Pensava no sumiço dos grandes professores de direito civil. No auge da Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, floresciam mestres e bons alunos dessa disciplina. Mas agora – com nobres exceções, a exemplo dos professores Antonio Junqueira de Azevedo e João Alberto Schutzer del Nero –, todos parecem preocupados com os direitos constitucional, administrativo e tributário, quando não com os «novos direitos» do consumidor, ambiental e da infância & juventude (não se pode mais dizer «dos menores»).
Acredito que o motivo seja muito simples: o direito civil não pode ser alterado rapidamente de cima para baixo, por força da legislação – a princípio pode, mas não na prática. É a rebelião dos fatos contra as normas. São mais de dois milênios de experiência sobre como funciona o comércio humano, e qual a forma mais justa de lidar com ele. Não há Estado que consiga transformar, como queira, essas relações: compras e vendas, empréstimos, aluguéis, direitos sobre imóveis, ou seja, o nosso dia-a-dia nos negócios grandes, pequenos e entre amigos ou parentes. Só pela experiência acumulada posso saber a melhor forma de tratar justamente essas relações.
Não em direito administrativo, produto quentinho da França pós-revolucionária: a qualquer momento, cargos novos são criados, uma nova linha de governo altera todas as relações entre administradores e súditos… Há pouco lugar para a prudência e para a justiça nos casos concretos. E não vou dizer nada sobre os tributos – a parte mais forte, o Fisco, é a que tem mais privilégios. Empresas são esmagadas, especialmente as que não dependem do governo, particulares passam anos e anos escondendo os seus bens com medo de uma execução fiscal fundada na perda acidental de documentos contábeis. E nos processos judiciais, a maioria dos juízes, formatados pela moderna doutrina do direito público, não tem escrúpulos em aplicar a ferro e fogo a nossa legislação estatista. A tentativa, por exemplo, de implantar um Estatuto do Contribuinte não me parece tenha logrado bons resultados.
Por mais que lutemos contra isso, não podemos conter a «revolução permanente» do direito público. Ele é sempre a parte mais forte. Os amigos íntimos do Estado, essa ficção bastante real, sabem que, sem a economia – um affair tipicamente privado – não sobrevive, porque é dela que tira os recursos para sustentar-se e a sua ampla sociedade de burocratas e homens públicos. Mas isso é um segredo que vai sendo revelado aos poucos.
Por isso o estudo e a prática do direito privado é uma espécie de luta pela sobrevivência. Se disse que o Estado não pode transformar rapidamente o direito privado, não quis dizer que o não tenha transformado, provavelmente para pior, e que não o possa alterar ainda mais.
Não pude deixar de me lembrar de dois entes muito privados, Ishmael e Queequeg, lutando contra um cetáceo publicamente conhecido: Moby Dick. Esse parágrafo de Melville me dá calafrios: «One of the wild suggestions reffered to, as at last coming to be linked with the White Whale in the minds of the superstitiously inclined, was the unearthly conceit that Moby-Dick was ubiquitous; that he had actually been encountered in opposite latitudes at one and the same instant of time». Mas sou mesmo um otimista incurável.
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Se por um lado me agrada toda oposição ao Leviatã, me incomoda muito o modo como alguns o fazem, como se a sua vida dependesse do sumiço do Estado. Não se trata de um ente abstrato: ele tem um nome, ou melhor, vários nomes. A máquina funciona como se fosse mesmo uma máquina, mas por trás dela há funcionários públicos, há homens com histórias particulares. E há sempre liberdade.
Quando era procurador, recebia os pobres súditos e neles via pessoas cuja vida havia sido entravada pela burocracia; se era possível, se dependiam de um recurso administrativo, dava ganho imediato de causa para eles. Ver o Estado perder era um prazer, fruto de um ato de justiça, embora não isento de erros. É possível interpretar toda essa legislação labiríntica em favor dos homens e contra as máquinas de intervenção surreal na vida alheia. Não digo soltar criminosos: isso é problema do direito penal. E digo menos ainda «direito alternativo», pois há um certo aspecto de segurança na legalidade; afora o teor revolucionário e imprudente desse tipo de mentalidade alternativa.
Minha oposição ao ânimo contra-revolucionário tem um princípio bastante simples. Trata-se de aceitar que essa cultura pública tem alguma finalidade, embora esteja cheia de feridas (aliás, inevitáveis). E que não é possível combater as leis com mais leis, ou com a abolição de tudo e de todos. Não se pode combater uma ideologia com outra. Só os homens podem mudar; e sabemos que a maior parte simplesmente não vai mexer um palito que seja.
A crítica é boa, não me lembro que santo padre notou que os cristãos não eram desordeiros bagunçando o Império Romano, e ainda assim aquela joça caiu, mesmo se sabemos, é claro, que haviam outras cositas mas sérias em jogo, como a “desdivinização” do imperador.
Contudo a segunda parte me parece algo como “a máquina existe e funciona, que pelo menos funcione para o bem”. Mas o fato é que existem mecanismos que se não são perversos, pois não raiam mesmo nenhuma cláusula pétrea, o fato de fazer uso deles me soa como uma desistência, e aí a porca realmente torce o rabo, pois o estado de direito não nos tira a liberdade mais fundamental. Mas isso está no reino das aparências, no frigir dos ovos realmente é uma babaquice ficar pensando nos que os outros vão dizer ou se, meu, o cara jogou a toalha, Leviathan wins! Há uma espécie de puritanismo libertário a assolar a geração.
(O post vem a calhar, esta é mesma a política que importa, saber o que vamos fazer com o que de público nos compete, meu caro Zoon-politikon.)
Pois é, por trás do Estado há homens, funcionários públicos, eu só queria que eles fossem em menor número e que a gente não precisasse contar com a sorte de eles terem bom senso e a capacidade de usar as 8450283985320817 leis brasileiras a favor do bem.
Por uma questão de justiça, lembro que, além dos dois professores mencionados, a SanFran tem ainda (ou pelo menos tinha, no meu tempo) o Alcides Tomasetti Júnior.
P.S.: Mas a sua lista é quase exaustiva mesmo: esses três foram os únicos civilistas marcantes dentre aqueles de que fui aluno.
P.P.S.: Por outro lado, note que também estão acabando os grandes professores de Direito Público. São quase todos jacobinos, não? A verdade é que dá para contar nos dedos os professores realmente bons de Direito em geral. A universidade tem desanimado a maioria dos estudantes mais competentes, por muitos motivos; um deles é o espírito revolucionário de que você fala.
Receio que o comentário foi um pouco infeliz ao reduzir o direito tributário às ações do fisco.
Não teria sido melhor lembrar do modo como ele limita os meios que o estado usa para tributar…
será que não é justamente pelo fato de só agora os estudos tributários estarem sendo privilegiados é que existe essa voracidade tão grande do estado…
veja.. os tributaristas são os grandes inimigos do leão..