Talvez porque hoje é Bloomsday ou talvez porque os nomes de James Joyce e de Sigmund Freud significam a mesma coisa em suas respectivas línguas – alegria ou júbilo – decidi que não falaria nem sobre um, muito menos sobre o outro, uma vez que, para o escritor irlandês, não existiam acidentes para os homens de gênio, pois tudo era motivo de descoberta.
Tudo isso é muito bonito. Mas os gênios têm os seus momentos de bobagem, não é mesmo?
Aliás, pode-se dizer que um gênio só vive alguns e poucos momentos de lucidez. Sua vida inteira é baseada na espera de uma exceção que o salvará da burrice completa que o domina em todos os outros instantes da sua vida. O gênio é só exceção; a sua tão propalada inteligência muitas vezes pode ser considerada loucura e, de certa forma, o sujeito realmente inteligente é aquele que consegue se manter constante tanto no seu pensamento como em suas decisões concretas.
Joyce e Freud eram gênios – mas gênios que beiravam a insanidade. E todo esse “clima de opinião” em que ambos se transformaram (minha homenagem singela a um poeta verdadeiramente inteligente, W.H. Auden) foi o que impulsionou o tecido do mundo moderno a se tornar somente uma caricatura de rupturas com uma tradição pela qual o homem contemporâneo não se importa mais.
Vejam bem: tanto Joyce como Freud precisaram da própria tradição para realizarem suas obras. Mas cada uma delas, em sua respectiva área, destruiu o que essa mesma tradição defendia – a velha e boa questão da reforma versus revolução de que já tratei no meu ensaio sobre Joaquim Nabuco publicado na Dicta&Contradicta 3.
Eis o nó gordio: como transformar sem destruir? Joyce teve de criar uma linguagem incompreensível, ainda que, com ela, construísse uma terceira cultura, a que vivemos justamente agora, pelo menos segundo Philip Rieff em seu My life among deathworks. E Freud, de acordo com o mesmo Rieff, elaborou uma nova figura humana, uma nova antropologia, em que os instintos substituem as virtudes, o acidental torna-se a substância e a partir daí é só ladeira abaixo.
Contudo, ambos também sabiam que o ser humano não era só isso. A prova está no próprio Ulisses de Joyce ou no final do conto The Dead; e Freud nunca poderia escrever aquele brilhante livro de stand-up comedian que é O Mal-Estar da Civilização se não acreditasse que o homem era um animal incapaz de dar risada no meio de tanta desgraça.
Enfim, eis o homem: intermédio entre o tudo e o nada, um caniço pensante, como diria Pascal, este sim um sujeito que soube amarrar a inteligência e o gênio.
Mas o gênio da “mudernidade” não quer entender isso. O que ele quer é, de fato, cortar a capacidade de pensar do caniço e, muitas vezes, o próprio caniço. Os pseudo-seguidores de Joyce e Freud acham que qualquer mudança vale uma revolução de quintal e, dessa forma, a ruptura é a única maneira de se refazer uma cultura. Não, não é. Uma cultura se faz com cultivo (eis aí sua etimologia), com persistência e, sobretudo, continuidade. Qualquer tentativa de civilização se dá apenas com uma “perfeita mediocridade”, em um ambiente de “perfeito tédio”, em que as pessoas comuns podem desenvolver o seu talento e frutificar a sua vocação.
Contudo, nossa alegria está no encontro com o gênio, com a ruptura, com a exceção. Esperamos eternamente por um Führer que nos ajude a sair da nossa vala intelectual e espiritual. Isso é uma escolha bem trágica. Meus caros, não existe nada disso; o que existe é a perseverança em uma vida sofrida de estudos, nada mais, nada menos. Solidão e secura é o que esperam o sujeito que queira se desenvolver como um mensch neste mundo pós-moderno. Ainda assim, depois disso tudo, se ele conseguir vencer, sem dúvida encontrará aquele espasmo de alegria que só a verdadeira inteligência proporciona – e não o desejo de ser apenas um gênio. Neste Bloomsday, I’ll drink to that.
Interessante! Comecei a ler a DC hoje. E comecei pela entrevista de FHC. De certo modo há uma conexão com esse seu artigo. Em um momento da entrevista FHC critica justamente essa questão da ruptura. Só que no âmbito político. Ainda assim, creio eu, uma coisa tem muito a ver com a outra.
Abs!
Cheers.
Num entendi muito bem a parte do stand up comedian do “mal estar da civilização”… Que quer dizer com isso? Não foi um livro sério?
Caro Eduardo>
O Mal- Estar da Civilização é, de fato, um livro muito sério, mas se vc perceber verá que Freud usa de um tom de humor negro para explicar suas argumentações. É o velho adágio: rir para não chorar.
Abraços,
Martim
Bom artigo!
Sugiro, como complemento, a leitura de “In Praise of Boredom”, de Joseph Brodsky (que pode ser encontrado na coletânea do mesmo autor de nome “On Grief and Reason – ESSAYS”). O “perfeito tédio” citado no texto acima me fez lembrar esse artigo do Brodsky…bastante interessante e uma “paulada” em todos os estudantes que ouviam essa palestra de encerramento dada pelo poeta. Vale a pena ler!
Do P. Rieff só conheço o livro Triunfo da Terapêutica, uma obra muito interessante, por sinal. Mas a melhor crítica ao pensamento freudiano está em Ernest Becker, em seu A Negação da Morte um livro brilhante, na minha humilde opinião. Uma crítica embasada, moderada, sem contaminações emocionais. O pensamento freudiano apreenta muitos erros, muitas especualções duvidosas, muitas lacunas, mas não é um delírio como muitos querem nos fazer crer. E Freud está longe de qualquer insanidade. Não há ninguém mais lúcido, mais estóico, do que o velho médico vienense, embora toda lucidez também comporte um equívoco…