“Se algum livro moral puder ser útil, acho que seriam úteis sobretudo os livros poéticos; digo poético utilizando o vocábulo em sentido amplo, isto é, livros destinados a mover a imaginação, e me refiro não menos à prosa do que aos versos. Contudo, tenho pouco apreço por aquela poesia que, depois de lida e meditada, não deixa no espírito do leitor um sentimento a tal ponto nobre que, por meia hora, o impeça de admitir um pensamento vil e de cometer uma ação indigna.”
Giacomo Leopardi
Em uma palestra sobre o filósofo Giambattista Vico, Giuseppe Ungaretti afirmou que a verdadeira missão do homem na Terra não era a felicidade, mas sim a grandeza. Uma grandeza que seria conquistada a muito custo, sem dúvida. O próprio Ungaretti realizou esta proeza, passando por momentos verdadeiramente trágicos, sempre retrabalhados com um requinte de expressão artística em poemas que, além de comoverem pela emoção secreta que emana de cada verso, provocam no leitor a atitude de reflexão que somente a lírica do pensamento permite.
A prova desta proeza já estava em seu primeiro livro de poemas, “A Alegria”, publicado recentemente no Brasil pela Editora Record, com tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti. Nascido em 1888 em Alexandria, Egito, cidade mítica que encantava o jovem poeta pela paradoxal paisagem que unia o mar e o deserto, Ungaretti era filho de italianos, mas o desterro sempre foi a sua verdadeira pátria. Seja na Itália, na França (onde passou a adolescência e teve contatos com a vanguarda simbolista) ou até mesmo no Brasil (foi professor de Literatura Italiana na Universidade de São Paulo entre 1937 e 1942), seu sentimento de vazio, do tempo que desgasta as coisas deste mundo, de uma permanente inquietude pelo destino do homem, o igualava somente a outro exilado que, apesar de nunca ter saído de sua biblioteca, sabia como poucos o que era esta nostalgia por um lugar além do efêmero: Giacomo Leopardi.
O nome Leopardi não é aleatório quando se trata de um texto sobre Ungaretti. Talvez somente T.S. Eliot e Jorge Luis Borges tiveram a coragem de fazer a mesma coisa que o poeta italiano: criar a sua própria tradição e dialogar com ela constantemente, sem se importar se a moda da época o considerava morta ou ultrapassada. Ungaretti apreendeu e aprendeu com sua linha de predecessores, que é composta de ninguém menos de pessoas como Francesco Petrarca, Vico, Blaise Pascal, Leopardi e Mallarmé. Contudo, é com Petrarca e Leopardi que Ungaretti realmente dá uma pirueta na crítica poética. Com o primeiro, somos introduzidos à noção de memória (na verdade, a velha e boa anamnesis platônica, temperada com um pouco do élan vital de Henri Bergson, de quem Ungaretti foi aluno enquanto estava em Paris) em que o poema esconde um segredo – um segredo que está na perfeita correspondência entre forma e conteúdo – e com isso revela ao leitor uma nova abertura para a inocência de sua alma. Ungaretti afirma que Petrarca é o pioneiro em usar a memória como a única maneira para que tudo não caia no esquecimento, porque, afinal, a morte é um fato inevitável e talvez somente a arte dará alguma esperança de manter as coisas como são na sua perenidade e na sua pureza.
Mas sua visão de Petrarca seria nada se não fosse por sua releitura de Leopardi. Não é por acaso que o primeiro título de “A Alegria” era nada mais, nada menos que “A Alegria dos Náufragos”, em homenagem ao verso do famoso poema “O Infinito” – “E il naufragar m´è dolce in questo mare” (E é doce naufragar-me nestes mares). Se Petrarca usa a memória como estilo e como tema de meditação para preservar não só a poesia, mas também os atributos virtuosos da finada dama Laura, Leopardi se aproveita da memória e da própria poesia para refletir sobre a finitude da condição humana e como a arte pode ser um meio para escapar desse impasse. A terrível descoberta de Leopardi – muito parecida com a de Pascal em relação aos seus estudos matemáticos – está em ver que mesmo a poesia tem o perigo de cair na mesma armadilha. Ungaretti resolve a aporia de Petrarca e Leopardi aceitando de muito bom grado o fato de que a condição humana é um naufrágio sem fim e de que a poesia é a única maneira de recuperar a inocência e o segredo do sagrado.
Obviamente, trata-se de uma tarefa difícil, mas Ungaretti se empenha na sua luta com bravura invejável, mesmo que fique marcado na carne a triste sina de “uomo di pena”. Em “A Alegria”, fruto de suas experiências como soldado pelo exército italiano na Primeira Guerra Mundial, a memória, o exílio e a linguagem poética são os eixos condutores de uma viagem que, se o leitor se manter firme, será surpreendido no momento em que, ao virar a última página, descobrirá ter evoluído como ser humano. Aliás, esta sempre foi a real intenção de Ungaretti ao escrever as poesias de “A Alegria” – a de que elas, como explica em suas clássicas note da edição Mondadori das suas obras completas, “representam seus tormentos formais, mas gostaria que se reconhecesse, finalmente, que a forma o atormenta [o poeta] somente porque dela exige que se conforme às variações de seu estado de ânimo, e que, se algum progresso alcançou como artista, gostaria que ela indicasse, também, que alguma perfeição o acompanhou enquanto homem”. A poesia não é apenas uma mera fruição estética; é, antes de tudo, uma expiação da alma, uma purificação que serve como meio de educar moralmente o homem para enfrentar o naufrágio sem fim.
Esta perseverança é abalada por vários obstáculos, em especial a constante presença indesejada das gentes. Um dos temas que permeiam “A Alegria” é o suicídio de Moammed Sceab, um dos melhores amigos de Ungaretti e tema de um dos poemas mais emocionantes do livro, que articula os três eixos – memória, exílio e poesia – numa síntese admirável:
IN MEMORIAM
(Locvizza, 30 de setembro de 1916)
Chamava-se
Moammed Sceab
Descendente
de emires de nômades
suicida
porque não tinha mais
Pátria
Amou a França
e mudou de nome
Foi Marcel
mas não era francês
e já não sabia
viver
na tenda dos seus
onde se escuta a cantilena
do Alcorão
saboreando um café
E não sabia
desatar
o canto
do seu abandono
Acompanhei-o
junto com a dona da pensão
onde vivíamos
em Paris
do número 5 da rue des Carnes
esquálido beco em declive
Descansa
no cemitério de Yvry
subúrbio que parece
sempre
em dia
de
decomposta feira
E talvez apenas eu
saiba ainda
que viveu
Somente a poesia tem o poder de guardar a memória de um pobre exilado, de não deixá-lo cair no esquecimento – e esta é a responsabilidade moral do próprio poeta, ao saber que talvez seja o único que conhecia a sua existência. Mas a responsabilidade não se estende apenas a um único indivíduo – dilata-se para toda uma época de atrocidades. Ungaretti continuaria a carregar o peso do mundo nas suas costas nos livros seguintes, como “Sentimento del Tempo” (1932-1937) e “Il Dolore” (1942-1945). Em ambas as obras, o poeta relaciona os seus tormentos pessoais (respectivamente, a busca desesperada pela transcendência e a morte prematura de seu filho Antonietto, ocorrida durante a sua passagem pelo Brasil) com os tormentos do mundo (como o sentimento de vazio que cobre Roma e a eclosão da Segunda Guerra Mundial). Claro que a empreitada pode levá-lo ao abismo, mas Ungaretti nunca se agarra às sombras, nunca espera ansiosamente pela noite como a única maneira de suportar a crua realidade. Ele procura, antes de tudo, a luz por trás de cada verso, cada palavra, o segredo que o levará em um contato com o Absoluto, mesmo tendo a plena consciência de que “em parte/ alguma/ me sinto/ em casa”.
É aqui que a poesia se apresenta como uma das formas para se manter íntegro em um mundo que se corrompeu pelas mãos dos homens. Somente quando o ser humano experimenta situações em que a tensão do paradoxo é igual a um pesadelo, em que a liberdade do espírito é a única coisa que está em jogo, como acontece quando nos deparamos com a morte de alguém querido, uma guerra ou o encarceramento, que podemos ir ao fundo da alma e, lá, encontrar a linguagem da poesia na sua pureza mais cristalina e na sua felicidade mais dolorida. É isso o que significa o título “A Alegria”: sim, o naufrágio sem fim continua com suas correntes impetuosas, tudo parece se resumir a ruínas, o esquecimento parece dominar tudo e o desterro é a marca de fogo em nossa alma – mas devemos continuar com toda a alegria que for possível. Não podemos confundi-la com a alegria dos tolos, que procuram uma felicidade terrena, típica dos manuais de new age e de pseudo-religiões. A alegria de Ungaretti é a dos náufragos, a mesma de Leopardi e de Pascal, em que a necessidade de aposta pelo Absoluto leva-nos a uma aventura sem precedentes, porque a poesia é a verdadeira arma contra o inexprimível nada que aparece entre uma flor ofertada e uma flor colhida.
Assim, o verdadeiro ato de libertação do homem é o ato poético, em que a linguagem encontra seu fundo mais puro, mais profundo e mais sagrado. Ungaretti acreditava piamente que cada poema era uma espécie de oração que continha um segredo a ser descoberto através dos tempos. Ele tinha toda a razão e sua obra é uma prova irrefutável disso. Em um mundo onde a alegria dos náufragos é o tênue fio que nos sustém, a vida e a obra de Giuseppe Ungaretti não é apenas uma lição de arte póetica. É também a evidência de que o ser humano não nasceu para ter sua felicidade, mas sim para conquistar a sua grandeza – mesmo que seja a custo de um enorme sacrifício.
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