma praga – afirmará que ler James Patterson não é a prova de que o tal do Baker é um sujeito culto, “antenado”. Mas me vem à cabeça agora o fato de que Juan Carlos Onetti, W.H. Auden e Eric Voegelin adoravam romances policiais e que sempre os tinham na cabeceira da cama)
Mas, segundo Baker, o problema não é o risco de você ler Mark Twain com o sotaque de Forrest Gump. O busílis é que o Kindle tira qualquer espécie de tactilidade do objeto do livro. Explico-me: sou da época que, como bem disse Nelson Ascher em uma de nossas conversas, divide o mundo entre aqueles que quebram lombadas de paperback e que as mantém intactas. Sou o tipo de pessoa que, não importa aonde, enquanto a consorte vai à loja de roupas, prefiro ficar em qualquer livraria, mesmo que seja uma Siciliano da vida (Creio que um dos momentos mais baixos da minha vida foi quando fiquei em uma papelaria-livraria de subúrbio, ao som de Rick Astley, simplesmente porque não havia outra maneira de esperar uma pessoa que estava pelas redondezas). Quando ganho um dinheiro a mais, metade vai para a compra de mais livros. E, ora bolas, um dos motivos pelo qual eu saí do meu trabalho na Livraria Cultura é que a pressão era tamanha que estava a me fazer perder o amor pelos livros (Na verdade, não foi nada original a minha atitude; George Orwell fez a mesma coisa quando trabalhou em um sebo nos anos 30).
E há a questão do cheiro. Vocês sabem do que estou falando. Existem três sensações divinas no mundo: o toque na pele de uma mulher bonita, o choro de uma criança saudável e o cheiro de papel de um livro recém-aberto. São três experiências que, se ninguém aí as teve, provavelmente tem sérias dificuldades de relacionamento com a sociedade; e isso sem contar que, segundo os relatos de Baker, o Kindle tem certos problemas com a luz do sol:
“There was another problem with the revised Kindle—fading. Some owners (not me, though) found that when they read in the sun the letters began to disappear. Readers had to press Alt-G repeatedly to bring them back. “Today is the first day when we have had bright sunshine, so I took the Kindle out in the sun and was dismayed to see that the text (particularly near the center of the screen) faded within seconds,” one owner, Woody, wrote. Another owner, Mark, said, “I went through 4 kindles til I found a good one that doesn’t fade in the sun. It was a hassle but Amazon has a great CS.” (CS is customer service.)”
O Kindle é só uma parte do problema. Nos últimos anos, o fetiche da tecnologia tomou conta dos meios básicos de informação e de transmissão de conhecimento. Podem colocar a culpa na Internet, mas creio que não é só isso. Creio que o exemplo mais recente de hype é o tal do Twitter. Fizeram os mais diversos vatícinios: afirmaram que a “longa cauda dos blogs” havia terminado; disseram que o Twitter revolucionou o jornalismo com a cobertura das eleições no Irã; no movimento Fora Sarney; na vida das celebridades; enfim, o Twitter é a nova moda e, como toda moda, estimula apenas a acedia da mente.
Novamente, tenho de me explicar (no mundo de hoje, a única coisa que as pessoas fazem é a explicação da explicação): O que é o Twitter realmente? Uma série de frases que não atingem mais de 140 caracteres e que a pessoa expõe a sua vida ou os seus pensamentos diários como faz qualquer vaidoso. Há alguns anos, o blog supria essa necessidade; contudo, o que era para ser um diário de menininha tornou-se uma arma de análise, justamente porque o blog não tinha a tirania do espaço que consome a vida dos grandes jornais. Qualquer um poderia dar o seu pitaco nas notícias do dia; pouco a pouco, os blogs tiveram um crescimento tão orgânico que até os jornalistas da grande imprensa tiveram que se render.
O Twitter não permite esse crescimento orgânico, que, em outras palavras, chama-se talento. Apesar de certamente existirem pessoas talentosas que saibam escrever com apenas 140 caracteres, confesso a vocês que, para mim, a arte do aforismo só pode ser comparada com o melhor de Pascal, Joseph Joubert, o Livro de Provérbios e Nietzsche. Por sua vez, o blog deixa que percebemos os mais diferentes formatos de texto, desde do mais epigramático (como o saudoso Dante fazia em seu falecido blog Saudades do Presidente Figueiredo) até o delirantemente quilométrico (como Mencius Moldbug e, claro, este texto que o leitor está a ler).
O que une os fenômenos do Kindler e do Twitter neste post sem pé nem cabeça (pelo menos para o leitor comum; para mim faz todo o sentido; mas quem disse que eu escrevo para o leitor? Eu escrevo é para o Leo Strauss) é que a tecnologia dos nossos tempos – filha daquela outra tecnologia que Stanley Kubrick já preconizava em 2001: Uma odisséia no espaço – quer impedir qualquer sensação de imperfeito em nossas vidas. Em outras palavras: não há aquela zona cinzenta que faz a verdadeira comunicação que, como já disse uma vez, é sempre calcada na possibilidade de fracasso que temos em nossas vidas. Se você não quer quebrar a lombada do paperback, espirrar ao cheirar o pó de um livro ou não ter o reflexo da página branca na sua cara, o Kindle pode ser a condição perfeita de leitura; e se você acordou um belo dia e teve a vontade de expressar o que sente ao ler as manchetes do jornal, mas não quis elaborar seus pensamentos (porque afinal a sua vida é muito corrida, não é?), então twittar é a função ideal para o invólucro que supostamente ocupa o seu cérebro. Mas você perderá a experiência real disso tudo que transforma a pessoa; perderá a ansiedade que há quando você procura um livro antigo em um sebo; perderá a emoção de sentir a textura de um papel mais elaborado ou a beleza de uma tipografia diferente; e jamais saberá, na hora de escrever o seu aforismo de 140 caracteres, o drama que foi para Flaubert encontrar o seu mot juste.
Neste momento, poderia citar novamente o verso de T.S. Eliot que abre este texto, mas prefiro citar outro:
We had the experience but missed the meaning,
And approach to the meaning restores the experience
E qual é o sentido disso tudo? Ora, leitor, é você mesmo – esse elemento chamado ser humano. O problema não é a tecnologia, mas o que fazemos dela, etc. e tal – já dizia o velho adágio. Mas o que adianta fazer essas perguntas se temos um verdadeiro frisson pelos nossas invenções? Novamente, o velho Gambá faz as perguntas certas:
Where is the wisdom we have lost in knowledge?
Where is the knowledge we have lost in information?
(Hei, e o que é um ludita?, pergunta o incauto leitor ao perceber que o texto termina aqui [porque este escriba tem de trabalhar para garantir o uísque das crianças] {na verdade, ele não aguenta mais escrever este texto} = Não sabe? Então leia este texto e aprenda)
(Nota que não tem nada a ver com o texto ou até tem, mas não vem ao caso: Escutem a voz de Thomas Pynchon e saibam quanto custava uma compra de mercearia há cerca de trinta anos)
Bom… primeiro que não é “Tweeter”, mas “Twitter”. Mas tudo, bem, isso não interfere no que se comenta seguir sobre o mesmo.
Mas tenho que fazer o papel contrário de tentar mostrar o outro lado do “brinquedo”, que é o lado bom.
Usado de forma egocêntrica, e desmedida, o Twitter é realmente a pior ferramenta que inventaram nos ultimos tempos. Mas se utilizado de maneira inteligente, é algo bastante poderoso. E vou explicar minha explicação de porque acho isso:
Trabalho com webdesign, e o twitter virou uma verdadeira febre entre os profissionais dessa área, mas de maneira boa: diversos blogs criaram seus perfis no twitter, e o que divulgam nisso é informação: não seus próprios posts, mas posts de outras pessoas que contém coisas interessantes, galerias de bons sites, comentários de novos recursos Open Source, etc. Enfim, em 140 caracteres, eles levam o usuário para outro local, onde ele terá milhares de caracteres de algum bom assunto, comentado por bons profissionais do ramo.
E, obviamente, pena que nem todos usam dessa maneira… Por isso deletei de minha lista os amigos que só me mandavam bobagens.
Enfim, é mais para mostrar que ele possui coisas boas, e fecho colocando a frase do próprio Martim: “O problema não é a tecnologia, mas o que fazemos dela, etc.”, o que é uma grande verdade.
Valeu, Eduardo. Li seu comentário depois de revisar o texto do Martim nesse aspecto. Ao menos ele provou que não está mesmo nem aí para o Twitter!
Martim, meu prezado,
Penso que, mais do que ter fetiche por novas invencionices tecnológicas, esse povo da casta econômico-burocrática morre de medo é de “ficar desatualizado”, “não conhecer a realidade do mercado” (dadas as vocações isso é até compreensível) e “pensar em marketing como se fazia há 10 anos atrás”.
E é claro que eles transformam todo esse medo no mais boboca deslumbre tecnofílico quando vão dar suas aulas nos MBA´s por aí…
Esse turma não lê o Michael Potter – http://www.phil.cam.ac.uk/teaching_staff/potter/potter_index.htm
Foi ao Michael Porter que você quis se referir? Imagino que sim…
“Eu escrevo é para o Leo Strauss”
HAHA! Ótima!
Explica então para o seu publico alvo como funciona o país do Lair Ribeiro.
Abraço, e parabéns.
Edson
Meus caros:
Hoje foi o meu dia de pisar na bola. Obrigado pelos avisos e obrigado, Julio, pela ajuda na edição.
Abraços
Martim
Só para constar, eu sou do grupo que mantém as lombadas intactas. Minha mãe as quebra, e estou preocupado porque ela está com um dos meus livros do Bento XVI.
“Isso não é uma civilização, isso é uma porcaria”, diria o velho ranzinza Carlos Drumond de Andrade como bem lembrou Raduam Nassar, “o genial escritor que foi criar galinhas” naquela memorável entrevista à Veja, de 1997.(http://veja.abril.com.br/300797/p_009.html).
“Mas me vem à cabeça agora o fato de que Juan Carlos Onetti, W.H. Auden e Eric Voegelin adoravam romances policiais e que sempre os tinham na cabeceira da cama.”
E diz-se que Wittgenstein lia pouquíssimos livros de Filosofia, mas se lambuzava de pulp fiction americanda.
eduardo, essa condição do twitter de linker, que também é do tumblr, do del.icio.us, do stumble e por qualquer outra coisa que você desejasse assinar o feed — i.e. ‘seguir’ –, já existia há muito tempo. o que aparece no twitter, no caso, é uma ligeira facilitação dessa condição e que, também, só assim procede como uma vantagem bem visível por causa do hype — a tal vantagem de ‘seguir’ já foi copiada até pelo blogger.
o texto do martim ainda continua muito válido. eu acho que, sim, caminhamos para uma disposição mais preguiçosa e a uma especialização barbarizante; a ter como exemplo um indivíduo que quando precisa de comida, pede pelo telefone (a um outro indivíduo), quando precisa ler, faz com que outros leiam para ele (audiobooks), quando tem que cuidar do cão, tem que contratar um treinador, quando quer cuidar do jardim, contrata um *landscape artist*, quando entra em depressão, tem que tomar remédios receitados por esta outra pessoa etc. o produto final da economia pode ser até maior assim, mas, né, que infelicidade, digam aí, que ‘alienação do trabalho’ ^^.
Eu não acho que seja o caso de discutir aqui a capacidade do twitter de ser melhor que os demais sistemas citados no quesito “divulgar links”… Nem sua inovação no tema nem nada.
E minha colocação foi no sentido de ver com outros olhos: tudo é a preguiça mental e especialização barbarizante? Bom, eu não generalizo… Aliás, bendito o dia que inventaram o disk pizza!
passou a valer a discussão da capacidade do twitter em comparação com outros ‘sistemas’ quando você alegou que existem razões para usar o twitter — considerando também, claro, o texto criticado no seu comentário.
e o meu outro ponto, embora um bocado impreciso, quer atingir o pouco esforço, e de uma parcela significante da população, para as pessoas *existirem* nos dias de hoje. e isso não só vale nessa condição alienante do trabalho que eu citei no meu outro comentário — ainda que com um sentido um pouco diferente e mais impreciso do que este novo –, mas também no estado garantidor de várias benesses, que dá uma renda mínima — ou muito mais, quase que nivela os níveis de renda entre o mais rico e o mais pobre em igualdade –, que dá moradia, que dá saúde e não sei o que mais. e não que essas coisas sejam sempre ruins, não são, mas qual é a decisão que as pessoas tomam diante disso tudo? a preguiça, a falta de tentativa, o ceticismo que contorna a sua própria especialização profissional, a desconfiança de dar um passo à frente e ser mais? o pynchon disse uma vez que hamlet era preguiça.
(acho que a única coisa que eu li do pynchon é o ensaio em que ele menciona isso)