Há certos livros que achamos que devemos ler um dia, mas sempre o deixamos para depois. Até que, em um ímpeto, finalmente colocamos as mãos nele e o enfrentamos. O resultado pode ser a decepção – “pois é, não valia a pena mesmo” – ou a satisfação, mesclada com a pena por termos demorado tanto para saborear aquele acepipe.
Não me lembro de quando li a primeira vez que O zero e o infinito, de Arthur Koestler, era um livro brilhante; porém, recordo do adjetivo. Voltei a encontrar grandes elogios a ele em Sacred Causes, de Michael Burleigh, que o coloca como exemplo, ao lado de obras de Joseph Conrad, de mergulhos na mentalidade dos revolucionários.
Por outro lado, temia que fosse um livro datado, que teria perdido sua força de denúncia. Quando lançado, em 1941, muita gente acreditava na boa-fé do regime soviético. Pior, defendiam-no com ardor, como uma experiência maravilhosa da história humana. Koestler, na contramão, desnudava a mentira e o crime, que eram elementos essenciais no marxismo-leninismo e culminaram na obra de terror de Stálin. Sem dúvida, um choque para os idealistas desinformados, e um percalço para os que controlavam e difundiam a propaganda marxista pelo mundo. No entanto, hoje, não seria um assunto passado e enterrado? Para que gastar tempo com esse pequeno livro?
As minhas dúvidas se dissiparam assim que comecei a passar pelas suas páginas. É uma novela muito bem escrita, densa e precisa. A vida de Rubachov, um oficial no topo da hierarquia do partido comunista que é preso logo no primeiro parágrafo, vai sendo desvelada com arte e competência. Ao mesmo tempo, ela é situada naquele ambiente ideológica e politicamente doentio, que o próprio preso ajudou a construir. A partir daí, é difícil deixar a leitura, que em muitos momentos é capaz de causar um arrepio, quando pensamos que milhares situações similares à daquele homem ocorreram.
Portanto, o primeira razão para ler O zero e o infinito é que se trata de um livro envolvente, que funciona perfeitamente como entretenimento. Claro que não se trata de uma comédia; é uma tragédia; mas sorvida com prazer e rapidez, uma página chamando a seguinte.
Outro motivo, mais importante, é que nos ajuda a não esquecer do que foi a ditadura comunista. Ao contrário do nazismo, que tem seus detratores a nos lembrar constantemente da ignomínia racista de Hitler, o comunismo frequentemente passa como um regime autoritário, que infelizmente cometeu algumas falhas, justificadas pela intenção nobre que movia seus agentes. Tanto é assim que, hoje, uma pessoa pode andar tranquilamente com uma camisa com a foice e o martelo, com as letras da URSS, sem que ninguém veja nada de estranho nisso. Não pegaria mal, a ponto de deslegitimar para um debate sério, que alguém se dissesse marxista convicto; com o nazista, pelo contrário, ninguém aceita sequer discutir.
Nos dias atuais, praticamente ninguém se diz meio nazista, ou que aqueles germânicos até que tinham bons motivos para fazer parte do que fizeram. Uma afirmação dessas seria, com toda razão, abominável. Mas aceitamos tranquilamente que sustentem propostas de um marxismo edulcorado, que repudiam o estalinismo – “que sujeito horrível e perverso era aquele bigodudo georgiano, que traiu os ideais do nobre Lênin!” –, enquanto abraçam as ideias que sustentaram uma das piores ditaduras da história da humanidade. Para mim, é uma contradição evidente. Estamos falando de dois sistemas de pensamento e práxis política que merecem ir ao esgoto da história.
Koestler mostra com arte aonde levam os princípios do marxismo, quando aplicados de acordo com as suas consequências lógicas. É bobagem dizer que a corja de Stálin é um acidente de percurso. É uma possibilidade sempre presente, como prova a trajetória dos comunistas em outros países, que chegaram a ditadores tão nefastos quanto o soviético. Basta pensar na Romênia, na Albânia e na República Tcheca pós Primavera de Praga. Quando o ser humano se torna algo desprezível, uma “ficção gramatical” (nome dado por Rubáchov ao seu eu interior), não poderá sair daí nada de bom.
As relações de paternidade, amizade, companheirismo e confiança são minadas por um regime no qual os fins justificam os meios. Um momento pungente do livro é a descrição de um ancião, que mora em um pequeno quarto com a filha, fiel seguidora do Partido. O pai admira Rubachov, sob quem servira na Guerra Civil, e teme que a filha o denuncie por isso, a fim de que ela possa ter apenas para si o cômodo minúsculo que os dois dividem.
No final, Rubachov percebe que o preceito de o fim justificar os meios era o erro fundamental de todo o sistema, e que, como membro do Partido, ele mesmo agira sempre em conformidade com tal máxima. Por ela, mandara à morte um punhado de pessoas que lhe eram próximas, mentiu e conspirou. Ao mesmo tempo, julgava que era o paladino de uma nova aurora do mundo, porque seus atos eram motivados pela História, cuja fórmula e evolução foram compreendidas pelo Partido, o juiz e condutor da evolução da humanidade.
Chegamos aqui ao terceiro motivo para desfrutar de O zero e o infinito. Ele vai muito além do comunismo e do marxismo. É uma descrição primorosa de como podemos falsificar nosso sentido moral, enganar-nos de forma a considerar nossos atos mais abjetos como exemplos de decência ou mesmo heroísmo. Esse é um perigo que ronda a todos nós, e é fácil entrevê-lo entre os personagens de Koestler.
Em nome do direito a ser feliz, de não ser explorado, de dar uma melhor condição para a família, de conseguir prestígio profissional, e outras razões mais ou menos plausíveis, uma pessoa abandona a esposa, desfalca a empresa, mente para um amigo, vende o próprio corpo, destroi uma reputação. Lógico que isso acontece na vida de todos nós, e está ainda distante do que se dava com Rubachov e seus companheiros, que se encontravam imersos em uma mentira e imoralidade que se haviam tornado sistema. Não chegamos tão longe assim. Contudo, cada vez que chamamos ao mal de bem, à falsidade de verdade, que colocamos nossos interesses e paixões na frente do que é decente e honesto, começamos a trilhar o caminho que, em uma das suas vertentes, deu no pântano que dominou a Rússia e os países comunistas por décadas, em um tempo incomodamente próximo de nós.
Este livro esta no meu radar de livros futuros de literatura sovietica. Li em ingles o gigantesco Arquipelago Gulag (cujo tamanho é comparavel a Guerra e Paz), que deveria ser leitura obrigatoria para despoluicao intelectual de muito professor universitario, mas infelizmente nao há a venda uma traducao em portugues.
Posso dizer que Arquipelago Gulag foi um dos mais torturantes livros jamais lidos, porém fascinante e brilhante como Solzenitsyn escreve, na sua magoa e ironia de ex-prisioneiro das “camaras de gas sem gas” sovieticas (palavras dele) onde os prisioneiros politicos eram postos para trabalhar até a morte.
E eu que considerava o horror entrar nos expurgos de execução stanilista, comecei a achar felizes os que simplesmente receberam uma bala na cabeça pelos carrascos de Iezov e Beria… em nome do “Corifeu”. Mas Solzenitsyn mostra a grande hiprocrisia até da abertura de Kruschev, os expurgos de 1937 stalinistas foram condenados porque mataram membros do partido, nenhuma reabilitacao ou condolencias oficiais foram feitas para as pessaos comuns, engenheiros, mencheviques, ucranianos e camponeses que morreram desde 1917, especialmente os kulaks, sistema este que já está nos atos e oficios leninistas.
Aprendemos que Stalin nada mais foi que um comunista ortodoxo que acreditava e tinha uma visao clarissima da doutrina comunista.
A biografia escrita por Simon Sebag Montefiore sobre Stalin (“Stalin – A corte do czar vermelho”) mostra a realidade sendo muito mais terrível e desumana do que a ficção de Koestler (que foi um dos livros que marcou minha juventude).
Uma das “n” informações de Montefiore que provoca arrepios: durante o período do Terror Stalinista as regiões do Estado Soviético tinham cotas de execuções ou a simples não performance da meta de produção numa indústria era motivo para a pena capital.
No magnífico documentário “The Soviet Story” (http://www.sovietstory.com/about-the-film/) há uma cena com o Gorbachev no parlamento soviético, comentando sobre a época de Stalin: “-Kruschev pediu para aumentarem as cotas [de execuções]! Brezhnev pediu para aumentarem as cotas!”.
Execuções em massa haviam se tornado um vício dos dirigentes.
Até ver esta cena, eu ainda considerava a hipótese de que essas cotas fossem uma lenda…