“Detestado por uns, tarado para outros, mal-amado por todos.”
Toda unanimidade é burra. Nelson Rodrigues, ainda bem, nunca foi unânime. Em entrevista dada em dezembro de 1980, dois meses antes de morrer, disse: “Tenho muito a falar sobre censura. Sou autoridade no assunto. Nos últimos trinta e cinco anos eu tenho sido o autor brasileiro mais censurado.” Trinta e dois anos depois, no centenário de seu nascimento, Nelson ainda é polêmico, muitas vezes mal interpretado, mas de uma atualidade assustadora. Conhecido como o infame e tarado homem das letras, suas crônicas de jornal revelam um moralismo ímpar – característica crucial que, por algum motivo, é deixada de lado quando se fala sobre sua obra. Que escritor sob a alcunha de “anjo pornográfico” diria que, se um sujeito não encontrasse a mulher amada, não deveria jamais beijar? Que começamos a nos desumanizar quando separamos o sexo do amor? Que o homem só começa a ser homem depois dos instintos e contra os instintos?
Como quem se antecipa à acusação lógica, Nelson mesmo se definia como reacionário. Quando perguntado se a auto-denominação era uma técnica de publicidade, respondeu que era, isso sim, uma técnica de sinceridade. Reacionário, para ele, é aquele que reage contra tudo que não presta – inclua aí o comunismo, o feminismo, o sexo livre, etc.. O autor que, por ignorância ou intenção maldosa dos outros, é visto como um Bukowski dos trópicos, um Foucault carioca, muito provavelmente não sentiria nada além de ojeriza pela ideia por trás de uma Marcha das Vadias. Em maio de 1970, publicou: “A partir do momento em que o homem se tornou um ser histórico, o erotismo passou a sofrer uns tantos ou quantos constrangimentos, limites, etc., etc.[…]Se abolirmos tais constrangimentos, os tais limites, que disciplinam o erotismo, acontecerá o diabo[…]O que é o crime sexual senão o erotismo em sua plena liberdade e irresponsabilidade?” É possível conceber, assim, estivesse Nelson vivo, um conservadorismo até mais forte, em reação aos tempos em que vivemos e que são (ainda) intimamente ligados às revoluções todas da década de 60.
“Estamos vivendo a época das passeatas estudantis. Tudo é um pretexto para desfiles. Se há uma greve de barbeiros, de alfaiates, de veterinários, de obstetras, logo a juventude promove uma marcha.” O que Nelson escreveu para O Globo em 1968 pode muito bem ser aplicado aos dias de hoje, é só atualizar as temáticas das marchas. As que ocorriam em favor de Cuba e contra a Guerra do Vietnã agora estão aí pelas vadias, pela maconha e contra a tal da “corrupção” – fazendo um pequeno desvio, há algo mais inútil do que promover uma passeata contra a corrupção sem acusar ninguém, sem exigir uma única atitude concreta? É como ser contra a injustiça, mas nunca estabelecer o que é justo. Assim, até os injustos desfilam, e com prazer, já que não serão reconhecidos em meio a multidão de narizes de palhaço. Hoje ou trinta, quarenta anos atrás, é o que basta para parecer bom, bonito e verdadeiro: se dizer revoltado e desfilar de nariz de palhaço. Prontamente, Nelson diria: “Realmente, há muita indignação. Não se dá um passo sem esbarrar, sem tropeçar nos indignados de ambos os sexos.”
Todo artista tem a dimensão profética: é capaz de dar atualidade e presença tanto ao passado como ao futuro. Nelson era um profeta no sentido em que, com sua espantosa vidência, olhava o óbvio e dizia: – “ali está o óbvio.” Para os outros, o óbvio é sempre invisível. Ele percebeu que o grande acontecimento do século XX foi justamente a socialização do idiota. Pela primeira vez o idiota se organizava, formava massas, unanimidades, maiorias, assembléias, etc.. Antigamente, os idiotas sabiam que eram idiotas, mas diante de sua superioridade numérica, passaram a exigir o direito de opinar e de ocupar cargos profissionais importantes (até o da presidência). Há os que fingem de idiotas para sobreviver. Para Nelson, um mistério nada misterioso – ou o sujeito bajula os idiotas ou não terá onde cair morto: “Há uma debilidade mental difusa, volatizada, atmosférica[…]Todos agem e reagem como imbecis. Não que o sejam, absolutamente[…]Mas num mundo de débeis mentais, temos de imitá-los. Não sei se me entendem. Mas para viver, para sobreviver, para coexistir com os demais, o sujeito precisa ir ao fundo do quintal e lá enterrar todo o seu íntimo tesouro. Hei de escrever, um dia, sobre a nova classe dos falsos cretinos.”
Anos antes de morrer, o escritor já sabia quais seriam suas últimas palavras e, como aquilo que é dito só uma vez acaba inédito, fez questão de anunciá-las repetidas vezes: “Que boa besta é o Marx!” Em sua coluna, dedicou inúmeros textos contra o marxismo, o grande responsável pelo chamado aviltamento da alma imortal, pois acreditava que, sob o regime comunista, tanto a vida como a morte são degradadas, desprovidas de qualquer valor. “Aí está o óbvio ululante. Mao Tsé-tung matou como ninguém, mais do que o próprio Stalin. Hitler assassinou muito menos.” E mais: “Quem é a favor do mundo socialista, da Rússia, ou da China, ou de Cuba, é também a favor do Estado Assassino.” Seu anticomunismo que, de acordo com o autor, começou aos onze anos de idade, só se solidificou com o passar do tempo: “Garoto de calças curtas, conheci uma meia dúzia [de comunistas] e tomei-me de um horror que, meio século depois, é o mesmo. Ou por outra: – não é o mesmo, é muito maior.” Para ele, Lênin e Stalin (em tempos em que um era visto mais favoravelmente do que o outro) eram gêmeos idênticos empenhados em fazer do homem o anti-homem, da pessoa a antipessoa – o homem se tornou nada mais do que um fato político: “Relembrei que, de uma só vez, Stalin matara de fome punitiva doze milhões de camponeses. E o Pacto Germano-Soviético? E os processos de Moscou? E as anexações brutalíssimas? E a invasão da Tchecoslováquia e da Hungria? E os povos degradados e reduzidos à passividade escrava? E os intelectuais internados nos hospícios?” Nelson acreditava que o socialismo ficaria como um pesadelo humorístico da História porque sua grande descoberta era tragicômica: – o escravo agradecido.
“Ao meu ver, nunca optamos tão pouco. Somos pré-fabricados. É difícil para o homem moderno ousar um movimento próprio. Nossa vida é a soma de ideias feitas, de frases feitas, de sentimentos feitos, de atos feitos, de ódios feitos, de angústia feita.” Como solução para este cenário, um esquerdista olharia para o futuro, buscando um novo modelo que transcendesse o atual. Nelson olhava para o passado – daí seu conservadorismo. A única forma de reaver nossas almas seria voltar.
Profundamente cristão, dizia que era a missa e os crentes que atrapalhavam a fé; se considerava católico, mas não rezava. A última vez que rezou foi para pedir a Deus que salvasse a vida de seu irmão. Não foi atendido. A morte se tornou uma de suas muitas obsessões: “Onde quer que matem alguém, é ainda meu irmão que morre, assassinado, eternamente assassinado.” Para Nelson, o verdadeiro amor continuava para além da vida e para além da morte. Foi por isso que se tornou repórter policial. “Eu queria escrever sobre os que vivem de amor, morrem de amor ou matam por amor.”
“O homem se mata por amor e não por sexo.” Há, então, uma grande diferença entre amor e sexo. Para ele, não havia nada mais vil do que o desejo sem o amor, justamente porque o mero desejo sexual apaga aquilo que nos separa dos animais: “No dia em que o sujeito perder a infinita complexidade do amor, cairá automaticamente de quatro, para sempre. Sexo como tal, e estritamente sexo, vale para os gatos de telhado e os vira-latas de portão. Ao passo que no homem o sexo é amor. Envergonha-me estar repetindo o óbvio. O homem começou a própria desumanização quando separou o sexo do amor.” Se é possível extrair alguma filosofia da obra de Nelson Rodrigues, ela está não só no amor como essência do ser humano mas também aquilo que provê sentido à existência: “Não há amor que não seja eterno. E os que acabam? Os que acabam não têm nada a ver com amor[…]Não importa que se ame errado: tampouco importa que a vida seja uma flora de equívocos. A simples esperança do amor eterno impede que o homem apodreça à nossa vista. E a mulher falhada, frustrada, morre esperando o amor que não veio.”
Gilberto Freyre escreveu que o escritor-jornalista ou o jornalista-escritor é o que sobrevive ao jornal: ao momento jornalístico. As crônicas de Nelson Rodrigues não são datadas, citam sim figuras e acontecimentos da época, mas sobrevivem ao teste do tempo não só por seu estilo vigoroso e memorável, mas porque tratam moralmente do humano – de como somos feitos e de como continuaremos a ser (se não nos desvirtuarmos por completo).
a dicta virou o blog da ieda? onde estão os outros articulistas?
Anônimo, meu caro, é só olhar na home, tem post do Martim, do Joel, do Leandro… Go nuts.
Who watches the watchmen?
Se é do conservadorismo o olhar (algumas vezes correto) do mundo decrépito que estamos, quem olha as mazelas dos conservadores?
Marxistas não tem personalidade, vivem a repercussão de seus líderes, mas os conservadores vivem a deformação de suas próprias ideias, medos e problemas pessoais.
Por fim é melhor ser um Anjo Por.. (a moderação do site não me permite terminar a palavra.), viver entre um mundo e outro como observador.
Ah, e se virou deixa quieto: estou adorando os posts! 😉
Anônimo 2, sei que você está tentando falar de ~~alguma coisa~~, só acho que não tem a ver com o texto e, se bobear, com a realidade. O Nelson não foi um mero observador (não sei de onde que você tirou essa noção de que conservador é necessariamente observador, que não vive, etc.). Ele passou fome, quase morreu, perdeu dois irmãos… Enfim, é só ler as crônicas, fica evidente que ele não era um mero observador, que viveu e intensamente. Outra coisa, marxista não tem problema pessoal? Oi?
No link a seguir, um ótimo texto – sintético e direto ao ponto – de Pedro Sette Câmara sobre o “erro de Nelson”:
http://pedrosette.com/tag/nelson-rodrigues
Não sei (ignorância minha, literalmente) se dá pra dizer com PSC que NR é “o maior dramaturgo da língua portuguesa”; mas de catarse no sentido aristótélico parece mesmo andar longe.
Nas crônicas ele seguramente continua a comunicar-se muito bem conosco. Ao acaso e por exemplo, os trechos no post acima sobre os “novos cretinos” e os “ódios feitos”, bem escolhidos, são lapidares.
A Ieda deveria ter um blog próprio, isso sim. Voltei a ler esse sítio graças a ela, e só por ela que acesso.
Eu estava a escrever a mesma coisa sobre a Ieda – eu acompanhava o antigo blog dela, depois o formspring e agora voltei a acompanhar o site Dicta com mais assiduidade para ler os seus posts. Keep writing, Ieda!
De fato, o texto do Pedro vai ao ponto. Ieda Marcondes parece operar no mesmo erro de Martim Vasques da Cunha, um erro bastante comum e caro aos conservadores, que é tentar enxergar “redenção” e “catarse” onde ela não existe só porque gostaram de uma determinada obra ou autor ou artista.
Isso fica patente se lermos os textos anteriores da autora.
É um erro tão disseminado, do qual tantos conservadores gostam, que muitos são fãs do que ela escreve, como podemos ver pelos comentários.
Já eu acho que seus textos são um tanto pueris, só ocasionalmente bem escritos. Adoraria ver mais textos de Julio Lemos e do próprio Martim aqui. Ieda Marcondes de fato está transformando a Dicta em seu blog pessoal, com resenhas que não apresentam absolutamente nada de novo para o pensamento conservador, fora um ou outro insight espertinho. Em outras palavras, e espero que ela acate a crítica como alguém que deseja melhorar: é preciso comer um pouco mais de feijão.
Gostaria de saber de quais obras tais citações foram retiradas.
Grato
De “O Reacionário” e “O Óbvio Ululante”, Pedro.
Pedro Mundim:
‘tentar enxergar “redenção” e “catarse” onde ela não existe só porque gostaram de uma determinada obra ou autor ou artista.’
Não tento, se vi isso, eu falo. Não posso falar do que não vi, do que não pensei e não senti. Não tenho outra forma de escrever.
‘Ieda Marcondes de fato está transformando a Dicta em seu blog pessoal’
Não, não estou. Eu nem tenho login do blog da Dicta. Eu mando os meus textos (geralmente um por semana) para o Joel Pinheiro e ele posta quando apropriado. Infelizmente, os outros autores não tem escrito. Também gostaria de ver mais textos do Martim aqui.
‘não apresentam absolutamente nada de novo para o pensamento conservador’
Não quero apresentar nada de novo para ‘o pensamento conservador’. Não sou estudiosa do ‘pensamento conservador’. Sou formada em Cinema, estou fazendo pós em Jornalismo Cultural e escrevo sobre o que me interessa. É simples assim.
‘Em outras palavras, e espero que ela acate a crítica como alguém que deseja melhorar: é preciso comer um pouco mais de feijão.’
Quero muito melhorar. Tenho 25 anos e estou estudando pra isso, mas você precisa me dar uma crítica mais objetiva. Se você não gosta do que escrevo, paciência, mas não vi nada no que você escreveu além de uma preferência pessoal qualquer, como não gostar de carne. Não gosta de carne? Não coma carne. Não gosta dos meus textos? Não leia.
NOTA DO EDITOR: de fato, por motivos técnicos, os textos da Ieda são incluídos por mim, Joel Pinheiro. Em geral, ela tem uma resenha de filme toda sexta-feira; em uma ocasião, publicamos um texto dela no meio da semana. E, na semana passada, publicamos um texto dela sobre Nelson Rodrigues. O site não é dela; embora, como colaboradora regular, eu diga sem ressalvas que ele é também dela.
Off topic:
Joel, e a revista quando sai?
É sempre muito agradável entrar aqui e ver que há um novo texto da Ieda.
Sobre o erro mencionado pelo Pedro Sette Câmara, será que ele não seria dos diretores, das adaptações cinematográficas, e não do Nelson?
Caro Ricardo: é verdade que os diretores dos filmes colocaram mais nudez do que havia nas peças. Mas, se você lê-las, não existe nenhuma rubrica dizendo que tal ou qual coisa deveria acontecer apenas atrás das coxias. E Nelson Rodrigues poderia reclamar que os diretores eram “inteligentes”, mas não lembro de uma crônica sua reclamando da nudez. Sem contar que “Álbum de família”, por exemplo, foi censurada em 1946 (na “república liberal”) e liberada em 1965 (na ditadura). Se “Álbum de família” não foi feita para chocar… E, teatralmente, a peça é uma chatice interminável.
Voltando, na tragédia grega, a violência nunca era explícita. Édipo não arranca os olhos em cena, Agamêmnon não é assassinado em cena etc.