No mês de julho, há a tradição da festa literária da FLIP em Paraty, uma cidade fluminense de casas antigas, ruas cruéis para qualquer um que ama os seus pés e uma vida cultural tão ativa que dura somente cinco dias – por coincidência, o período exato do evento.
Contudo, seria mais adequado que acontecesse em abril, o mais cruel dos meses, como dizia T. S. Eliot. E por que isso? Esta é uma pergunta que o leitor fará ao desconhecer o uso de tal vocábulo para designar um evento que deveria trazer sorrisos para seus realizadores. A crueldade está em dois fatores: primeiro, vendem gato por lebre, e segundo, criam no público sério e ávido por uma literatura decente o que alguns chamam de dissonância cognitiva.
Segundo a própria FLIP, o seu objetivo é proporcionar discussões de alto nível com convidados nacionais e internacionais. Já estiveram aqui ninguém menos que Paul Auster, Ian McEwan e Salman Rushdie; da parte que nos cabe neste latifúndio, tivemos Chico Buarque (o ídolo dos organizadores; já foi chamado duas vezes), Roberto Schwartz (com seu Machado de Assis marxista avant la lettre) e Davi Arrigucci, Jr. (que falará sobre Manuel Bandeira no evento deste ano); além de homenagens a Clarice Lispector, Vinicius de Moraes e Nelson Rodrigues.
Há, sem dúvida, um belo ideal: o de colocar o Brasil na rota dos eventos cosmopolitas, transformando-o em uma nação que, segundo ouvi um dia de um estrangeiro, não fosse apenas um território de canibais. Contudo, como dizia Herman Melville, é melhor dormir ao lado de um canibal lúcido do que de um cristão bêbado. E, neste caso, o que é uma tentativa de querer se mostrar “sofisticado” torna-se uma armadilha: sermos vistos como os “mestres à margem da civilização”.
Eis o nó górdio: a verdadeira literatura, que vai de Shakespeare a Pynchon, passando por Guimarães Rosa e Osman Lins, preocupa-se com aquilo que a filosofia chama de comunicação substancial. Ela lida com dois temas: a vida e a morte – e a única coisa que o escritor sério sabe sobre eles é que a última sempre ganha a partida. Portanto, a verdadeira literatura é uma obsessiva reflexão sobre a perda, o sofrimento, a dor – e sobre o fracasso. Quando um romance, um conto ou um poema mexe com as entranhas e a mente de um leitor, é porque o tema do fracasso foi abordado e superado com elegância estética, algo que só o grande artista consegue realizar.
Agora imaginem a cena: um “público-alvo” composto por aquilo que se supõe ser a elite do país. Eles estão em Paraty em busca de um sonho: ter em cinco dias o melhor da literatura contemporânea. O sucesso exala da epiderme de cada um deles – ou, pelo menos, da maioria que está à procura desta aura que transforma alguém em algo que não é. Eis a pergunta: estas pessoas estão preocupadas em fracassar?
É claro que não – e aí está a crueldade do evento. Neste ano, por exemplo, a FLIP chamou três nomes que namoram há tempos com o tema do fracasso: Gay Talese (um dos pais do new journalism, mas também o bardo dos perdedores urbanos, segundo seu último livro publicado no Brasil, Vida de Escritor), António Lobo Antunes (o maior nome atual da língua portuguesa, que afirmou que sua obra é a voz dos que são esquecidos por nós mesmos) e Richard Dawkins (o ateu militante que, ao debater com Melanie Philips, colunista do The Spectator, perdeu a razão ao argumentar que ela seria católica, quando é judia).
Temos aí uma nova forma de canibalismo para os nouveaux riches. Não há nada a fazer para que se saia dessa dissonância cognitiva, em que o público espera uma coisa, o escritor dá outra, e ambos saem com a sensação de terem comprado o gato por lebre. Entra-se numa espiral de ouvidos moucos, sem saber quem fala com quem e – o mais importante – o que realmente foi dito.
Apesar da boa vontade, a FLIP é um sintoma da esquizofrenia literária e cultural que atingiu o Brasil. Os escritores ruminam sobre o fracasso e o seu público deseja somente o sucesso; e, neste panorama, o que sobra para os que desejam a verdadeira literatura é o glaucoma do intelecto.
Há uma recusa em aceitar o fato de que a literatura não é uma arte para as massas – e para uma elite fascinada por elas. Em sua palestra, Arrigucci insistiu para que o público percebesse que, se um Manuel Bandeira viveu no Brasil, então este era um país que tem tudo para dar certo. É esta ânsia pelo sucesso que corrói a cultura nacional; pois um artista só evolui através dos seus erros e derrotas – e os triunfos devem ser vistos como marcas passageiras de um trabalho do qual ele não será o último a se ocupar.
Sucesso e literatura não combinam. A última palavra fica com W. H. Auden que, ao ver pessoas parecidas com as que vão à Paraty, tinha certeza de que todas eram boníssimas, o que não o impediu de perguntar o seguinte: Será que elas não têm vontade de torturar o gato e fazer um strip-tease?
Artigo publicado originalmente na Gazeta do Povo, de Curitiba.
Richard Dawkins ou da puerilidade científica
Tibiriçá Ramaglio
Não tenho a menor simpatia por eventos literários como a Flip, a Feira Literária de Parati. Considero que eventos como esses são perfeitamente análogos ao Salão do Automóvel, embora não se possa estabelecer uma sólida analogia entre romances e automóveis, contos e motocicletas, mesmo que todos eles sejam meios de transporte.
Porém, se sou contrário à Flip em teoria, sou ainda mais contrário na prática, na medida em que um evento como esse, num país como o nosso, acaba fatalmente se transformando numa celebração da corriola. – Que corriola?, quer saber o leitor. Ora, aquela mesma que se celebra cotidianamente, ainda que para isso não seja necessário realizar nenhum evento especial.
Alguém tinha dúvida de que, depois de ter lançado seu medíocre romance no começo deste ano, Chico Buarque dominaria a cena da Flip realizada no meio desse mesmo ano? É o mesmo que duvidar que o casamento de Gisele Bundchen tenha se transformado na capa da revista Caras na semana subseqüente a sua celebração.
Enfim, no que me toca, um evento como a Flip está destinado a ser algo que só pode estar aquém do que se projetou que fosse, devido a um vício originário no próprio projeto de um evento desse tipo. O resultado, por conseguinte, será sempre uma celebração de celebridades midiáticas e uma efeméride voltada para os aspectos efêmeros e superficiais da literatura, se tanto.
Mas a Flip deste ano conta com um elemento que transforma a minha indiferença em clara antipatia pelo evento: a presença de Richard Dawkins, o arauto do ateísmo. Ao meu ver, Dawkins é, antes de mais nada, um traidor da teoria de Darwin, que ele proclama como tese, quando, para ter cientificidade, ela não pode deixar de ser hipótese, pois a certeza científica, por definição, não pode ser definitiva.
O grau de certeza com que Dawkins apregoa a inexistência de Deus é puramente midiático. Só nas manchetes dos jornais e nas chamadas da propaganda se têm certezas tão peremptórias. Mas se isso não bastasse para demonstrar a presença de espetacularidade e a falta de cientificidade do pensamento dawkinsiano, eis uma foto do demiurgo publicada da revista Veja desta semana, em que Dawkins se encontra na porta de um ônibus londrino, que ostenta o seguinte cartaz publicitário: “There’s probably no God. Now stop worrying and enjoy your life.” (Deus provavelmente não existe. Portanto, pare de se preocupar e aproveite a vida.)
Deixemos o lado o fato de Dawkins se comprazer em posar como garoto propaganda da causa ateísta e vamos pôr em foco somente a proposta feita pelo texto do cartazete, para não nos estendermos demais. Sinceramente, eu até acho bacaninha a tentativa de trazer uma discussão metafísica desse calibre para os meios de comunicação de massa, mas infelizmente a massa não tem se mostrado o fórum mais adequado para a solução de problemas dessa natureza.
Começo, então, pelo “probably”, lembrando que as probabilidades, tais quais a calculou Pascal ao formular sua aposta, são de 50%, o que já deveria invalidar a proposta como um todo. Supondo que não a invalide, por que eu deveria deixar de me preocupar? Lamento, mas me parece que minha preocupação, nesse caso, faz parte integrante da minha possibilidade de aproveitar realmente a vida como o que sou: um homem.
Se me tirarem o prazer de especular sobre a existência de um Criador, estão me tirando em sua totalidade a minha faculdade de refletir. Afinal, se não devo me preocupar com as minhas origens, também não devo me preocupar com o meu fim e já não importa, então, quem eu sou ou o que faço aqui, como também não contam a minha história pessoal e a história nacional e universal em que ela se insere.
A natureza do “aproveitar” que se encontra nessa proposta é completamente alienante, ou antes é a de um aproveitamento exclusivo do presente, do aqui e do agora, típico do discurso publicitário, que visa apenas a atiçar a impulsividade animal do consumidor: “este é o momento, que gostoso que é!” ou ainda “isto é que é, Coca-cola!”.
Trata-se de um aproveitar instintivo e animalesco, como o que todos os animais aproveitariam, mas que efetivamente não aproveitam, pois se trata de um aproveitar uma vida que, supostamente, seria feita só de prazeres, não fosse ela perturbada pela dor (entre as quais a proposta inclui a existência de Deus). Em resumo, trata-se de uma proposta cujo apelo não passa de pueril. De um apelo a aproveitar a vida na Terra do Nunca. Será que uma proposta assim pode mesmo ser feita por alguém que se pretende um cientista?
http://observatoriodepiratininga.blogspot.com
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Muito acertada !
Basta um pouco de ” perscepçao litararia” para sentircomo a coisa esta inflada.
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