Recentemente, dois artigos publicados sobre a questão da linguagem e do pensamento me fizeram perder o sono. O primeiro é de uma jovem pesquisadora, Lera Boroditsky, que argumenta que a linguagem molda o pensamento humano e que, portanto, cada um que vive em seu país ou em sua realidade teria um modo diferente de expressão. O segundo é de um velho conhecido nosso, o dr. Theodore Dalrymple, que vai por um caminho diferente – ele critica duramente os abusos do politicamente correto e do relativismo pós-moderno – embora também siga a mesma linha de raciocínio: a de que o pensamento, mesmo em uma fase considerada pré-verbal, é moldado pela linguagem.
A pergunta que se deve fazer é a seguinte: De onde vem a linguagem? Ela surge por geração espontânea ou a partir do funcionamento de nossas mentes? Podemos apreendê-la a partir da observação do datum da realidade? Rosenstock-Huessy, que dedicou toda a sua vida sobre este problema, diferenciava o que seria a linguagem A da linguagem B. A primeira é a cotidiana e tem um caráter funcional, e está presente, por exemplo, na comunicação básica entre dois seres humanos que discutem entre si sobre qual seria o melhor caminho para se chegar a uma cidade ou uma rua. A segunda é a formal, em que aplicamos sempre quando queremos escrever um texto, fazer um relatório, cantar em um coro, encomendar um defunto, celebrar um casamento, e por aí vai. É claro que esta é a linguagem que pertence exclusivamente aos homens, porque, neste momento, não nos interessa a que pertence aos animais.
Um outro critério surge quando percebemos que a linguagem sobre a qual Boroditsky e Dalrymple discutem é a de seres humanos adultos e maduros em seus respectivos termos biológicos e psíquicos. Ainda assim, a pergunta se complica: Como a linguagem se desenvolve, amadurece?
São perguntas simples, mas têm impacto em nossa cultura – em especial, em nossa cultura pós-pós-pós moderna, no interior da qual tentamos viver com alguma dignidade. Aparentemente, os estudiosos do assunto falam em crise da linguagem, em degeneração da linguagem – ou em revolução da linguagem. Neste ponto, fico novamente com Rosenstock-Huessy: estamos no meio de uma guerra da linguagem.
Segundo ele, as quatro doenças da linguagem humana caracterizam-se pelas seguintes disposições: a guerra é não escutar o que o inimigo diz, a crise é não dizer ao amigo o que fazer, a revolução é a gritaria inarticulada, e a degeneração é a repetição hipócrita.
Alguém duvida de que estamos no meio de uma guerra? (É claro que você duvidará se acreditar em Steven Pinker). Vivemos em um mundo onde ninguém confia em ninguém e, portanto, todos são inimigos potenciais – e, neste caso, a primeira coisa que se perde é justamente a capacidade de escutar o próximo, em uma perversão inédita da famosa Lei de Ouro sobre a qual toda sociedade se baseia.
Se estamos no meio de uma doença extrema da linguagem, como podemos curá-la? Bem, se nem eu sei de onde ela surge, como posso saber disso também? O fato é que, para se ter uma guerra – qualquer tipo de guerra – é necessário ter duas coisas: seres humanos com interesses conflitantes e uma realidade concreta que eu possa modificar segundo o meu intento, conforme os instrumentos disponíveis (Novamente, estes instrumentos não precisam ser armas letais e explosivas; podem ter um caráter mais sutil). Ora, estes dois requisitos estão fora do meu pensamento; logo, o que a minha linguagem apresenta é uma forma de representação destes elementos: um lugar objetivamente concreto que tem como palco um aglomerado de seres humanos com valores distintos e contrários. E como sei que seus valores são opostos e até incomensuráveis entre si, resultando no inevitável conflito?
É aqui que entra – e eu vou usar agora o meu artifício de curto-circuito, sempre criticado pelos meus algozes, mas que empresta um certo charme às minhas alucinações – o problema da consciência. Uso o termo aqui não como um poder, e sim como um ato; ou seja, ele, segundo Sto. Tomás de Aquino, implica na relação de conhecimento a alguma coisa que pode ser resolvida em cum alio scientia – isto é, o conhecimento aplicado a um caso específico e individual.
O caso específico e individual é sempre o próprio ser humano, em especial a natureza humana. Poderia ir além e afirmar que trata-se da condição humana – mas isso seria transformar o ato de consciência em algo abstrato, o que não é a minha intenção. A consciência é este locus específico onde julgo as ações que devo ou não devo fazer; e, com ela, posso captar a realidade exterior que está à minha frente em todas as suas variantes. É um locus que ilumina a estrutura do real e, ao mostrar os seus paradoxos, permite a sua expressão dentro de uma linguagem articulada, madura e, sobretudo, compreensível para os meus semelhantes. Contudo, para isso acontecer de fato, tenho de entender que o meu semelhante também tem a capacidade de realizar esse mesmo ato e que também tem esse locus que ilumina o real. Só assim pararei de vê-lo como um desconhecido, como um inimigo – e só assim poderemos escutar um ao outro e parar com a guerra da linguagem (E se você quiser saber mais sobre isso, leia o fundamental Anamnesis, de Eric Voegelin, lançado recentemente no Brasil).
O nó górdio de todas as discussões sobre o pensamento e a linguagem – uma discussão que, diga-se de passagem, parece-se muito com o enigma do ovo e da galinha ou até mesmo do biscoito Tostines – é que a consciência humana foi jogada para debaixo do tapete. Em uma apresentação acadêmica que fiz há alguns anos, um professor da FAAP, encharcado de Adorno e Derrida, perguntou-me se eu acreditava que o ser humano tinha uma consciência, algo de que ele próprio duvidava. A única coisa que respondi foi que, para chegar àquela dúvida, foi necessário um ato de consciência. Não obtive refutação – o que também indicou consciência da parte dele. E se por acaso insisto – chegando ao ponto de ser monomaníaco – em assuntos aparentemente díspares, como o surgimento de uma casta burocrática que quer acabar com a liberdade de religiões, destruindo justamente a base de uma tradição que foi construída entre trancos e barrancos e que ainda nos sustêm, ou então no perigo que há no surgimento de movimentos progressistas que se unem com criminosos e lunáticos para diminuir a liberdade ínfima que tenho dentro do meu corpo, é porque o que está em jogo é a consciência como um dom que não me pode ser extirpado sem dor.
Quando se esquece da consciência, esquece-se também de que a função da linguagem é descobrir novas maneiras de exprimir uma realidade inesgotável em suas possibilidades. E, ao esquecer de ambas, o ser humano é apenas um instrumento – não a imago Dei que o Ocidente sempre soube existir. Thomas More descobriu, ao escrever a sua Utopia, que o verdadeiro perigo das épocas futuras é que talvez as pessoas não tenham uma clara consciência do mal que possam praticar. O perigo ainda está aí. E talvez seja por isso que não consegui dormir ao ler os textos de Lera Boroditsky e Theodore Dalrymple; porque, afinal de contas, a minha consciência não permitiu que eu ficasse em silêncio.
A linguagem de que fala Lera no artigo é algo a que os homens estão imersos desde que nasceram, ou seja, aprenderam a pensar por meio dela, e o modo de se expressar por meio dela se desenvolveu até o ponto onde a comunicação se fazia possível, dentro das “manias” que aquelas pessoas estavam acostumadas a viver.
Que isso pode influenciar o modo de pensar, não acho impossível, e é até evidente, ou não? E também não vejo no que isso poderia ser um problema. Se há a necessidade de aprofundar e melhorar o modo de expressão e apreensão do mundo, o homem consegue aprimorar-se (ou decair na tentativa, dependendo de como se conduzir). E encontrar a verdade ou não das coisas depende mais da maneira como conduz essa evolução do que se é a linguagem que molda a mente ou o contrário…
Ou estou falando bobagem?
A modernidade põe a linguagem como dona de tudo, é uma coisa impressionante.
Esquecem-se de que nós captamos um ALGO e que a linguagem é uma FERRAMENTA.
A mim isso parece tão banal!
Nós captamos um ALGO, uma REALIDADE, e vamos dando nomes aos conceitos que vamos formando. A inefabilidade de TANTAS coisas no mundo – e em nós mesmos, principalmente! – já deveria ser no mínimo um indício.
Os caras pegaram uma abstração nominalista, (que já era absurda por si mesma) inverteram-na e a transformaram em DEUS DOS HOMENS.
É a doença do abstratismo por excelência.
Tivessem estudado um mínimo de gnoseologia tomista, jamais incorreriam em erros tão primários, tão “juvenis” da filosofia.
Vocês já ouviram falar no “Myth of the bleating lamb” (mito da ovelha que bale)?
O grande gestaltista Rudolf Arnheim costumava citar esse “mito” pensado por Johann Gottfried Herder (iluminista alemão) com seu poder ilustrativo do problema língua-mundo.
Segue um trecho:
“Herder describes how primitive man, confronted with a lamb – “white, gentle, woolly” – exercises his capacity for reflection by seeking a characteristic of the animal. Suddenly the lamb bleats, and lo! man has found the distinguishing trait. “This bleating, which has made the liveliest impression on his mind an which freed itself from all other properties of sight and touch, stood forth and entered most deeply into his experience – ‘Ah! You are the bleating one!’ – and it remains with him.” The notion that the visual characteristics of an object are incapable of being distinguished and remembered unless they are associated with sound and thus related to language, I have called the MYTH OF THE BLEATING LAMB.”
Visual Thinking, p. 238, ARNHEIM, Rudolf
And now for something completely different:
http://www.youtube.com/watch?v=hnHv7NGWb0k
É incrível como o diagnóstico do autor do post é extremamente hobbesiano. Agora, se pararmos de ler Hobbes de maneira anacronicamente, podemos fazer um exercício mental que consiste de dois passos:
(1) O soberano, como se sabe, não pode ter o seu poder dividido, pois a soberania só funciona bem individual e coesamente, embora, claro, se possa falar, até em Hobbes, em uma assembleia soberana;
(2) E se o soberano fosse você como membro da sociedade? A “linguagem” — que é o que preocupava o odiado R. J. Ribeiro em suas leituras hobbesianas — está exposta em seu texto meramente do ponto de vista ideológico (como em Marx). Não interessa de fato a verdade sobre a linguagem, mas só interessa a guerra que se trava em torno dela para se lutar por poder.
* de maneira ANACRÔNICA