O Conservador das Trevas Ressurge

Na semana passada, Jerry Bowyer publicou um artigo na Forbes intitulado Why Batman’sThe Dark Knight RisesIs An Instant Conservative Classic ou Por QueO Cavaleiro das Trevas Ressurgedo Batman É Um Clássico Conservador Instantâneo. No artigo, Bowyer diz que OCdTR é o exato oposto de filmes pseudorevolucionários como Clube da Luta e V de Vingança – com a diferença, é claro, de que a obra de Nolan é incomparavelmente superior. Alguns críticos americanos tentaram caracterizá-lo como liberal associando o nome do vilão (Bane) com a empresa de investimentos privados (Bain) fundada pelo candidato republicano Mitt Romney, mas tal leitura superficial não se sustenta. Basta assistir ao filme.

Graças à mentira envolvendo a morte de Harvey Dent no segundo filme da trilogia, não há mais crime em Gotham. Sem propósito na vida, Bruce Wayne (Christian Bale) se torna um milionário excêntrico e recluso à la Howard Hughes. Por conta de sua aposentadoria precoce, as Indústrias Wayne param de gerar lucro – e sem lucro não há também filantropia. Bruce recebe, então, a visita do policial Blake (Joseph Gordon-Levitt) que lhe informa da morte de um adolescente cujo antigo orfanato deixou de receber auxílio das Indústrias Wayne. Sua morte, contudo, sugere um cenário ainda mais sinistro, pois vários jovens forçados a abandonar suas instituições passam a viver nos esgotos de Gotham sob os comandos de Bane (Tom Hardy).

De início, o passado de Bane é obscuro. O que sabemos com certeza, e logo nos primeiros minutos do filme, é que seus seguidores estão mais do que dispostos a morrer pelo bando. Seu discurso é claramente revolucionário; fala em libertar os oprimidos dos opressores e quer que o povo tome o controle da cidade à força. Selina Kyle (Anne Hathaway) é uma ladra de joias que parece pensar de forma parecida. Como Robin Hood, ela só rouba daqueles que considera terem demais e aguarda pelo momento em que os que têm pouco não suportem mais tal injustiça. Mas quando a revolução de Bane realmente começa, ela se depara com o verdadeiro terror do que antes lhe parecia tão justo e belo.

 Não vou descrever o que acontece quando Bane toma o controle, mas basta pensar nos horrores das revoluções na França, na Rússia, na China, etc.. Se a fonte principal de O Cavaleiro das Trevas é O Homem Que Matou Facínora (The Man Who Shot Liberty Valance, filme de John Ford com John Wayne e James Stewart), a fonte de OCdTR é Um Conto de Duas Cidades de Charles Dickens, que trata da violência indiscriminada da Revolução Francesa. Se o segundo filme da trilogia já possuía ressonâncias conservadoras – Batman é, afinal, John Wayne – o terceiro não deixa dúvidas sobre o teor ideológico por trás da obra. De fato, há vezes em que tanto os críticos profissionais quanto os amadores acabam forçando interpretações que simplesmente não se relacionam com as propriedades de uma determinada obra, mas perceber a referência de Dickens em OCdTR não é um delírio; afinal, uma citação do livro é usada em um momento chave e um dos roteiristas, irmão de Nolan, pediu ao diretor que lesse Um Conto de Duas Cidades antes de fazer o filme.

Ainda no artigo da Forbes, Bowyer fala da origem da distinção entre a esquerda e a direita como aqueles que apoiavam ou se opunham à Revolução Francesa; os que eram em favor da antiga ordem se sentavam à direita da assembleia e aqueles que eram em favor da revolução se sentavam à esquerda. As ações de Bane tentam estabelecer uma justiça de forma violenta e injusta por essência. Não é à toa que um desequilibrado mental (uma surpresa) se senta no chamado tribunal do povo e condena a todos com base apenas na classe social. Na verdade, na revolução de Gotham, o povo não detém poder algum, pois é Bane sozinho quem decide o destino da cidade, enquanto todos os outros são meros acessórios de sua própria vontade – trata-se obviamente de um típico tirano de esquerda, que diz libertar os oprimidos mas só oprime ainda mais.

 A personagem de Marion Cotillard, como uma Marina Silva muito mais bonita, cuida de retratar a facção política que diz prezar, acima de tudo, a ecologia, o mundo sustentável e as boas intenções em geral. Mas é melhor não falar muito sobre ela.

Outro ideal claramente conservador em OCdTR é o de que um ambiente ou condição não podem nunca determinar o caráter ou destino de um homem. Ele pode sim, por conta própria (mas não sem esforço) se libertar e tomar um rumo diferente dos demais – pode, enfim, ressurgir. Não há tema mais querido na sociedade americana, construída de imigrantes e sobreviventes que conseguiram superar adversidades tremendas. OCdTR tenta relembrar aos americanos de que, mesmo com a crise econômica, isso ainda é possível.

Dos três filmes, o último é o menos falho e também o mais bonito. Nolan ainda sofre um pouco quando precisa contar uma piada. Quase todas as vezes que tenta ser espertinho ou engraçado, falha. Os momentos dramáticos são os melhores. Em especial, a interpretação tocante de Michael Caine. Alguns críticos mais empolgados já falaram de uma possível indicação de OCdTR ao Oscar de Melhor Filme, o que eu acho um exagero. Michael Caine, contudo, mereceria sim ao menos uma indicação de Melhor Ator Coadjuvante. Sua atuação não é assombrosa como a de Heath Ledger interpretando o Coringa, mas é justamente o mordomo Alfred por quem mais sentimos, pois sua aflição em querer proteger o último membro da família Wayne é praticamente palpável.

 Quase todas as críticas de OCdTR tiveram de passar pela via crucis de comparar todos os filmes, todas as versões diferentes dos personagens, etc.; vou me limitar a dizer que o Bane de Hardy, como vilão, é muito mais limitado e menos marcante do que o Coringa de Ledger, cujo desejo doentio de autodestruição se relaciona com uma maldade que é muito mais pura e absoluta. Bane é tão bombado que o seu visual de lutador de jiu-jitsu, apesar de assustador, não se compara com o total desdém do Coringa pela vida em geral, inclusive a própria. Afinal, um corpo tão forte revela, no mínimo, uma preocupação em se defender e sobreviver, enquanto o Coringa aparenta uma ausência total de medo, uma loucura tão plena que nem se importa com a própria integridade – o que acaba causando um terror muito mais profundo. Tom Hardy é um bom ator mas, com o rosto coberto, não é capaz de cativar utilizando apenas os olhos ou a voz digitalmente alterada. A Mulher-Gato de Hathaway não é melhor ou pior do que a de Michelle Pfeiffer, é apenas diferente; apresenta uma nova complexidade à personagem que poderia muito bem ser explorada em um outro filme.

Com OCdTR, Christian Bale se despede, em tese, do papel de Batman. No tarot, a carta da morte nem sempre representa um fim, mas também um recomeço. No filme, esta temática é constante – o Bruce Wayne que precisa retomar a vida pessoal, profissional e também vestir novamente a armadura de Cavaleiro das Trevas – e muito mais. Aquilo que realmente diferencia a direita da esquerda é que os conservadores nunca recomeçam do zero, pois levam em consideração toda uma história que os precede.

24 comentários em “O Conservador das Trevas Ressurge

  1. Caros,

    Os textos sobre cinema estão excessivos. Não sabia que a Dicta tinha virado uma revista de cinema. É cinema todo dia e toda hora. Não tem nada mais importante do que isso? Aposto que tem.
    A srta. Ieda é inteligente e sagaz, mas o assunto, me desculpem a franqueza, já está dando no saco. Acho que vocês podem mais.
    Cordialmente,
    Leopoldo Ramos.

  2. Caro Leopoldo,

    A situação se deve ao fato de que os outros colunistas — que são editores e organizadores da Dicta — estão sobrecarregados com o lançamento da Dicta impressa. De qualquer forma, temos a sua crítica em conta e agradecemos o seu comentário.

    Um abraço.

  3. Concordo com o sr. Leopoldo. Por coincidência entrei para fazer um comentário com uma crítica da mesma natureza. Nada contra os textos da Ieda, que são de boa qualidade, mas esta predominância de cinema em um blog como a Dicta tem alterado o perfil da publicação. Sinto falta dos textos de outros autores (a propósito, o Martim não vai postar mais por aqui?) e de um debate mais amplo. A temática está tão previsível que já diminuí minha freqüencia por aqui. Esta dinâmica de publicação, em minha opinião deveria ser revista. Espero que os senhores, incluindo a Ieda, considerem a boa fé deste comentário. Abs.

  4. Caros,

    Entendo a crítica, mas não é verdade que “é cinema todo dia, toda hora.” Em geral, eu tenho um texto por semana, às sexta-feiras. Um dos últimos textos nem foi sobre cinema, foi sobre Nelson Rodrigues (e o da semana passada também não foi bem uma resenha de filme.) De fato, seria mais interessante se toda semana pudéssemos abordar arte, música, literatura, filosofia E cinema, mas os colaboradores estão sobrecarregados com o lançamento da Dicta.

  5. Concordo com o LM, também. Mas o Martim deve ter bons motivos para ter sumido daqui. Só lamento que, em seu blog, ele não escreva com mais frequência. Ieda, gostei do seu texto. Simples, porém abordou os principais pontos do filme. Eu até gostaria de um texto mais longo, com mais opiniões pessoais, detalhes e considerações sobre as analogias do filme. Mas, tratando-se de uma resenha sobre cinema para uma revista de internet, acho que está bem satisfatória.

  6. A Ieda está correta. O problema não é excesso de textos sobre cinema, e sim falta de textos sobre os outros assuntos, de outros colaboradores. Esperemos que com o lançamento da impressa o pessoal possa vir acompanhá-la no blog.

  7. Se os colaboradores estão sobre carregados, gostaria de saber sobre as possibilidades de aceitarem novos colaboradores.

  8. Leonardo, isso não é comigo, você teria de falar com o Joel Pinheiro. Mas creio eu (o editor pode corrigir meu comentário se eu estiver errada) que é possível sim, ser um colaborador ou um simples convidado. Bastaria (novamente, ACHO) enviar algum texto interessante que se encaixe com a linha editorial da Dicta.

  9. Caro Leonardo (e demais interessados), apreciamos muito a contribuição de leitores! Caso tenha um artigo que gostaria de enviar para nós, por favor o envie para joelpinheiro777 (at) gmail.com

  10. Não vou questionar a relevância de rotular o filme como conservador, embora a maior parte do texto (à parte os parágrafos de avaliação do produto) só se preocupe com o conteúdo do filme na medida em que ele supostamente afirma certos valores políticos. Mas chamo a atenção para alguns pontos da argumentação.
    O caráter revolucionário do grupo de Bane não basta para fazer dele uma representação da esquerda. O exemplo da Revolução Francesa, uma revolução burguesa, é transparente: valores como laissez-faire ou Estado Mínimo obviamente se alinhariam à esquerda na tal Assembleia Legislativa.
    Também não ficou claro como o não-determinismo social é um pressuposto conservador.
    “Aquilo que realmente diferencia a direita da esquerda é que os conservadores nunca recomeçam do zero, pois levam em consideração toda uma história que os precede” — seria Marx, pra ficar no ícone, uma exceção então?

  11. Discordo, não vejo este filme do batman como conservador , ao contrario existem ali várias criticas aos conservadores como ao mostrar a vilã principal do filme (talia) como uma vilã energetica, uma alusão a que os grandes vilões vem sempre da área energetica(no caso do mundo o petroleo, maior fonte de energia existente).

    E o carater revolucionário do bane não existe sozinho, era a talia/miranda por detras de tudo, a vilã energetica, portanto ai mais uma alusão que os “revolucionarios” sao sempre patrocinados por interesses de elite, o que é verdade.

    Em relação ao curinga/bane, risos isto é uma comparação ridicula, o curinga é o maior vilão de todas as HQs de todos os personagens, o bane é um personagem em ascenção no universo do batman(que tem a maior galeria de vilões existente).

  12. Marcelo, não é “só” o caráter revolucionário, mas o discurso dele. Ele fala em liberar os oprimidos dos opressores, dar o poder ao povo, etc, etc..
    No filme, a justificativa da existência do Bane é ele ter “nascido na escuridão”, i.e., injustiçado e maltratado na prisão. O Batman vai lá (***spoiler***) consegue sair da prisão e ainda assim adotar um rumo contrário ao de Bane. Mesmo que isso não estivesse no filme, acho sim que o não-determinismo social é um pressuposto conservador. Faz parte do pensamento marxista acreditar que não existe o tal do self-made man, que o indivíduo é sempre produto do meio em que vive (ou seja, que não existe indivíduo, existe massa).
    Sua última pergunta eu simplesmente não entendi, me desculpe.

  13. Só faltou falar da bilionária que estava por traz de Bane, que faz lembrar a historiografia de Antony Sutton.

  14. Contraponto.

    Olá Ieda,

    Sou leitor antigo (se é que se pode dizer isso…) da revista, e hoje só apareço para ler seus ensaios sobre cinema, de longe o que tem de melhor por aqui.

    Você os publica em outro lugar, um site pessoal – blog – por exemplo?

    Quanto ao conteúdo mesmo do ensaio, no ponto.

    Grande abraço,

    Agnaldo.

    PS: Aqueles filmes antigos todos que você cita, em um outro artigo, foram alugados?

  15. Não, o Bane não é um revolucionário de esquerda, ele é um agente do caos, ele é um niilista. É tão evidente que ele usa o discurso do “povo oprimido” como apenas um meio para o seu objetivo, que é destruir Gotham, que não sei como pode ter escapado à autora. Entendo a superfície das associações (um tribunal do “povo”, revolução francfesa etc), mas tudo isso só serve ao embate real de valores no filme: o niilismo contra os anti-niilistas.

  16. Vinícius, eu não falei justamente para não estragar a surpresa do filme. Por isso que disse: “A personagem de Marion Cotillard, como uma Marina Silva muito mais bonita, cuida de retratar a facção política que diz prezar, acima de tudo, a ecologia, o mundo sustentável e as boas intenções em geral. Mas é melhor não falar muito sobre ela.”

    Aliás, Bc, ela não é “energética”, ela não tem nada a ver com petróleo, ela é ecológica, toda preocupada com sustentabilidade, etc..

    Francisco, o Tale of Two Cities não é sobre niilismo. Niilista é o Coringa, não o Bane.

    Agnaldo, eu tenho um blog pessoal, mas não tenho escrito muito ultimamente.

  17. Ieda, sim, eu entendi quando li seu texto que a omissão era para não estragar a surpresa do final. Mas achei que a esta altura a maioria dos leitores já deveria ter se inteirado do final do filme. Mas acho que o ecologismo da personagem era só pretexto para realizar os sonhos apocalípticos do pai, não? No mais, bela resenha.

  18. Vinícius, claro que era uma fachada, mas o que eu quero dizer é que talvez seja uma fachada também quando alguém, no mundo real, se diz preocupado com a ecologia, a sustentabilidade, etc.. Não digo que tenham planos apocalípticos (e acho também que alguns eco-chatos são ingenuamente sinceros quando se dizem preocupados com a natureza), mas é um discurso muito bonito, muito popular, que eu acho bom desconfiar – afinal, de boas intenções o inferno está cheio.

  19. Excelente resenha, Ieda.

    Em se tratando de um filme-mito, é um dos melhores que já vi. Aliás, um dos mais politizados filmes dos últimos anos. Os que vem semear destruição em Gotham City vem do oriente e seu discurso é o mesmo discurso anarco-socialista entranhado em nossa sociedade, travestido de guerra aos valores ocidentais.

    Um destaque é que um dos núcleos da trama é uma turma de garotos cuidados num orfanado católico, dirigido por um padre íntegro. São eles que anunciam o caminho da salvação. E Batman é um tipo de Messias, que dá sua vida em resgate da cidade.

    Outro detalhe é que a “pirâmide” onde ocorre o julgamento é uma paródia dos tribunais do povo comunistas (e nazista também). E o juiz é um personagem da mitologia de Batman que encarna a intelectualidade autônoma (sem referência à transcendência), levada às últimas consequências, a loucura travestida de racionalismo, a serviço da desconstrução da sociedade e de seus pilares.

    Outra sacada, para quem conhece as Graphic Novels clássicas é procurar referências a “A queda do morcego”, “O cavaleiro das trevas”, “O filho do demônio”, etc.

    Fechou a trilogia com chave de ouro.

    Abs,
    Franklin

  20. A análise da senhorita Ieda não foi o que eu esperava (esperava bem mais), mas ainda sim é boa, o título está perfeito. Creio que o sr. Martim Vasques deva mandar uma análise (e aguardo por ela!) daqui a uns meses.

    O link para as análises do Jerry Bowyer são muito bons. Falando nisto, as análises da parte conservadora da internet (uns 3 ou 4 sites/blogs no Brasil e algumas dúzias nos EUA) estão aclamando (e com razão) este filme. É um filme conservador, ainda mais que o filme anterior, que é um filme indiscutivelmente nihilista. Neste filme você realmente torce pelo Batman.

    Recomendo a todos os colegas conservadores/direitistas que assistam ao filme, se possível em IMAX (foi o primeiro filme que assisti com esta ‘tecnologia’).

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