“Há um certo tipo de ficção mediante a qual o autor tenta se libertar de uma obsessão que não é clara nem para ele mesmo. Mal ou bem, são as únicas que consigo escrever. Mais ainda, são histórias incompreensíveis, que me vi forçado a escrever desde a adolescência. Talvez eu tenha sido sóbrio quanto à sua publicação, e só em 1948, me decidi a publicar uma delas: “O Túnel”. Nos treze anos seguintes, continuei explorando esse escuro labirinto que leva ao segredo central da nossa vida”.
Trecho da nota à primeira edição de “Sobre Heróis e Tumbas”, publicado em 1961.
A obsessão que move Ernesto Sabato na literatura é a mesma que torna peculiar uma característica triste da maioria dos escritores latino-americanos: um formidável talento literário e uma incrível cegueira ideológica. Como uma criatura bifronte, o escritor latino se vê dilacerado entre suas obras ambiciosas, impecavelmente realizadas em termos artísticos, e suas opiniões políticas recheadas de uma ingenuidade perigosa, pois defende os governos socialistas totalitários como se fossem a única solução para o planeta. Os dois maiores exemplos deste infortúnio são Julio Cortázar e Gabriel Garcia Márquez, os autores de “As Armas Secretas” e “O Amor nos Tempos do Cólera”, respectivamente. Uma das poucas exceções é Mario Vargas Llosa que, depois de se enamorar com o comunismo quando jovem, teve um melancólico noivado com o neoliberalismo e agora está cada vez mais voltado ao pensamento liberal-conservador, sem prejuízo da qualidade de sua literatura (como prova o admirável “A Festa do Bode”).
Já Ernesto Sabato representa um problema, e dos grandes. Sua primeira obra, “O Túnel”, publicado em 1948, causou frisson na Argentina e na França por ser um livro que ia na corrente do existencialismo de Sartre e Camus, mas não passa de um romance bem confeccionado, e só. Ele se tornaria o grande escritor portenho, muito superior aos bombons de chocolate de Borges, com o seu segundo romance, o monumental, díficil, incompleto, insano “Sobre Heróis e Tumbas”.
Na verdade, “Sobre Heróis e Tumbas” é um remake, por assim dizer, de “O Túnel”, com as mesmas idéias sobre solidão, incomunicabilidade, loucura e redenção desenvolvidas em maior grau, com uma estrutura narrativa ambiciosa que não deixa nada a dever à categoria do romance total que Faulkner pretendia realizar.
“O Túnel” conta a história de Juan Pablo Castel, um pintor que, como o próprio afirma no começo do livro, matou sua amante Mária Iribarne. Para Sabato, o importante não é a intriga aparentemente policial, mas sim as manifestações de um espírito atormentado pela incomunicabilidade e por uma obsessão que o impossibilita de ter aquilo que os filósofos cristãos chamam de “a contemplação amorosa”. Castel escreve sua descida aos infernos como se fosse um patético adolescente que quer Mária, apenas para possuí-la como um dos detalhes de seus quadros. A imagem de um tunel que impede os contatos entre dois seres humanos, é a forma como Sabato conseguiu reproduzir a grande muralha que envolve o relacionamento homem-mulher nos dias de progresso tecnológico e utopias desvirtuadas.
Esta obsessão que persegue o autor e seus personagens, é uma espécie de sol negro, como fala Castel em um de seus lances poéticos para retratar a personalidade enigmática de Mária Iribarne. É um sol que ilumina apenas para aprofundar cada vez mais as trevas existentes na alma humana. Sabato não é um desses escritores otimistas com o destino da humanidade. Em seu livro de memórias, “Antes do fim”, ele se revela como um homem profundamente triste, carregando nas costas as perdas de seu filho Jorge Federico e de sua mulher Mathilde, mas não ressentido. Sua resignação sobre seu destino final na Terra cheira a uma melancolia portenha que não fica nada a dever aos tangos, gênero que, alías, Sabato mostra ser um fanático. Contudo, a obsessão que, volta e meia, o faz escrever sobre os mesmos personagens, apenas com nomes e estruturas diferentes, poderia levá-lo a uma encruzilhada (como de fato aconteceu): aceitar o mistério da esperança ou partir para a aceitação tola dos ideais políticos.
Sabato teve uma vida suficientemente longa para realizar os dois caminhos. O primeiro caso está exemplificado em “Sobre Heróis e Tumbas”. Na sua tentativa magistral de realizar o romance total que só James Joyce, William Faulkner e Mario Vargas Llosa conseguiram, Sabato conta num estilo claro, límpido e elegante a turbulenta história de amor entre Martín del Castillo e Alejandra Olmos, mas também conta, numa prosa alucinatória, a história de loucura de Fernando Vidal Olmos, pai de Alejandra e o descobridor da demoníaca Seita Secreta dos Cegos. Isso sem contar o episódio do coronel Lavalle que voltava para casa, apenas para ser capturado por seus inimigos e ter a cabeça decepada. O que era antes em “O Túnel” uma mera promessa, torna-se em “Sobre Heróis e Tumbas” a revelação de um talento digno de Hércules.
O narrador deste romance não hesita em perscrutar todos os níveis sociais, todos os níveis de consciência e todos os níveis de sotaque que dão vida à cidade de Buenos Aires, em polvorosa graças à ditadura de Péron. Intersseccionando romance de formação (a história entre Martín e Alejandra), romance de idéias (as meditações de Bruno, um dos amigos de Martín e de Alejandra), romance psicológico (o famoso “Relatório sobre os cegos”, de Fernando Vidal Olmos) e romance histórico (as seqüências de Lavalle se preparando para a morte inevitável), Ernesto Sabato deixa os contos de Borges literalmente no chinelo. A única coisa que os liga é justamente a cegueira ideológica, ao defender representantes de sistemas totalitários, como Péron (no caso de Borges) e Che Guevara (no caso de Sabato).
Mas isto não tira a vitalidade de “Sobre Heróis e Tumbas”, um romance que se mostra atual quarenta anos depois de sua primeira publicação. Afinal, quem pode esquecer do ciúme que corrói o jovem Martín quando percebe que nunca conseguirá compreender sua amada Alejandra? Ou então como esquecer o mistério que ronda a própria Alejandra – Quem é ela? Por quê ela é assim? O que a torna atormentada e, principalmente, qual é a sua relação com Fernando Vidal Olmos, o louco que se deixou envolver numa trama paranóica envolvendo uma seita de cegos? Não, leitor, Sabato não responde a nenhuma destas questões, e nem pretende. Sua obra é um permanente ponto de interrogação sobre outro ponto de interrogação que é a vida, e o sol negro que ilumina as sombras do espírito só pode ser ofuscado por um mistério maior – o mistério da esperança.
Para um pessimista contumaz como Sabato, o final de “Sobre Heróis e Tumbas” é um suspiro de felicidade com um travo amargo. Depois do fim trágico de seu relacionamento com Alejandra (Querem saber o que acontece? Leiam o livro, rapazes), Martín decide ir para o sul da Argentina, junto com seu amigo, o caminho Buchich, que encontrou em suas andanças pelos bares portenhos. Mas, antes, o coitado por um tormento dos diabos, em que se questiona seriamente sobre o sentido da vida e flerta com o suicídio. De uma maneira bem camusiana, Martín faz a única questão que realmente vale a pena fazer: se o mundo é este reino do Mal, onde está Deus? E se Ele existe, por que não age, por que não mostra a sua bondade? Martín resolve fazer o seguinte trato, aparentemente insano, mas nem sempre a lógica tem razão nos assuntos do espírito: se Deus não aparecer e não salvá-lo da desgraça, ele se mata sem piedade. É aqui que o mistério da esperança se torna mais nítido: por que Martín não se mata logo? Porque a esperança é justamente isso, uma força além da nossa compreensão, que nos impele a enfrentar os obstáculos do dia-a-dia com uma dignidade que só pode ser descrita como “a aventura heróica da fé”. Deus aparece para Martín depois de uma noite em que ele, bêbado e sem nenhuma noção dos atos, é encontrado por uma mãe pobre, com um filho recém-nascido, abandonada pelo marido, que apenas diz ao anti-herói de Sabato: “Há tantas coisas bonitas para se aproveitar nesta vida, niño“.
É claro que, para muitas pessoas, o mistério da esperança pode deformar-se sob a forma da busca estéril pelo idealismo político. Infelizmente, Ernesto Sabato também caiu neste truque sujo. Leiam o que ele disse sobre ninguém menos que Che Guevara, numa entrevista com Janer Cristaldo para o site Nuevo Mundo:
“Devo esclarecer, no entanto, algo que para mim é importante: sempre respeitei os comunistas que, por sua candidez ou sólida fé acreditaram no regime soviético, os que sofreram prisão e torturas, os que lutaram com boa fé por seus ideais. Por isso – fato que enalteci em dois de meus livros – admiro e continuo admirando Che Guevara, que foi acima de tudo e de seu marxismo, um grande idealista, um personagem quixotesco que, como diria Rilke, teve sua morte pessoal na selva boliviana, após ter abandonado a burocracia cubana. Um herói, e sempre temos de nos erguermos ante um herói que morre por ideais. Não até sua altura, é claro, mas também quis e continuo querendo bem até suas mortes seres como Gerardo Pisarello e Arturo Sánchez Riva, a quem dediquei um livro, e me doía saber que ele lia as coisas que escrevi sobre o horror do stalinismo. Eram pessoas de fé, que acreditavam apesar de tudo. E houve muitos que morreram sob tortura por defender essas idéias nas quais acreditaram: merecem admiração e respeito”.
Como um escritor com tamanha preocupação sobre o desconcerto do mundo, pode ter “admiração e respeito” por um assassino? There lies the rub, diria Hamlet. Esta admiração o levou a ser um fantoche do presidente Raúl Alfonsin, no famoso relatório “Informe Sabato” sobre as torturas ocorridas na ditadura peronista. Será que Sabato não sabia que Alfonsin, um socialista fabiano, seria um dos responsáveis pela zona de guerra ideológica que se tornou a Argentina nestes tempos de Cristina Kirchner? (Se alguém tem dúvidas a respeito disso, vejam o que fizeram com Vargas Llosa na última Feira do Livro.) Não, é claro que não sabia. O desconhecimento de Sabato prova como os escritores latino-americanos são patéticos em suas vidas políticas, talvez pelo fato de que literatura e política não combinam, ainda mais uma literatura exasperante como a de Sabato.
Mas é o que acontece quando se olha constantemente para o sol negro da alma humana – ele acaba tragando a possibilidade de uma consciência que se refugia na vida fácil dos ideais políticos. Nem sempre a obsessão mantém um homem íntegro, mesmo em tempos destroçados como o nosso. Na verdade, o erro de Sabato é o mesmo de seu personagem mais famoso, o pintor Juan Pablo Castel: com a tristeza das perdas embotando a “contemplação amorosa”, ele entrou em um túnel que impediu a verdadeira passagem para outros mundos, mais ricos e, por sua vez, mais pertubadores. Contudo, não devemos ficar resmungando das escolhas de uma vida que, afinal de contas, já terminou, pois quem disse que não somos capazes de cometer os mesmos erros, talvez em maior grau?
Há algumas imprecisões no texto, mas as que me parecem mais “graves” são as seguintes:
– Borges nunca apoiou Perón.
– O informe da CONADEP, coordenado por Sábato, não era sobre as torturas durante as duas presidencias de Perón, era sobre as torturas, desaparições, e mortes ocorridas durante a ditadura militar que instalou-se com o golpe de 1976, e que durou até 1983.
Impressiona que, quase dois anos depois do único comentário que o texto merecera até o momento, o autor não tenha sequer tentado demonstrar como suas fúteis opiniões sobre Borges podem eventualmente se sustentar diante da ignorante afirmaçãoo (pois que sugere que sua parca leitura deve se limitar aos contos da década de 1940) de que o argentino teria apoiado Perón.