“People see me all the time and they just can’t remember how to act
Their minds are filled with big ideas, images and distorted facts”.
Bob Dylan, “Idiot Wind”
Bob Dylan estava deitado na cama de um hotel em Amsterdam no ano de 1974 quando veio à sua mente a seguinte frase: “Idiot wind blowin´ through the letters that we wrote” (O vento idiota soprando nas cartas que escrevemos). O que era aquilo? Pela milésima vez em sua vida a maldita metáfora do vento voltava a assombrá-lo. Mas a frase continuava na sua cabeça, martelando, martelando. A única solução era escrever sobre aquele vento – de novo.
“O que eu queria quando fiz aquele álbum”, diria Dylan ao jornalista Bill Graham anos mais tarde, “era desafiar o conceito de tempo. Isto é, o narrador passa o álbum inteiro lembrando do passado durante o presente e, quando se chega na canção final, o presente e o futuro são uma coisa só. Na verdade, todas as letras são como um quadro: você pode ver um pequeno detalhe do quadro ao mesmo tempo que vê a sua totalidade. Era isso o que eu queria fazer: uma meditação sobre a simultaneadade do tempo, de como você pode pensar em uma pessoa querida que perdeu, e ela está lá, ao seu lado, e também não está”.
No seu quarto em Amsterdam, Dylan passou uma semana inteira sem falar com ninguém. Aliás, era exatamente isso o que queria. Depois das discussões com sua esposa, Sara Lowands, um pouco de solidão não faria mal a ninguém. Mas ele também sabia que ela iria embora de sua vida – para sempre. Armado com um violão, uma caneta e um maço de papéis, escreveu e reescreveu incessantemente cada um dos versos que pousavam em sua mente. Eles seriam o resultado de um sobrevivente, o sangue que escoa nos trilhos da vida e que deixa as suas marcas mais profundas.
“Judas!!!” gritou alguém do lado esquerdo do Royal Albert Hall naquele dia histórico de 26 de Maio de 1966. Dylan escutou aquele grito com uma precisão incalculável. Empunhou a guitarra, dedilhou algumas cordas junto com Robbie Robertson, olhou diretamente para o público e somente disse: “I don´t believe you….You´re a liar” (Eu não acredito em você…. Você é um mentiroso). E assim foi declarada uma guerra secreta entre Bob Dylan e seu público, um público que queria que ele tocasse exatamente o que pediam – ou seja, canções de protesto dedilhadas em um violão “folk”, embaladas numa voz analasada e raivosa. Pois bem, se eles queriam raiva, teriam raiva em dobro. Dylan encarou os integrantes de sua banda, The Hawks (que seria conhecida futuramente como The Band), e grita : “PLAY FUCKING LOUD!”. E então as baquetas de Mickey Jones explodem em um peso incalculável, Robbie Robertson arranha a guitarra, Garth Hudson e Richard Manuel jogam o som dos teclados para todos os lados e no meio dessa massa sonora pesada, que ataca o ouvinte como um martelo, escuta-se a voz de Dylan, nervosa, cheia de ódio, irônica, desafiando cada um de seus inimigos – “How does it feeeeeeeelllll???”. Aquele refrão de “Like a Rolling Stone” provava que, finalmente, o messias dos anos 60 mandava tudo para o inferno, com a única preocupação de fazer o que devia fazer no seu próprio tempo, na sua própria história.
Na verdade, Bob Dylan sempre esteve no seu próprio tempo, no seu próprio mundo, um mundo onde vida e morte eram memorizados a cada instante, desde que era Robert Allan Zimmermann, nascido em 1941. Aos 20 anos decidiu ir para Nova York e conseguir um lugar na cena folk que estava então em moda. Os cantores folks daquela época cantavam canções de cunho social, sempre criticando o “american way of life”, acompanhados simplesmente de uma gaita e de um violão. Dylan se tornou um perito nesses dois instrumentos, criando um estilo próprio de tocar, muito inspirado em Woody Guthrie, seu mestre. Guthrie estava esquecido até mesmo pelos “folkers” de Nova York, e uma das poucas visitas que recebia no hospital onde estava internado era do jovem Dylan – que ficou impressionado com a figura do ídolo, um sujeito que criou uma lenda própria ao vagar pelos EUA com a seguinte frase gravada no violão: “Esta é uma máquina de matar fascistas”.
Dylan seria também uma lenda viva, principalmente após o lançamento do seu segundo álbum, “The Freewheelin´Bob Dylan”, em que havia “Blowin´in the Wind”, sucesso nas vozes de Peter, Jonh & Mary, o trio favorito dos hippies. Suas composições apresentavam uma variedade poética impressionante tanto no conteúdo das letras como na riqueza das metáforas. Um manto de mistério cercava sua pessoa, e ele não fazia nada para impedir isso até porque o mistério lhe era um elemento interessante, um elemento que somente os poetas possuíam, e Dylan (há versões de que seu pseudônimo é uma homenagem ao escritor galês Dylan Thomas) via o seu trabalho como o trabalho de um poeta.
De qualquer maneira, aquele garoto franzino foi o responsável por uma revolução no mundo da música internacional. Com suas letras, as canções deixaram de falar apenas de “eu, minha menina e meu carro” para falar sobre vida, morte, sexo, ódio e religião, com uma sofisticação digna de um T.S. Eliot ou Rimbaud. A influência de Dylan começou a ser sentida em todo lugar, até mesmo na Inglaterra, quando Jonh Lennon, em 1965, compôs “You´ve got to hide your love away” para o álbum “Help!” dos Beatles.
Mas já naquela época Dylan estava meio irritado com o seu público, um público que não entendia muito bem o que ele queria fazer. “Eu não escrevo canções de protesto, nunca escrevi canções de protesto”, reclamou ele em uma entrevista. “Escrevo canções sobre a vida, e a política é um dos temas que não me preocupam em nada”. Mesmo assim, os hippies acreditavam que “Blowin´in the Wind”, “The Times They Are A-Changing” e “Masters of War” eram hinos contra o Governo americano e contra a Guerra do Vietnam.
Só que – pecado mortal – Dylan não estava nem aí com a Guerra do Vietnam. Ele estava mais preocupado com amores perdidos, desilusões religiosas, procura frustrada pela redenção. Sua realidade era outra, muito mais alucinante, muito mais perigosa. A prova disso foi quando decidiu trocar o violão e a gaita por uma banda de rock-n´-roll e assim o bardo folk se tornou em um roqueiro na mesma tradição de Chuck Berry e Elvis Presley. No entanto, Dylan era um Chuck Berry lisérgico e um Elvis Presley metafísico.
Por isso o “Judas!” no Royal Albert Hall no dia 26 de Maio de 1966. Seu público considerava como uma traição o que Dylan estava fazendo – eletrificar o folk!!!! Que blasfêmia!!! Quando Dylan respondeu que ele não acreditava no insulto é porque sua lição era a seguinte: um artista nunca deve ser refém do público e sim o público que deve enfrentar os desafios propostos pelo artista. Existe algo na alma do artista que possibilita estar na frente de todos, de antecipar situações e tendências – e isto acontece porque ele transforma o tempo em que vive no seu próprio tempo, tornando a obra não somente um comentário daquela época, mas também um comentário sobre todas as épocas.
De qualquer forma, Dylan provou a todos que estava certo. Sua trilogia “elétrica”, composta pelos memoráveis álbuns “Bringing It All Back Home” (1965), “Highway 61 Revisited” (1966) e “Blonde On Blonde” (1967), está repleta de melodias claras como mercúrio, letras enigmáticas (alguém poderia explicar “Desolation Row”?) e uma vitalidade de experimentar que somente Jimi Hendrix e os Beatles igualaram. Ainda assim, havia espaço para o romance: em “Blonde on Blonde” – um disco que é citado em qualquer discoteca básica, como prova quem já viu o filme “Alta Fidelidade” – há uma última canção, de doze minutos, chamada “Sad-Eyed Lady of the Lowlands”. Todo poeta tem sua musa, e Dylan não foi exceção. Chamava-se Sara Lowands, e foi ela quem cuidou dele depois do trágico acidente de motocicleta que quase lhe tirou a vida em 1967.
Seguiram-se 20 meses de silêncio angustiante para os fãs. O que teria acontecido? Boatos diziam que ele teria morrido, que estava prestes a morrer, que havia quebrado o pescoço, quebrado três costelas, desisitido da música; diziam que ele estudava minuciosamente a Bíblia ao lado de um exemplar com as músicas de Hank Williams; diziam várias coisas, e poucas eram verdadeiras. O que não falaram era que Dylan estava isolado em um porão numa casa localizada em Woodstock, junto com os seis integrantes da The Band e todos compunham canções que seriam gravadas em fitas monos, de sonoridade rústica – canções que seriam uma lenda do rock-n´-roll no primeiro álbum pirata da história, o fundamental “The Basement Tapes”, lançado somente em 1975.
Este seria o mesmo ano em que “Blood on the Tracks” foi lançado. Em 1975, Bob Dylan já tinha conquistado o posto de mito. Seu retorno triunfal depois do acidente de moto aconteceu com o bíblico “Jonh Wesley Harding”, um álbum que indicava que, finalmente, o torturado poeta encontrara a redenção (como prova a última faixa, “I´ll be your baby tonight” em que ele cantava de maneira comovente “Close your eyes, close the door, you don´t have to worry anymore”). A sensação de paz coincidiu com o seu casamento com Sara Lowands, uma ex-modelo que lhe deu cinco filhos (entre eles, Jakob, do grupo The Wallflowers), e com uma grande turnê de sucesso, a Rolling Thunder Revue, um projeto gigantesco em que Dylan reunia os melhores músicos de sua geração e viajava os Estados Unidos de costa a costa.
A turnê foi filmada em um filme dirigido e escrito pelo próprio Dylan, um pretensioso épico avant-garde de 4 horas chamado “Renaldo & Clara”. Experiência arriscada que não foi compreendida por nenhum crítico deste mundo, o filme, na verdade, tratava de um tema muito simples: o relacionamento complicado de Bob Dylan com as mulheres. Isto nunca foi novidade: em várias canções, Dylan abria seus sentimentos como ninguém ao tratar das relações homem-mulher com uma maturidade invejável. Para ele, a mulher era uma espécie de caminho para a salvação, mas, ainda assim, a incomunicabilidade, o interesse e, principalmente, o tempo, criavam descompassos que não permitiam a harmonia amorosa.
“Renaldo & Clara” mostrava esta visão complexa através de cenas cubistas nas quais Sara Lowands e Joan Baez se alternavam nas suas personalidades, e Dylan era sempre o homem entre elas, o solitário que continuava a procurar o caminho correto, custe o que custar. Este caminho ficaria mais complicado em 1974 quando Sara Lowands ensaiva os primeiros passos de uma separação. Ela sempre foi muito discreta em relação ao seu período com Dylan, mas segundo uma namoradinha dos anos 60, Susan Rotolo (a inspiradora para a cruel “Ballad in Plain D” e a clássica “It´s All Over Now Baby Blue”, falecida em 2011), “Bobbie era um cara muito quieto, que ficava sempre em silêncio, pensando, os olhos brilhando, a perna se mexendo de maneira intensa; e, de repente, ele voltava a falar alguma coisa, mas era de maneira conflitante, impetuosa. Era como se quisesse brigar o tempo todo”.
Enfim, o sujeito tinha aquilo que se chama de uma intensidade quase maníaca. Um homem que escreve um verso como “When you got nothing, you got nothing to lose” (“Quando você não tem nada você não tem nada a perder”) não deve ser alguém trânquilo. Bob Dylan, pelo o que ele mostra em sua obra (e não foi o próprio que disse “eu já me exponho cada vez que escrevo alguma coisa”?), é um homem preocupado com a realidade enigmática que o cerca e como decifrá-la. Tudo é mistério, e suas canções transformam o rock-n´-roll em um meio de expressão artística para a descoberta deste enigma. Com o passar do tempo, as letras de Dylan alcançam uma claridade surpreendente, que acontece somente com a idade e com a dor que vem da idade. Assim, o homem que encontramos naquele quarto de hotel em Amsterdã em meados de 1974 é um homem que se confronta com a dor da perda e com o peso de seu próprio passado. Agora ele precisava fazer a síntese de sua trajetória para depois ir para a frente. Ele precisava olhar para o sangue nos trilhos.
Quando “Blood on the Tracks” foi lançado em janeiro de 1975 os críticos louvaram como uma obra-prima e esta foi uma das raras vezes em que a crítica acertou na mosca. No entanto, seu parto foi complicado. Além de todas as lembranças pesarosas que trazia por causa da separação com Sara, Dylan resolveu regravar o disco no último minuto antes dele ser lançado no final de 1974. Primeiro, contratou uma banda desconhecida do Mississippi; gravou cerca de 50% das faixas, mas, cerca de seis meses depois, ficou insatisfeito e foi para Nova York refazer tudo de novo. O resultado é um som único, hipnotizante, repleto de texturas delicadas de violões, contra-baixos, banjos e, sem dúvida, o melhor vocal que Dylan fez na sua vida. Aqui, sua voz atinge uma expressividade dramática, num perfeito encaixe entre forma e conteúdo, com as rimas mais estranhas se tornando música, e as letras em si indo e vindo como as pinceladas de um quadro. Neste magnum-opus sem concessões, Bob Dylan se abre por completo para o público e é por gravar o seu sangue nas trilhas (ou nas faixas?) de uma obra que ele fez nada mais nada menos que a Divina Comédia do rock-n´-roll.
“Blood on the Tracks” é, a princípio, um álbum sobre uma procura que não termina bem. Sem dúvida, a desilusão é um dos seus temas centrais, mas ela sempre vem acompanhada com a perda, sentimento que permeia todo o disco. Contudo, como veremos, a desilusão e a perda são transformadas em esperança e resignação, apesar destas duas coisas não terem muito a ver. Vamos acompanhar o disco faixa por faixa:
“Tangled up in Blue”: a primeira canção determina o tom do disco – um banjo dedilhado de forma delicada, o ritmo marcado pelo baixo e a voz de Dylan contando se ele imaginava que uma moça mudou sua vida. Aqui, o passado assombra o narrador, e a musa permanece como um fantasma, um espectro que volta sempre nas horas mais inconvenientes. Enforcado em tristeza, ainda assim ele faz a única coisa que sabe fazer como poucos: viver (“The only thing I knew how to do was to keeping on keeping on like that bird that flew”). Nesta canção aparece a pista principal do por que Dylan considera “Blood on the Tracks” a sua Divina Comédia. Ambas as obras foram compostas quando seus autores enfrentavam “o meio do caminho da vida”, ou seja, 35 anos de idade; e além disso, o narrador conta que a musa havia entregue um exemplar de um livro de poemas do século XIII e que cada verso parecia ter sido escrito em sua alma. A referência é clara: Dylan cita Guido Cavalcanti, mestre de Dante e responsável pela criação do dolce stilo nuovo em que, por meio da forma fixa do soneto, o eu -lírico reflete sobre o seu amor por uma mulher idealizada e perfeita. Em “Blood on the Tracks”, a mulher não é tão perfeita assim (ela trabalha em um clube de strip-tease), mas, ao mesmo tempo, representa um caminho rumo à eternidade que, desde o início, sabemos que estará perdido.
“Simple Twist of Fate”: uma intensa reflexão sobre como uma mulher pode revirar o destino de um homem. Dylan canta com uma dor aguda e não há como ficar imune quando ele conclui que “as pessoas me dizem que é um pecado sentir e pensar demais” (“People tell me It´s a sin to knew and feel too much within”). Aqui, uma gaita, um violão e um preciso contra-baixo criam uma camada de sons e de sensações em que o Destino se faz presente no ouvido do ouvinte.
“You´re a Big Girl Now”: um dos temas de “Blood on the Tracks” é o da penitência por algum pecado que cometemos, mas não sabemos qual é. A prova disso está nesta canção. Quando Dylan grita “Eu sei que você está no quarto com uma outra pessoa e este é o preço que tenho de pagar” (“I know you´re in somebody´s room, that´s the price I´ve had to pay”), ele ecoa uma das primeiras linhas de “Tangled Up In Blue” – “o Senhor sabe que estou pagando alguns deveres” (“Lord knows I´m paying some dues just getting through”). Mesmo assim, ele admira a mulher que perdeu, afirmando que ela conseguiu se adaptar em um mundo estranho enquanto ele continua um estranho no ninho.
“Idiot Wind”: se alguém quer saber como é o som do ódio deve escutar esta canção. Se na faixa anterior o narrador admira a mulher que perdeu e que ainda ama, agora a raiva é absoluta. “Idiot Wind” é uma das canções mais enigmáticas de Dylan e uma clara resposta àqueles que acreditam que a resposta soprava no vento. Ao mesmo tempo, é o tratado de vida de um sobrevivente, de alguém que está conseguindo ultrapassar os obstáculos da vida. É também uma canção de amor que consegue retratar a ambiguidade de uma relação entre homem e mulher como poucos fizeram neste século. Querem uma prova? Vejam este trecho, impossível de ser traduzido, mas, sem dúvida, digna de gênio:
“You´ll never know the hurt I´ve suffered nor the pain I rise above
And you´ll never know the same about you
Your holliness or your kind of love
And it makes me feel so sorry”
“You´re Gonna Make Me Lonesome When You Go”: depois do ódio, vem de novo a delicadeza. “Te vejo nas pessoas que amo, na grama alta, no céu lá em cima”, canta Dylan como se tivesse adquirido toda a paciência do mundo. É a partir daí que “Blood on the Tracks” começa a surgir como uma obra sobre a espera de um amor que ainda não se realizou plenamente por causa das adversidades da vida. Aqui, como veremos, o grande inimigo é a vida.
“Meet me in the morning”: o melhor blues já escrito por Dylan. Versos afiados (“Looking at the sun sinking like a ship, It´s like when you kissed my lips”), uma slide-guitar deslizante e, enfim, a espera virando a ansiedade de um provável encontro. As trevas invadem a memória do narrador desde do dia em que a musa se despediu sem nenhum aviso. Esta canção mostra que a história não está ocorrendo somente no presente, mas também no passado, pois o narrador alterna os dois momentos sem saber onde um começa e o outro termina. A perda, Dylan parece dizer, traz resultados devastadores ao tempo.
“Lily, Rosemary and the Jack of Hearts”: um interlúdio? Aparentemente, esta canção picaresca, divertida, não tem nada a ver com a tristeza que permeia o disco. Mas Dylan não joga cartas à toa e o que temos na verdade é um mundo de mistério e morte onde duas mulheres estão obcecadas por um homem chamado Jack of Hearts. Estruturada como um jogo de pôquer, a canção permite que o ouvinte tire as mais diversas interpretações da história – sendo a principal a mais clara de todas: que vivemos em um mundo de ilusões e devemos procurar o que fica, aquilo que nos traz a Verdade, mesmo que ela seja cruel demais.
“If You See Her Say Hello”: um dos maiores poemas de amor já escritos na face desta Terra. Dylan atinge a eternidade da Arte ao voltar para a história central do disco e narrar a saudade do homem pela mulher amada. Versos como:
“Sundown, yellow moon, I replay the past
I Know every scene by heart, they all went by so fast
If she´s passing back this way, I´m not that hard to find
Tell her she can look me up if she´s got the time”.
retratam o estado da alma do narrador. O surpreendente é que quando pensamos que isto é o máximo que Dylan parece ter atingido, o disco segue com
“Shelter from the Storm”: uma canção que continua a mostrar a dignidade da dor justa, se é que existe tal negócio. Estamos na etapa final do caminho e o narrador só encontrou destruição, zombaria, sarcasmo por sua inocência. Nem mesmo a mulher que havia oferecido abrigo da tempestade pode salvá-lo. “Vim da vastidão do mundo, uma criatura sem forma nenhuma” canta Dylan e ele continuará assim por um bom tempo. Contudo, a esperança não se esvai: “A Beleza entra como uma navalha e algum dia farei dela minha, se algum dia eu pudesse acertar o relógio para o dia em que ela e Deus nasceram”. A mulher é o meio principal para o alcance de Deus, e este meio é perigoso pois o tempo corre contra tudo e contra todos. O que sobra agora é a resignação e a espera, o que acontece na última e derradeira faixa:
“Buckets of Rain”: no qual o narrador lembra da mulher amada ao ver a chuva caindo pela janela (Dylan usa a chuva simbolicamente para descrever a memória do narrador). Todas as ilusões acabaram – “Friends will arrive, friends will dissapear” – e o resto é o narrador e sua musa, mesmo estando separados. No final de sua procura, ele está mais duro e mais forte como um carvalho. Lembra do sorriso dela, dos dedos das mãos e, mesmo assim, tudo nela traz desespero. Mas na última estrofe o herói espera que algum dia irá encontrar de novo esta mulher. Ele sobreviveu e vai continuar a viver pois chegou à seguinte conclusão, crua e simples:
“Life is sad, life is a bust
All you can do is do what you must
You what you must do and you do it well
I´ll do it for you, honey baby,
can´t you tell?”
Um disco que termina dessa forma não pode ter outra classificação a não ser obra-prima. “Blood on the Tracks” é uma daquelas jóias que ficam escondidas e que poucos sabem da sua existência. Neste álbum Bob Dylan deu, como diria o dito popular, o seu sangue, literalmente. Todo o seu passado, toda a sua vida estão resumidos neste disco. E se isto for compreendido de maneira radical não seria exagero declarar que toda a história do rock-n´-roll está nas dez faixas de “Blood on the Tracks”.
O sangue de Dylan é também o sangue de um genêro musical que provocou uma transformação cultural sem precedentes. E um dos responsáveis por isso foi Robert Allan Zimmermann que, depois de 1975, iria descobrir o cristianismo, voltar às suas origens judaicas, numa série de percursos que somente o levariam a uma carreira que parecia ter perdido o foco. Mesmo os gênios tem seus momentos de incerteza. Bob Dylan voltaria a fazer obra-primas do mesmo nível de “Blood on the Tracks” em 1997, com o magnífico “Time Out of Mind”, um disco que precisaria de um outro artigo para uma análise detalhada, e em 2001, com o divertidíssimo “Love and Theft”. Nesta fase de sua obra, digna do último Yeats ou do Goethe tardio, Dylan sente como poucos os primeiros sopros da morte. Aos 70 anos, ele é uma instituição da cultura popular, o mais perfeito exemplo do guerreiro das estradas ou do spoudaios aristotélico. Mas nem por isso parou no tempo e deixou a realidade do novo século contaminá-lo. Talvez ele esteja mais ágil que antes e seu sangue apenas mais refinado. É o que acontece com os grandes espíritos, com os grandes mestres. No entanto, muito cuidado: como o próprio canta em uma de suas músicas mais recentes, “Things Have Changed”, feita para o filme “Garotos Incríveis” com Michael Douglas e dirigido por Curtis Hanson – “Toda a verdade do mundo se soma a uma única grande mentira” (“All the truth in the world adds up in a one big lie”).
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