“Human kind cannot bear too much reality?”

Há alguns dias, escrevi um post, a partir de um texto de Jeffrey Goldberg, em que perguntei se deveríamos ou não rezar por Christopher Hitchens, o polemista inglês que foi diagnosticado com um câncer no esofago.

Muitos sugeriram que eu estava sendo irônico com a tragédia pois Hitchens alega ser ateu.

Nada mais errado. Não estava sendo irônico em hipótese nenhuma. Estava sendo sincero, muito sincero.

Na semana passada, li o texto que Hitchens escreveu para a sua coluna na revista Vanity Fair no qual descreve como foi descobrir o diagnóstico e como foram as primeiras sessões de quimioterapia. É uma peça literária comovente e que não deixa também de manter a sua ironia costumeira, a começar pelo título, uma referência ao romance de Henry Miller, Trópico de Câncer.

Hitchens reage como qualquer ser humano reagiria perante uma situação de beco sem saída: com dignidade e resignação. Talvez o trecho mais pungente do texto seja este:

I had real plans for my next decade and felt I’d worked hard enough to earn it. Will I really not live to see my children married? To watch the World Trade Center rise again? To read—if not indeed write—the obituaries of elderly villains like Henry Kissinger and Joseph Ratzinger? But I understand this sort of non-thinking for what it is: sentimentality and self-pity. Of course my book hit the best-seller list on the day that I received the grimmest of news bulletins, and for that matter the last flight I took as a healthy-feeling person (to a fine, big audience at the Chicago Book Fair) was the one that made me a million-miler on United Airlines, with a lifetime of free upgrades to look forward to. But irony is my business and I just can’t see any ironies here: would it be less poignant to get cancer on the day that my memoirs were remaindered as a box-office turkey, or that I was bounced from a coach-class flight and left on the tarmac? To the dumb question “Why me?” the cosmos barely bothers to return the reply: Why not?

Creio que mesmo mais penitente dos crentes nunca conseguiria fazer tal raciocínio – o de que o universo não se importa contigo – com tamanha coragem.

Paralelamente a isto, um dos rivais de Hitchens, Terry Eagleton, foi o único a dar uma aula de honestidade intelectual na FLIP 2010. Na sua palestra, Eagleton foi descrito pelo apresentador Sirio Bocannera como um “intelectual punk e polêmico” e logo deu o cruzado de direita: “Parecem que descrevem um boxeador e não a minha pessoa”.

Em uma entrevista ao caderno Sabático, do jornal O Estado de S. Paulo, Eagleton respondeu pacientemente às perguntas insossas de Laura Greenhalgh e foi direto ao ponto ao fazer o diagnóstico dos novos ateus – dos quais Hitchens é um dos expoentes – e do “islamo-fascismo” que ronda a Europa e os EUA. Segundo ele, ambos são ameaças retrógadas a uma civilização que, mesmo doente, tem ainda muito a dizer.

Como todos sabem, Terry Eagleton é um marxista convicto e é da opinião deste escriba de que qualquer um que abrace esta linha de pensamento sofre de um escotoma no cérebro.

Então, como podem um ateu e um revolucionário-caviar encararem a realidade de forma tão correta, tão corajosa? Será que podemos falar em uma equivalência das ideologias, em que a direita e a esquerda começam a ter o mesmo discurso porque têm a mesma raiz em querer deformar o real?

Acredito que não é este o caso. O insólito nas reações destes dois sujeitos não se deve ao fato de pertencerem a uma determinada ideologia, mas sim ao fato de que são, afinal de contas, seres humanos racionais, com virtudes e vícios – um detalhe que nenhuma linha de pensamento pode mudar.

Hitchens enfrenta o seu câncer com coragem porque é próprio do ser humano querer manter um mínimo de respeito; Eagleton percebe o perigo que ronda o Ocidente porque ele é evidente e ninguém pode fechar os olhos a isso.

Não se trata de um dilema entre a direita ou a esquerda. Trata-se de fazer o que deve ser feito: encarar a realidade como é. Basta apenas fazer a escolha certa. Isto requer coragem – algo em falta nos nossos dias.

6 comentários em ““Human kind cannot bear too much reality?”

  1. Direita e esquerda são conceitos relativamente recentes, e pensadores livres (de rótulos) são, e sempre foram, raros ao longo do percurso da raça humana neste pedacinho de rocha girando no espaço, que nós singelamente chamamos Terra.
    É muito fácil e confortável ser branco ou negro. O grande desafio e ser cinza. E isto, como você diz, requer coragem, muito coragem.

  2. Será que entendi direito? Quando Hitchens diz que gostaria de viver para ler ou escrever os obituários de Kissinger e Ratzinger, ele não se iguala em mediocridade existencial àqueles que lhe mandam e-mails dizendo que rezarão para que mais um ateu morra?

  3. Uau, que coragem, que astúcia. Estou profundamente comovido. E que texto mais sincero o dele.

    Que homem, que santo, que alma…

  4. Nossa! Fiquei comovidíssimo com o artigo!
    É praticamente um novo sermão da montanha só que mais profundo. A igreja devia substituir Cristo por Hitchens.
    Aleluia.

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *

Você pode usar estas tags e atributos de HTML: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>