Minha vez de fazer as cinco recomendações natalinas.
A Confederacy of Dunces – John Kennedy Toole
Ignatius Reilly é preguiçoso, mal-humorado, fracassado, hipocondríaco, arrogante, extremamente pretensioso e carece do mais básico senso de ridículo. Sua visão de mundo reacionária e teológica, que culmina na devoção pela Consolação da Filosofia de Boécio e uso dela como guia existencial, tornam-no uma figura improvável na lasciva New Orleans dos anos 60. Para completar, tem trinta anos de idade, quatro dos quais gastos num mestrado ainda inacabado, nunca trabalhou e mora com a mãe. Ah sim, e é obeso mórbido com flatulência crônica. Como pode ser ele cativante e, junto com Myrna Minkoff, sua antítese espelhada e antiga rival ideológica da faculdade, o personagem mais são de toda a trama? Acompanhar as peripécias desse “Oliver Hardy louco, Dom Quixote gordo, Tomás de Aquino perverso” (como o descreveu Walker Percy) quando circunstâncias externas o obrigam a procurar um emprego – mais uma iniqüidade do mundo moderno – é uma experiência ao mesmo tempo hilária e enriquecedora a nosso sentido de humanidade.
The Bourgeois Virtues – Deirdre McCloskey
Sim, o mercado precisa de uma base moral para funcionar. Nada mais lugar-comum. O que muitas vezes não se diz é que ele é também um ambiente que permite e incentiva a formação das virtudes. O livro de Deirdre McCloskey, primeiro de uma trilogia, é desigual – há longas considerações de virtudes particulares que parecem fora de lugar (especialmente quando o assunto é “gênero”). Mas a substância principal, a reunião há muito adiada de economia de mercado e ética das virtudes, é um bálsamo para qualquer leitor insatisfeito com as escolhas-padrão entre liberais amorais e virtuosos filo-socialistas. Ela é uma ótima economista, escreve bem e revela amplidão de leituras; é bom que não-filósofos invadam um pouco o terreno; o desvio ocasional é mais do que compensado pelo frescor de novas perspectivas no debate.
The Book in the Renaissance – Andrew Pettegree
A boa História é feita menos de leituras grandiosas do que de fidelidade aos fatos. Esse é o grande mérito de Andrew Pettegree: debruçar-se sobre os dados dos primeiros 150 anos da imprensa (de meados do XV até o fim do XVI) e nos pintar um retrato bastante convincente e extenso de como foi esse conturbado mercado em seu início. O que as pessoas liam, o que sustentava as empresas, quais os grandes empreendedores, quais as principais cidades do mundo editorial, os tamanhos das tiragens, como evoluiu a tecnologia, as técnicas de diagramação e a tipografia; tudo isso embasado em pesquisa minuciosa. Há algo mais contrário às humanidades do que a contabilidade? E, no entanto, séculos mais tarde, são os registros contábeis que nos ajudam a contar a história. A riqueza de dados e fatos anedóticos encantará qualquer um que se interesse pelo Renascimento europeu ou pela história da imprensa.
Memórias do Subsolo – Dostoievski
Precisa de elogio meu? Melhor estudo da ação do mal na natureza humana do que muitos, ou até todos, os tratados filosóficos; que dirá científicos. Leiam.
The Mysterious Flame – Colin McGinn
O problema da relação mente e corpo é dos mais complicados da filosofia. Colin McGinn é da escola dos “mysterians”, colega de Thomas Nagel: defendem, por um lado, um dualismo bastante forte e, por outro, que não conhecemos, e mais, que somos incapazes de conhecer, a natureza da relação. E por acaso é de se espantar que um alicate não consiga desmontar a si mesmo? O livro é bem acessível, chegando a pecar por uma simplificação demasiada das discussões, mas os argumentos principais estão lá e há momentos de pura maestria argumentativa (por exemplo, quando McGinn mostra que, se as máquinas futuras operarem pelos mesmos princípios que as atuais, então nunca criaremos um robô “consciente”, não importa o quanto a IA avance). A tese de que mente e corpo são duas substâncias sempre me pareceu inverossímil; e ele é mais dado a reducionismos fáceis do que Nagel, que é inegavelmente superior. Mas quando qualquer um dos dois descreve a natureza da sensação subjetiva e sublinha a diferença dela para com os processos físicos do cérebro, desperta o cartesiano dentro de mim; sem glândula pineal, claro.
Achei curiosa essa lista, porque uma vez fiz um texto relacionando a obra de Toole exatamente com Dostoiévsky, mas, no caso, com Crime e Castigo.
http://confrariadetolos.blogspot.com/2010/01/uma-confraria-de-tolos-o-livro.html
Segui o link dado acima até o blogue Confraria de Tolos ( aliás, um título bastante irônico ) e lá encontrei este interessante pedaço de prosa, assinada por um Juliano Dourado Santana:
” Até o século XIX, preto não tinha alma. A igreja dizia que não tinha, pelo menos, e por isso permitiu a escravidão negra nas Americas. O argumento era que os negros fossem uns brutos, meio-animalescos, mais próximos do reino animal do que do reino humano ( Os biólogos darão risadas: como se o humano algum dia tivessse alcançado um reino destacado dos outros animais. Uma pilhéria).”
Realmente, a estupidez humana não conhece limites.
Pois é, a ignorância histórica desse trecho é total. Há santos negros desde os primeiros séculos do Cristianismo: S. Moisés o Negro (um dos primeiros monges), S. Benedito.
Fora que os escravos eram em geral batizados, o que mostra que, na visão da Igreja, tinham alma sim.
A escravidão foi demasiadamente tolerada (embora os documentos oficiais, a partir do século XV, sempre a condenassem) pela Cristandade, o que é uma vergonha. Mas o motivo nunca foi a suposta não-humanidade dos negros. Seria interessante descobrir quem inventou isso.