“Lavoura Arcaica”, de Raduan Nassar, é um livro complicado para qualquer um que queira esboçar uma análise criteriosa. Em primeiro lugar, porque a qualidade estética é inegável: sua linguagem elaborada com plasticidade transforma seu panteísmo em algo muito palpável ao leitor, e sua ambição artística é alcançada com sucesso, pelo menos até um certo limite. E em segundo, porque apesar de todo o seu estilo bem-sucedido, é uma obra que destroí vários princípios de uma ordem tradicional do espírito, faz isso com plena consciência de seus meios e entre suas páginas sente-se um inegável cheiro de enxofre.
Talvez isso explique a fascinação em torno desse romance e seu autor no mundo intelectual brasileiro, repleto de pessoas como o personagem principal, André, um sujeito nitidamente perturbado, confuso na hora de recitar suas palavras e que tem sua primeira aparição trancado num quarto de pensão praticando freneticamente a arte de Onã. Ele será o narrador desta versão invertida da parábola do filho pródigo, em que o perdão do pai nunca será aceito, a desunião da família é inevitável e o sexo entre irmãos (de natureza homo ou heterossexual) é apenas uma parte do problema.
Lançado em 1975, “Lavoura Arcaica” só tem um romance com quem pode rivalizar na maestria da linguagem: “Avalovara”, de Osman Lins. Mas se “Avalovara” é o ponto máximo na carreira de um escritor que estava determinado a construir uma obra dedicada à eternidade, “Lavoura” foi o início, meio e fim de um escritor que preferiu o desaparecimento da sua persona e do que poderia ser sua escrita. Os livros seguintes que Raduan Nassar lançaria, “Um Copo de Cólera” e “Menina a Caminho”, não passam de apêndices de um romance que já tinha sua semente e seu espinho costurados em cada parágrafo e vírgula, num prestígio crescente que somente a inversão dos tempos e dos valores poderia criar.
Os bonachões universitários que se dizem críticos literários afirmam, com toda a hermenêutica que os deuses marxistas lhes deram, que o tema principal de “Lavoura Arcaica” é o tempo e suas conseqüências. Ora, qualquer obra de arte que se preze tem a obrigação de se falar do tempo. No entanto, ele nunca pode ser o tema principal – até mesmo Proust, em seu “Em Busca do Tempo Perdido”, apesar de ter essa palavra no título de seu ciclo, falava mais sobre nossas percepções através da memória e da arte do que propriamente do passar das horas ou do movimento histórico. A razão é simples: o tempo é importante, mas não é tudo. Qualquer artista que se preocupar exclusivamente com esse tema ficará aprisionado nas garras deste mundo, impossiblitando sua transcendência e a sua vitória sobre o próprio tempo.
A tragédia de André e de sua família é um exemplo claro da morte da ordem. E o que seria esta ordem? Esta é uma pergunta que obececava Aristóteles e nos persegue até hoje. Se levarmos em conta, num sentido geral, que a ordem é o caminho natural do ser humano, em que a busca da unidade e da harmonia pode ser alcançada numa vida disciplinada e de inteira dedicação ao espanto do conhecimento, então a desordem e dissipação podem parecer uma exceção. O que acontece no romance é justamente o contrário, e a mente de André, criada pela linguagem de Raduan Nassar, mostra como uma ordem excessivamente rigorosa é tão perigosa quanto à uma suposta libertação das sensações.
O grande antagonista do livro, segundo a visão de André (o livro é articulado por meio de suas memórias e digressões), não é somente o seu pai Ióhana, mas especialmente a família, que, ironicamente, nunca aparece com seu sobrenome. Os parentes nunca existem por inteiro: somos apresentados à mãe e aos irmãos como se fossem retalhos de uma grande maldição. Pedro, o irmão mais velho, busca André numa pensão para trazê-lo de volta para a fazenda, e temos apenas relances de sua angústia ao saber o verdadeiro motivo da fuga de André. Já a mãe é uma compadecida solitária que, ao que parece, ficou devastada com a fuga do filho, mas este não hesita em insinuar que foi seu carinho que o tornou um “enjeitado”. Do restante dos irmãos, temos apenas as presenças de Lula, o irmão caçula, e de, claro, Ana, que será o pivô de toda a desgraça.
Do pai, sabemos apenas trechos de seus sermões e parábolas, proferidos durante as refeições enquanto a família está reunida. Seu tema favorito: como colher o tempo. Para ele, o tempo deve ser cultivado com calma, paciência, pois somente assim se terá a recompensa que merece. Ióhana é um cristão ortodoxo, libanês, que acredita que o trabalho despista o demônio e mantém os alicerces da família. Mal sabe que a ruína de sua ordem é uma semente de seu sangue – o pobre André que, “perturbado com a claridade excessiva da luz e da luz através das folhas das árvores”, decide encontrar a sua redenção pela impaciência, encontrando a liberdade de sentimentos reprimidos na prisão da carne que culminará em atos de bestialismo e incesto.
André é um faminto, como a párabola central contada pelo pai. Sua fome é insuportável pois provém do espírito, e ele não compreende a dor da solidão e do exílo dentro da própria família. Seu isolamento – pressentido numa festa em que temos a primeira aparição de Ana numa dança de roda que terá sua simetria invertida no final – o perturba e o faz querer ir contra as regras de seu pai sobre a colheita do tempo. Inicia-se uma iniciação às avessas, em que a grande obsessão é agarrar sua irmã Ana a qualquer custo. Ana – “eu” em arábe – é o símbolo da inocência que será transformada ao se unir com a perversão, e Raduan faz questão de aproximá-la ao Espírito Santo na fantástica cena em que André prepara uma armadilha para prender o que deveria ser uma pomba. Contudo, a linguagem do romance não distingue as coisas, colocando tudo num mesmo redemoinho, e assim descobrimos que pomba, Ana e inocência são uma coisa só, e que a tal armadilha é a consumação do ato incestuoso.
Todos sabem que o incesto simplesmente destrói qualquer base da civilização. O sexo entre parentes do mesmo sangue é uma regressão à lógica da ordem da unidade e da razão porque não é um movimento expansivo, próprio da procriação da raça humana, e sim provoca a entropia do círculo familiar, chegando à completa esterilidade. Mas para André, já literalmente “possuído”, seu ato com Ana serve para justamente unir mais ainda a família, além de dar o seu lugar na mesa e de ter a sua redenção. É a típica inversão luciferiana: a procura por alguma luz se dá por uma permissividade que inverte todo o fluxo do tempo. Se o desejo de André era destruir não só a sua família, mas também os princípios de seu pai, ele foi muito bem sucedido.
Porém, como todo o bom discípulo do Diabo, André não se dá por satisfeito. Logo após a consumação do incesto, Ana percebe o seu pecado, e vai à capela rezar por sua alma e pela a de seu irmão. É um momento belissímo da literatura brasileira, mas é também momento em que uma missa negra será celebrada. André suplica a Ana que aceite a união, que lhe dê a chance de ser da família outra vez e, num acesso de cólera (essa palavra é muito importante no mundo de Raduan Nassar), amaldiçoa a todos e decide fugir para a cidade, onde o livro começa, numa pensão em que Pedro vai buscar o irmão torturado.
O retorno à fazenda não será harmonioso. Na verdade, aumentará a danação irreversível (“Maktub”, dizia o avô de André na mesa – Está escrito). A mãe devastada, o pai amargurado, dando um perdão que nem ele próprio consegue entender, Ana em orações contínuas na capela, e Pedro, atormentado pelo segredo macabro entre seus irmãos, impotente para evitar a tragédia – esta é a família que espera André. Mas o Diabo continuará a aprontar as suas: na mesma noite, André perturba o pai com uma discussão em que o perdão dado nunca será compreendido (“Uma planta nunca consiguirá ver a outra”) e sodomiza o caçula Lula ( pois “ele tem os olhos de Ana”) no silêncio do seu quarto. No dia seguinte, uma festa que seria comemoração à “páscoa” de André vira uma dança da morte. Ana aparece completamente perturbada, vestida como uma cigana e com pertences que André havia guardado numa caixa feita para “acabar com a família”, revelando o incesto e o pai, tão controlado, tão disciplinado, comete um gesto homicida num ato de fúria, deixando o final em aberto e com apenas com um capítulo como epílogo que começa com a seguinte frase: “Em memória do meu pai”.
Uma leitura cuidadosa de “Lavoura Arcaica” mostrará que Raduan Nassar joga o tempo todo com uma ironia obscura e com brechas na narração que nunca levam o leitor ao conhecimento da realidade como uma unidade ou como um todo. Apesar de todo o seu cuidado com a casca e a gema das palavras, elas servem mais para desunir do que propriamente atar os pedaços quebrados deste mundo. Não há nada de “elevado” nessa literatura, apesar de todo o seu sucesso estilístico e, mesmo com seus requintes de linguagem, “Lavoura” é uma obra que traz o leitor para as arestas do Inferno e que, se depender dela, o deixa lá mesmo. Sua catarse é uma catarse negativa, no sentido em que não há libertação, somente aprisionamento. É a morte da ordem, o fim da inocência e a vitória do Diabo em seu exemplo mais cristalino.
Claro que existirão seus defensores. Um dos argumentos será a da “ambigüidade”. No entanto, em uma obra de arte, pode-se ter “ambigüidade” nos meios, nunca no início, muito menos no fim. Um homem que se propõe a mexer com as palavras deve ter bem claro qual é o seu lado. Afinal, “a maior destruição é feita por aqueles que não conseguem escolher entre o Bem e o Mal”. A arte é essencialmente uma escolha moral. Não há meio-termo, e talvez seja por isso que Richard Wagner, um canalha consumado, ainda desperta o interesse de seus seguidores, apesar de todas as polêmicas sobre sua personalidade: sua música é uma das mais perfeitas já criadas, mas pelo menos sabemos que o sujeito era um perfeito patife por suas próprias palavras.
É justamente isso o que falta na atual vida intelectual brasileira, e “Lavoura Arcaica” é apenas um dos casos colhidos a esmo. Num país em que o bom-tom dos covardes é confundido com boa-educação, e que uma polêmica é sinal de descompostura, a pequena obra de Raduan Nassar vira unanimidade porque a ordem virou um clichê de bandeira nacional. Simplesmente esqueceram-se do problema mais importante do ser humano: a integridade do espírito. Discussões sobre estatísticas econômicas e fatores históricos são sobras de um prato em que o alimento já apodreceu há tempos. Mas os idiotas são insistentes e já está na hora de se perguntar: Será que eles sabem o que estão fazendo? Nessa hora, é melhor deixar cair a Sombra porque o tempo dará a sua resposta no momento que lhe interessar e assim saberemos que os frutos desta lavoura macabra fazem parte da nossa própria condição.
É mesmo muito curioso. Eu li “Lavoura Arcaica” durante a adolescência incontáveis vezes (incontáveis porque depois de certo momento já virara como um livro de poesia, de eu relia os capítulos aleatoriamente), e me acostumei a tê-lo como um livro muito importante, um grande livro. Até que pouco tempo atrás indiquei-o a uma amiga, ainda sob influência das leituras adolescentes, e me surpreendi com a rejeição por parte da amiga. “Será possível? Lavoura Arcaica, um mau livro?” E era verdade. Só não foi um choque maior do que fazer a mesma descoberta em relação a “Tabacaria”, esse hino universal da preguiça de ser.
Lançar um olhar maduro sobre as impressões da infância – eis um golpe necessário. O problema é quando os anos passam e os olhares continuam os mesmos. As espinhas secam do rosto do sujeito e ele continua lá a exaltar o caos que jorra de seu coração de Peter Pan.
“Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto, róseo, azul ou violáceo, o quarto é inviolável.” Só me consola que os meus verdes anos jamais vieram a compreender que era uma cena de masturbação.
Eu concordo inteiramente, mas sua crítica deveria ser estender a praticamente meio século 20, que leu mal (e, com o perdão do tracadilho, mal leu) Kierkegaard. forte abraço Marcelo
PS: apreciei bastante o comment acima, de LM – já descobri seu blog e o coloquei em meus favoritos, abs Marcelo
Raduan Nassar e sua mescla Dostoievski e Baudelaire, em miniatura.
Belo texto, só não me parece que o autor pretendesse “destruir os vários princípios de uma ordem do espírito” com sua obra. O Jararaca, com toda a sua metafísica do oeste paulista (metafísica que em nada fica devendo à metafísica do norte de Minas) , me parece um homem extremamente sensato e amante da ordem. Pelo menos é o que transparece em sua célebre entrevista à Veja de 1.997. Creio que, na memorável cena do esporro do Berdinazzi no Selton Melo endemoniado, no filme homônimo, Raduan estaria do lado do velho. “Você está perturbado, meu filho… Seja claro como deve ser um homem!” A gente até queria ter um pai assim para nos colocar de volta nos trilhos quando cai na voragem das idéias confusas.
Muito boa lembrança, a do Vinicius.
Desde os antigos, o tema “ordem cósmica/ política/ pessoal” é indissociável do tema “vontade divina/ política/ pessoal”.
Em chave pré-moderna, os homens são livres exatamente porque, ao contrário de uma pedra ou mesmo de um cavalo, podem escolher (consciente ou inconscientemente) servir ou não à ordem/Palavra, o que implica desdobramentos além do plano pessoal. Para ficar em alguns highlights, pensemos na tempestade enfrentada por Jonas; ou na “hamartia” trágica examinada por Aristóteles; ou nos demônios que atentam contra a criação no esquema iconográfico da Sistina (ok, anjos, mas enfim); ou em Macbeth e Lear.
Em chave moderna ou romântica ou pós-moderna, são livres porque lembram da razão e nela confiam (sei lá, Flauta Mágica), ou porque seriam capazes de associar-se pelo entendimento e pela ação a uma ordem na qual luz e trevas estariam menos separadas do que supomos (o Fausto do Goethe, recuperando uma tradição antiga crescentemente em alta na Europa a partir da Renascença ); ou porque na transgressão e na decomposição descobrem encantos sensualmente caóticos (Baudelaire?), ou porque percebem que essa conversa toda sobre ordem pode servir apenas para mascarar precariamente outras coisas (Conrad?), etc.
Nessa tradição considerada assim muito, muito amplamente, e com todos os caveats cabíveis, talvez se posa dizer que o tratamento do tema “ordem” no Lavoura Arcaica é moralmente mais definido, ie, menos nietzschiano, menos “estetizado” que no Dr. Fausto do Thomas Mann (para pegar um exemplo clássico).
Por que mais definido? Porque a polarização entre luz e trevas está em plano mais imediato no Lavoura Arcaica, disposto para o leitor a partir desse “horror-espanto sagrado” (“deinon”, como chamou Sófocles o homem) que é nosso pervertido André-homem-andros.
Confesso que desconheço completamente a fortuna crítica do livro, mas é patente que a possessão da personagem nos confronta menos com o enigma do Fausto, calcado na ambiguidade, e mais com o mistério sacrílego e assustador de um poder discricionário colhido no desvario, na ilusão parricida.
Lembro de uma passagem interessante, em que André sai da fazenda, mochila às costas, e quanto mais se afasta mais se repete que está a voltar para casa. A recusa de separar-se do passado, travestida de transgressão – a fuga, o incesto duplamente agravado – arrebenta com tudo o que é pessoal, relacional, familiar, amistoso, passível de re-ligação.
Daí também a vontade de arrebentar uma das vertentes do “tempo”: não o passado, mas o antigo, o arcaico, o tradicional, sem o qual definha não o presente, mas o que é verdadeiramente atual.
Não são temas banais, nem seu tratamento em português novelesco é a pior coisa feita em Pindorama, ou a mais perversa. Alguém querendo ler o texto como o Alex da Laranja Mecânica lia o Antigo Testamento ou escutava Beethoven, a culpa não deve ser imputada ao Jararaca.
Tenho lido quase todos os artigos de Martim. O melhor que ele já escreveu foi aquele sobre Joaquim Nabuco, talvez no segundo volume da Dicta. Este não o supera, mas chega perto. Ótimo artigo! É claro, essa de ”ordem” e ”integridade do espírito” às vezes enche o saco para aqueles que já se cansaram de Olavo e Voegelin, mas ainda há abertura pra interpretações literárias com base nesses conceitos. Foi o que foi feito, com eficiência e sensatez.
Um abraço ao Martim!
Santini