Crédito da foto: Scott Eaton
O atentado às Torres Gêmeas marcou indelevelmente a memória de quem viveu aquele dia. Cada um lembra onde estava quando soube que o WTC tinha sido atacado. Havia um clima de ansiedade e perda de sustentação; tudo estava em aberto. O trabalho e as aulas pararam. Eu estava no primeiro ano do ensino médio, e voltava para casa mais cedo. Muitos colegas foram ao anfiteatro da escola assistir os noticiários. Não vi, mas fiquei sabendo que se comemorou naquele anfiteatro quando o segundo avião bateu, o que não me surpreende: todos ali eram muito conscientizados.
Aplaudir o ato, ou ver nele qualquer semblante de justiça, é quase obsceno. Creio desnecessário argumentar longamente sobre isso. No fundo até os terroristas o sabiam. Marwan al-Shehhi, um deles, respondera certa vez quando lhe perguntaram por que ele nunca sorria: “Como você pode sorrir quando há pessoas morrendo na Palestina?” Por admissão própria, ele via a morte violenta de pessoas como má. Ao decidir cometer os atentados, os jovens fundamentalistas aceitaram ser um canal, um meio de realização, desse mal. Aceitando-se a lógica consequencialista dos terroristas (que é também aceita por importantes filósofos ocidentais) tudo é potencialmente permitido.
Quando especialistas indagam pelas causas de uma atrocidade como essa, as motivações políticas e religiosas tomam o primeiro plano, mas um importante componente filosófico desses crimes, a ideia de que os fins justificam os meios (lembram-se do que Anders Breivik disse sobre seu crime? “Atroz, mas necessário”), é sempre deixada de lado. Talvez porque nossa cultura já a tenha internalizado de tal forma que ela nem figure mais como uma posição filosófica, e pareça antes um elemento imutável da condição humana. Não se concebe mais a possibilidade daquela inflexibilidade que preferia ver o mundo desmoronar nas mãos dos bárbaros e infiéis do que pecar.
Enfim, aceito sem sombra de dúvida que os terroristas eram maus. Nego, contudo, que a maldade explique seus atos. Uma saudável reação aos determinismos psicológicos, neurológicos, sociológicos tem insistido em que a ação criminosa é uma decisão livre e consciente. E até aí não vejo problema, que só surge quando, dessa razoabilidade inicial, dá-se um passo a mais e afirma-se que, portanto, não se pode falar em nenhuma causa além da livre decisão pessoal, posto que qualquer outra coisa tolheria a autonomia, e assim a responsabilidade moral, do agente. Mas qual o preço de se aderir a essa visão de que o ato mau é uma livre escolha alheia a qualquer causalidade? A maldade se torna ininteligível, uma força que vem não se sabe de onde e sem explicações ou propósito.
Explico-me: em toda ação o agente persegue algo que considera bom. Se não considerasse que o fim de seu ato é bom, não quereria agir. O movimento que não tem causas finais é na melhor das hipóteses um reflexo mecânico, algo que nem chega a configurar uma ação propriamente humana. Portanto buscamos algo que consideramos bons. E não somos nós que decidimos o que consideramos bom. Ao deliberar, escolhemos meios para alcançar um fim que, para essa ação, tem o caráter de um dado imutável. É possível questioná-lo, e compará-lo a outros fins que também são atraentes; essa comparação, todavia, necessariamente se dá à luz de algum fim maior, para os quais esses em consideração são apenas meios. Se não for assim, se a comparação entre os possíveis fins de nossos atos não tiver um critério à luz do qual ser resolvida, então a escolha de um desses fins é um evento fortuito, aleatório do ponto de vista do agente (embora tenha suas causas, vá lá, microfísicas).
Na prática, isso se traduz, por exemplo, em que nenhum homem tem a capacidade ver a dor, a morte, a inimizade, a ignorância como bons em si mesmos. Não está em nosso poder deixar de querer o bem e nem decidir sobre o que é o bem que queremos. Está em nosso poder, contudo, querer o bem de maneira errada, por exemplo subordinando bem maior a um menor, evadindo a consideração racional que mostraria o quanto essa escolha nos distancia daquilo que verdadeiramente procuramos. Isso é o mal. O mal não é uma inclinação contrária a nossa inclinação natural (no sentido de que não a escolhemos), mas sua corrupção. O mal parasita o bem, e toda existência que ele tem é, na verdade, a existência do bem parcialmente mutilado. Mesmo o aparente desejo do mal pelo mal, o desejo de transgredir a moralidade pelo mero fato de ser proibido, tem algum bem que o anima: a admiração dos colegas, a afirmação da própria autonomia e poder, etc.
Assim, não basta saber que o terrorista “era mau” e dar-se por satisfeito da mesma maneira que se soubéssemos que “era louco” (caso em que não mais esperaríamos alguma explicação plausível, ou mesmo inteligível, para seu ato). Precisamos conhecer de onde veio sua maldade; qual era o bem que foi corrompido. Esse é um exercício que será sempre politicamente incorreto, e não tem como não sê-lo. Pois ao nos perguntar sobre as causas de um ato mau, perguntamos, entre outras coisas, pelas crenças e valores que levam a tal distorção do caráter (ou, ainda, que atraem àqueles cujo caráter já é distorcido), e que são elas também, por consequência, más.
No caso do 11 de setembro, sabemos bem a origem intelectual do crime: o Islã de tipo sunita fundamentalista. Para eles, todas as respostas para a existência humana, tanto individual quanto social, estão perfeitamente dadas pelo Corão e pelas falas documentadas de Maomé. Tudo o que passa disso é, na melhor das hipóteses, distração. É preciso dizer o que isso representa para a ciência? Para a arte? Para a filosofia? Se quem pensa assim ficasse contente com sua escolha de vida, até tentando convencer aos demais por seu exemplo e argumentos, e convivendo em paz com eles, não haveria grandes problemas. O problema é que essa versão do Islã inclui a prescrição sobre como a sociedade deve se organizar, e essa prescrição não é exatamente uma carta de direitos individuais. Uma sociedade na qual mulheres não podem mostrar o rosto em público ou conviver com homens não-aparentados, na qual quem não é muçulmano (e da mesma exata variante) é reprimido de várias maneiras, e na qual o muçulmano que decide deixar sua fé recebe a pena de morte. Mesmo com tudo isso, poderia ser que, apesar da proposta política monstruosa, essa ideologia religiosa fosse consistente e respeitasse os próprios mandamentos, não os violando quando fosse conveniente. Contudo, nem aí encontramos consolo: pois para essa visão de mundo não existe certo e errado cognoscíveis racionalmente. Toda a ética deriva do capricho arbitrário de Deus, que pode inclusive dar a ela quantas exceções e auto-contradições ele quiser. Portanto, muito embora Deus condene o homicídio, se for pela causa de destruir os inimigos da fé, tudo bem.
É possível ter um mínimo de decência e sanidade e não ver nisso algo tenebroso? Como fingir que todas as crenças são iguais, que todas as culturas são boas, se há crenças e culturas que pregam isso?
Mas esse é só o primeiro passo da minha proposta de reflexão: identificar o que há de errado nas concepções dos terroristas, que é praticamente tudo. O segundo é, lembrando novamente que o mau tem causas, perguntar-se acerca do que causa uma crença como essa; ou mais especificamente, o que leva alguém a aderir a essa visão de mundo? Trata-se de um estado de revolta profundo. Não revolta contra a “modernidade” (o que é isso, afinal?), mas contra a razão: contra a capacidade do ser humano de conhecer, agir, convencer e criar, a ser substituída pela imposição da fé cega e da obediência muda, o preço a ser pago para se alcançar alguma paz de espírito em meio ao caos, miséria e injustiça que assolam a existência.
E como não se revoltar contra o mundo ao crescer nas condições de pobreza e, o que é pior, falta de perspectivas e a mediocridade existencial nas quais crescem tantos jovens muçulmanos, seja nos países originais de suas famílias ou nas nações europeias para as quais seus pais imigraram? Sua situação é ruim e o sentimento de revolta contra um estado de coisas aviltante é justo. Só que a causa de sua miséria não é o Ocidente, não são os EUA e nem Israel.
A existência de uma nação na qual impere a razão e os direitos individuais, que é o que os EUA ainda simbolizam (na prática, o são parcialmente) é incompatível com a ideologia islâmica fundamentalista, que sempre os odiará. Mas por que essa ideologia encontra adeptos? É tudo manipulação e mentira dos líderes da militância fundamentalista, ou será que os EUA e Israel dão alguns bons motivos para a revolta que se dirige contra eles?
Se o individualismo e a razão são os responsáveis pela morte dos parentes de um rapaz numa operação do exército americano, ou pela violência expansionista do Estado de Israel, a negação desses valores deve ser uma coisa boa. Preservar o mito de que o mal é inexplicável, ou de que não tenha causas boas, serve à ilusão de que não há nada que os EUA e Israel possam fazer para reduzir o ânimo fundamentalista contra eles. Mas os atos do governo americano no Oriente Médio fornecem largo incentivo para que mais jovens muçulmanos se interessem pelo ideário fundamentalista.
Dar as causas de um ato é muito diferente de atribuir responsabilidade. Quem sai na rua ostentando celular e relógio caros e é roubado não é, de forma nenhuma, culpado pelo crime. Mas é impossível de negar que suas ações incentivaram o crime. Da mesma forma, afirmar que a política desastrada dos EUA no Oriente Médio incentive o ânimo fundamentalista anti-americano não é afirmar que os americanos e israelenses, ou mesmo seus governos, sejam culpados do terrorismo. Além disso, é claro que o caso de Israel é o mais complicado, pois ela luta, ao contrário dos EUA, por sua existência, que deve ser assegurada (e não há dúvidas de que, apesar do uso excessivo da violência, Israel tem a superioridade civilizacional, cultural e moral da região). Ainda assim, não dá para deixar de pensar que, se o governo fosse menos expansivo, atrairia para si muito menos ódio (que é partilhado por quase todos no mundo árabe, mesmo não-muçulmanos).
Desde o 11 de setembro os EUA vêm travando uma longa guerra ao terror e intensificando sua presença no mundo muçulmano. No desmantelamento da Al Qaeda essa operação tem sido bem-sucedida. Mas e no que diz respeito ao fanatismo e ao fundamentalismo islâmico que alimentam o tipo de pensamento dos quais a Al Qaeda é um caso particular? Ainda é cedo para dar um veredito, mas o fundamentalismo parece crescer, especialmente entre os jovens (inclusive entre os jovens imigrantes, menos integrados à cultura europeia que seus pais). Talvez estejamos assistindo os últimos suspiros de um tipo de ideologia que não tem como sobreviver em meio ao mar de informação incensurável que é a Internet. Ou talvez o crescimento e articulação de um novo adversário do Ocidente para as próximas gerações. Seja qual for o caso, a presença do exército americano tem sido sempre um motivo para aumentar o ressentimento das populações locais por seu “salvador” indesejado. Foi assim no Afeganistão, no Iraque (e lembrem-se que na entrada em Bagdá os americanos foram efusivamente saudados pelo povo), e continua sendo.
As revoluções no mundo árabe são um momento crítico. Paralelo ao apreço pela democracia (que pode servir tanto para garantir direitos individuais como para violá-los com o aval da maioria) está o fortalecimento do fundamentalismo sunita (que não é equivalente a terrorismo mas está a um passo dele). Se elas seguirão o caminho de abertura e sanidade com que aparentemente começaram, ou se serão cooptadas pela militância islamista, só o tempo dirá. O mal sempre procurará pretextos para odiar o bem; o melhor que o bem pode fazer é não dar motivos. O terrorismo muçulmano que destruiu o WTC e a “conscientização” marxista que se alegrou ao vê-las cair (ramos de uma mesma árvore intelectual) usam meios nefastos para um fim terrível; mas se originam, em parte, de uma revolta justa contra um mal real.
[CONTINUA AMANHÃ]