E o mundo das letras está em polvorosa.
Os motivos são vários: agora, temos a FLIP, que, por mais que me critiquem, continuo a achar que é uma amostra de esquizofrenia literária (e pelo menos tenho o Marcelo Mirisola ao meu lado neste tópico…), e, desde ontem, finalmente o Prêmio São Paulo de Literatura resolveu premiar um autor que trilhava um caminho solitário e pouco reconhecido – Raimundo Carrero.
Mas na semana passada, seja no Brasil ou no mundo, quem deu o que falar foi o agente Andrew Wylie, apelidado carinhosamente entre seus pares de “O Chacal”.
Wylie tem, em sua carteira de clientes, escritores como Philip Roth, Martin Amis e o espólio de Vladimir Nabokov – enfim, la créme de la créme da língua inglesa. E resolveu fazer o seguinte: criou um selo editorial chamado Odyssey que disponiblizará, sem o intermédio de qualquer editora, à Amazon (via Kindle) os textos de seus clientes, sejam os inéditos ou os já publicados.
Isso foi o que Wylie fez lá fora. Agora, vamos ao que ele fez aqui dentro.
Wylie é um dos intermediários do acordo Penguin-Companhia das Letras que, se der tudo certo, será o responsável por uma revolução (ou um impasse, dependendo de quem olha o evento) peculiar no mercado editorial brasileiro. Foi ele quem apresentou Luiz Schwarcz, da editora brasileira, a John Makinson, da editora inglesa, de acordo com as informações divulgadas pela Folha de São Paulo no dia 24 de julho deste ano (a matéria é só para assinantes).
É uma joint venture que deve abrir os olhos dos publishers. Mais uma vez, a Companhia das Letras muda o eixo do mercado. Podemos reclamar da escolha de seu catálogo – em especial, na área de Humanidades, excessivamente uspiana -, mas não se pode negar que a editora de Luiz Schwarcz estabeleceu um padrão muito alto para a qualidade estética e artística de um livro no Brasil.
A união com a Penguin repete a qualidade- e também segue os padrões internacionais das clássicas publicações inglesas.
E talvez esta seja a principal pedra no sapato.
Se formos iniciar uma série de perguntas a lá Don Draper, a primeira que faço ao leitor é a seguinte: Por que compramos livros da Penguin?
Porque são baratos. Porque são fáceis de transportar. Porque são bem-cuidados. Porque se um deles estragar não terei pena e comprarei um outro exemplar. Enfim, uma infinidade de causas.
Que se resumem a uma só: porque são leves.
Ora, os livros da Penguin-Companhia, por algum motivo que só a gráfica Suzano conhece, são pesados. Não posso levá-los na mochila todos de uma vez. E se eu dobrar um pouco mais a lombada – e devo lembrá-los que o mundo se dividide entre aqueles que quebram os livros na lombada e aqueles que não quebram a lombada, como diria Nelson Ascher -, chorarei sem misericórdia. Além disso, me dá a sensação de ser um fetiche, algo que a Penguin sempre evitou ser (é uma das editoras mais práticas do mundo), mas que é a marca registrada da Companhia das Letras (depois imitada pela Cosac Naify e outras).
Contudo, temos de analisar os livros pelo o que são – o seu conteúdo.
A primeira leva da coleção é seguinte: O princípe, de Maquiavel, com uma nova tradução (a cargo de Maurício Dias Santana, que fez um belo trabalho com o romance Às cegas, de Claudio Magris) e um prefácio de Fernando Henrique Cardoso; Joaquim Nabuco Essencial, uma coletânea de textos do grande estadista brasileiro organizada por Evaldo Cabral de Mello; Pelos olhos de Maisie, a obra-prima de Henry James que, anos depois, Ian McEwan resolveu reescrever sob o nome de Reparação, em uma tradução revista de Paulo Henriques Britto; e O Brasil Holandês, que é anunciada como uma coletânea de textos históricos deste período sobre o qual poucos sabem, mas que na verdade trata-se de um livro primoroso escrito por Evaldo Cabral de Mello.
A nova tradução de O princípe é um exemplo do grande erro da Companhia das Letras: o excessivo apreço pelas coisas da USP. O detalhe mais evidente é o fato de que cada capítulo é anunciado em latim, com sua respectiva tradução em uma nota de rodapé. Um beletrismo que não chega a lugar nenhum. Sobre o prefácio de Fernando Henrique, só se pode dizer uma coisa: é o mais do mesmo, com sua ladainha pseudo-weberiana, e aquela retórica social-democrática que, depois do seu sequestro pelo PT, só engana intelectual brasileiro.
Já a coletânea sobre Joaquim Nabuco só peca por algo que o próprio organizador admite logo na introdução: não dá importância à conversão religiosa que Nabuco teve na meia-idade e que foi responsável por um dos seus livros mais bonitos – Foi Volue (Minha Fé). Ou seja, tiraram a única coisa essencial em um livro que tem no título a intenção de ser o essencial de seu autor. De resto, estão lá as melhores passagens de O abolicionismo, Balmaceda, Um estadista no império e de seus discursos parlamentares.
Os melhores livros da coleção são Pelos olhos de Maisie e O Brasil Colonial. O primeiro volta com uma reedição bem cuidada e com uma introdução de Christopher Ricks, além de acrescentar o ensaio de Henry James sobre a confecção do romance, publicado como um dos prefácios da famosa edição de New York de suas obras. Já o segundo é um primor de reconstituição histórica e uma delícia de leitura, com Evaldo Cabral de Mello sendo o nosso Virgílio pela lendária época de Maurício de Nassau.
Bem, o leitor se perguntará, o que há de tão importante nisso tudo? Não seria mais um caso de much ado about nothing?
Um ledo engano, caro amigo: a “revolução” que a joint venture Penguin-Companhia provoca no mercado editorial atinge aquilo que é mais importante em qualquer relação custo-benefício – o preço.
Um dos termos do acordo entre as duas editoras é que o preço de qualquer livro que seja publicado dentro da coleção não pode ultrapassar o valor de R$ 35,00.
No início, com seis ou sete livros, isso pode parecer uma exceção. Quando chegarem a cem livros, a diferença começará a ser notada.
No Brasil, o livro custa caro porque custa caro produzi-lo. E o aumento deste custo se deve ao fato de que não temos um mercado editorial propriamente dito. O centro estratégico se localiza nas chamadas grandes editoras: Record, Companhia e Ediouro. As outras, como Cosac, Nova Fronteira, Rocco, Objetiva, são consideradas de médio porte. E existem as independentes, que lutam para sobreviver no bom e velho esquema de guerrilha (o nosso querido IFE é um exemplo disso).
Em nenhum destes setores existe a cultura do livro de fácil divulgação, conhecido na língua inglesa como paperback. Os chamados livros de bolso começaram há pouco tempo, mas seus preços não são convidativos. Portanto, o que o acordo Penguin-Companhia faz é ver qual é a possibilidade de libertar o mercado editorial de uma série de preceitos errados – como, por exemplo, o de que o brasileiro não lê e o de que intelectual paulistano sabe tudo – e, junto com o preço, aumentar o seu catálogo de obras e autores.
E aqui está o xis da questão – e o dilema apresentado por esta revolução: o catálogo da Penguin tem, entre outros, os poemas completos de John Milton, John Donne, John Dryden, George Herbert, Geoffrey Hill, John Keats e Robert Browning – isso só para ficar em autores que tiveram apenas fragmentos de suas obras publicadas no Brasil.
Existe alguém no Brasil capaz de traduzir e editar com rigor todos esses autores? Refazendo a pergunta: Será que as editoras buscam os profissionais certos para tal empreitada?
Receio que não. Anos e anos de doutrinação gramsciana, corrupção concretina e epigonismo filosófico impediram de criar uma elite literária que saiba escolher os próprios livros que querem ler. E quando isso está incrustrado de tal forma na cultura de um país, não há preço que resolva o problema. Porque, afinal de contas, para a literatura de uma nação ser considerada livre, devemos saber, antes de tudo, que a liberdade é uma coisa a ser conquistada e não simplesmente comprada.
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Não lembro se eram baratos ou não, mas antigamente a ediouro editava muitos livros de bolso. Também não sei a razão do fim dessas edições.
Há ainda outra questão. Os livros se restrigirão somente aos “clássicos”, pois esta é a proposta da Penguin Classics. Nada contra, muito pelo contrário, afinal estes são clássicos por algum motivo e, discordando ou não é necessário lê-los para compreender o porque de durarem tanto. Agora, e os livros novos? Ainda continuarão sob o estigma do preço altíssimo? Creio que sim e isso é muito triste ainda… infelizmente…
Pô, Martim, eu acho que há gente muito capacitada na praça, sem dúvida nenhuma; O Paulo Henriques Britto, que v. citou, p. ex.; o Pedro Sette; e por aí vai. Vamos olhar pro lado bom das coisas! V. tá na USP, não tá? Então: o padrão uspiano não é tão ruim assim… Abração. E.
Martim, cantei esta toada para o Dionísio já nos meus primeiros dias de Cultura pois eu conhecia o trabalho do designer Jan Tschichold, responsável pelo padrão de utilidade e de qualidade que a Penguin tem hoje, e continuado ainda que com um toque do styling americano pelo David Pearson, mantendo porém a mesma dignidade e praticidade de sempre (a série Great Loves é uma obra prima). São poucas e preciosas decisões de produção gráfica e de tipografia mas que fazem toda a diferença. O preço depende do volume, o volume depende de quanto o editor quer arriscar. O problema é que os editores não sabem o que é bom design, o que é muito diferente de fetiches tipográficos de luxo, e no mais, os editores são medrosos. Design é utilidade, é ser bom para com leitor, a começar pelo preço. Mas dificilmente o editor no Brasil ouve as recomendações de um bom designer. E parte do público, a classe mérdia que não é toda a classe média mas é que tem mais influência, compra livro para a estante e não para a leitura. O pior de tudo é que estão usando a Futura na capa. O Tschichold deve estar se revirando no túmulo.
Excelente comentário o do José Luís, acima!
*
Mas aguardem por mais na área editorial.
A É Realizações vai publicar uma grande leva (em tamanho e qualidade) de livros:
– A.D. Sertillanges, “A Vida Intelectual”
– Bernard Lonergan, “Insight…”
– Georges Bernanos, “Sob o Sol de Satã”
– Thomas Sowell, “Intellectuals and Society” e “A Conflict of Visions”
– Eric Voegelin, “História das Idéias Políticas” (todos!)
– Xavier Zubiri, “Natureza, História, Deus” e “Trilogia sobre a Inteligência Senciente”
– Gertrude Himmelfarb, “The Roads to Modernity: The British, French, and American Enlightenments”
– Gilberto Freyre, sete novos livros (ver Facebook da É)
Mentira? Não. Confiram no Twitter deles, aqui http://twitter.com/erealizacoes
Bom, é esperar que no longo termo (e espero que não tão longo assim) a iniciativa (que tem a chancela da Penguin, não esqueçamos disso) renda bons frutos, afinal, como vc mesmo disse mvc, depois de uns 100 títulos publicados é que poderemos medir a penetração destes clássicos no publico leitor deste país varonil.
E naturalmente, creio, haverá uma busca por novos tradutores, intérpretes, etc…para dar conta da publicação de tantos títulos, afinal, não é algo que vai parar com dez ou vinte livros.
OFF-TOPIC
Como foi debatido em um post do próprio Martim há algumas semanas, mando o link do último texto do Hitchens na VF sobre a experiência dele com o diagnóstico do câncer:
http://www.vanityfair.com/culture/features/2010/09/hitchens-201009
Digam o que quiserem, podem até detestar o homem, mas que ele escreve bem, ah!, isso é inegável.
Martim, os seus problemas com lombadas dos paperbacks acabaram, basta que os editores adotem a Otabinding:
http://www.hyphenpress.co.uk/journal/2007/05/02/bookbinding_survey
A Global bem que tentou mas falhou ao insistir nos livrões de luxo.
Abraço!
Estou esperando uma avaliação de vocês sobre a FLIP e a presença de FHC para “homenagear” Gilberto Freire:
http://colunas.g1.com.br/maquinadeescrever/2010/08/04/860/comment-page-0/#comment-5127
http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/fhc-diz-que-nao-pode-comentar-opinioes-de-dilma-porque-ex-ministra-nao-fala/
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