Há um texto conhecido de Paul Valéry em que ele procura definir o que teria formado o “espírito europeu”: a filosofia grega, o senso prático, o direito romano e o cristianismo. Antes dele, estiveram em voga a palavra gênio e espírito universal (Goethe) para exprimir essa idéia, como lembrava Francis Scarfe num estudo sobre T. S. Eliot. A expressão de Valéry parecia, no início do séc. XX, um bom substituto.
Talvez seja uma boa época para se retornar a esse texto (como dizem alguns, para “pensar esse texto”…). Deixo um link para o trecho pertinente de History and Politics, traduzido para o inglês.
http://www.30giorni.it/us/articolo_stampa.asp?id=5332
Rémi Brague cita esse valioso texto de Valéry em seu livrinho “Europe, la Voie Romaine”. Roma é como um aqueduto que nos faz chegar o que vem de Atenas e de Jerusalém. Aos traços do “europeu” listados por Valéry, RB soma algo como “subsidiariedade”; Roma se percebe devedora da Grécia, de certo modo bárbara com relação aos seus ideais mais altos e civilizada ao buscá-los. Nesse sentido, europeu ou romano é algo que associa a) apego ao que hoje chamaríamos “autenticidade”, mas b) consciência do caráter contingente dessa autenticidade, noção de que outras culturas (“bárbaras”) são “traduzíveis e suscetíveis de ascender ao universal pela linguagem”. B16 elabora esses temas em uma coletânea muito orgânica, “Truth and Tolerance” em inglês. Voltando a Brague, ele recorda que a Europa (ou as Américas, por tabela) deixam de ser européias nesse sentido mais forte quando se fecham à alteridade – e vale recordar que abrir-se a ela é muito diferente de abandonar sua própria diferença; nada a ver com a decadência do “tout comprendre” denunciado por Nietzsche. Ótima caricatura dessa pseudo-Europa encontra-se na página 7 do Loto Azul, do Hergé, referida por Brague: lá aparece um inglês cretino fazendo apologia de “nossa bela civilização ocidental” enquanto maltrata um chinês. De passagem, Brague nota em Goethe essa nostalgia muito européia, “suscitada pelo sentimento melancólico de uma alienação ou de uma inferioridade com relação a uma fonte”. Fonte que na cultura de massas a partir da segunda metade do século XX parece incomparavelmente mais distante que no romantismo.
Em tempo, e antes que chovam pedras: ainda que a meu ver não roube o interesse da entrevista linkada, também acho discutível o trecho a seguir, e particularmente o “compromise on moral laws”; isto precisaria ser contextualizado mediante cotejo com outros escritos do RB. Na melhor das hipóteses ele está apenas dizendo uma palavra de cautela contra farisaísmos agressivos; na pior, relativizando onde não cabe. Quem conhecê-lo melhor que se manifeste: “Some reproach the Church for a weakness in sustaining certain truth contents. What image of the Church do they like?
BRAGUE: For these people, the Church must “defend certain values”, and not compromise on the moral laws. But do they themselves follow them? Not always … They want an organization with a firm line, with a “number one” well established. In the end, I ask myself if they don’t dream of a Church in the mould of the Communist Party of the Soviet Union.”
Indo um pouco além, talvez chovendo no molhado: na coletânea que saiu em inglês como “Truth and Tolerance”, o então Cardeal Ratzinger dedica várias páginas a uma reflexão em torno da “Fides et Ratio”, de JPII. Após uma discussão pertinente ao sentido de “cultura”, ligada à questão das relações entre verdade e método, JR recorda as considerações freqüentemente empobrecedoras que muitos fazem entre cristianismo e Europa, não apenas no sentido de qualquer excesso de “eurocentrismo”, mas também, em oposição apenas aparente, no sentido de tornar redundante a questão da verdade por meio de uma absolutização de seu lugar em determinada cultura (e o do cristianismo, religião verdadeira, seria então exclusivamente o da cultura européia, o que quer que isso signifique). Ora, grandes culturas, como por exemplo a indiana, a chinesa, a japonesa, etc, têm uma tendência a transcender-se e a dialogar com outras. No caso das que historicamente têm por fundamento o cristianismo, e que estão basicamente naquele espaço que Valéry aponta no texto linkado acima, essa tendência à universalidade também se manifesta. Considerando nelas o enraizamento da Igreja, cujas relações com a história envolvem categorias outras que não apenas socio-culturais (inclusive aquela de “providência”), esse ímpeto dialogal e universalizante se anularia porém caso ela, Igreja, abandonasse “o que ganhou de sua inculturação no mundo do pensamento greco-romano. Rejeitar essa herança seria desmentir o plano providencial de Deus” (FR, 72). E por tabela (mas acho que isto não está na encíclica), uma Europa que rejeita o caráter formador do cristianismo em sua matriz deixa de ser européia. “Mutatis mutandis”, isto pode valer, é claro, para tradições civilizacionais fora do espaço vincado pelo cristianismo – e por isto mesmo segue-se em FR uma recomendação de cautela, para “não confundir a legítima reivindicação de especificidade e originalidade do pensamento indiano [ou de tradições várias, chinesa, africana, aymará, etc] com a idéia de que uma tradição cultural deve enclausurar-se em sua diferença e afirmar-se pela sua oposição às outras tradições” (FR, 72). Voltando a Valéry e sobretudo a Brague e à FR: “europeu” ou “romano” em sentido forte implica esse apego à própria civilização, mas considerando que se trata de uma civilização informada pela Igreja, implica igualmente uma abertura à transcendência do que é meramente cultural, na palavra revelada e na história da fé. Insistência em afirmar a possibilidade racional de uma verdade que não é relativa, fora do que é mainstream neste começo de século e nestas bandas do sol poente.