Os espelhos secretos

“Mas o tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo, uma flor, um pássaro, uma dama, um castelo, um túmulo. Também se pode abordar nada. Nada em cima de invisível é a mais sutil obra deste mundo, e acaso do outro”.

Machado de Assis, “Esaú e Jacó”

Todas as tentativas de querer compreender o enigma Machado de Assis resultam em becos-sem-saída, porque sempre partem de princípios limitadores, seja para o lado da religião como para o lado da mesquinha análise social. Como todo bom enigma, Machado não admite interpretações limitadoras. Há cerca de dez anos, por exemplo, tivemos Michael Wood, professor na Universidade de Princeton, que escreveu sobre o Bruxo de Cosme Velho no prestigiado New York Review of Books com um ensaio chamado “A master among ruins” (Um mestre entre as ruínas). A intelligentsia brasileira logo se apressou, toda animada, em dizer que o ensaio de Wood seria uma porta aberta para que o mundo – no caso, os EUA – pudesse começar a ler Machado de Assis. Se a América tiver que ler Machado, que não seja pelas mãos do professor Wood – na verdade, um repositório de análises estruturalistas e marxistóides de Roberto Schwartz et caterva. Seu ensaio sequer toca na questão principal da obra machadiana – a análise aguda dos meandros da alma humana – para ficar na superfície da sociedade escravocrata, na qual os esquerdosos querem a todo custo que Machado se torne o primeiro denunciador de um “sistema tão cruel e impiedoso”.

Este ensaio será também uma interpretação e, como já se disse, ela também estará sujeita ao erro e ao beco-sem-saída. Contudo, seu método parte de um princípio muito simples: o de que Machado de Assis foi o primeiro escritor em nossa literatura a compreender a linguagem do mundo e do ser humano como uma linguagem simbólica, na qual se reflete na alma do brasileiro como a experiência concreta de uma determinada ordem histórica que terá sérias conseqüências para o futuro do país. Se estamos dizendo que Machado foi o primeiro, isso também significa que ele foi o primeiro de uma tradição que percorre como um segredo muito bem guardado na história da literatura brasileira, mas que não deixa nada a dever à literatura mundial, e que tem como característica principal a progressiva abertura da alma brasileira aos mistérios cristãos, mesmo que esta abertura seja impedida por sucessivos obstáculos, em sua maioria de origem ideológica. Os sucessores de Machado de Assis seriam, assim, Guimarães Rosa (pelo fato de que seus personagens se aproximam na fronteira de um cristianismo primitivo), Osman Lins (no qual a eternidade amparada pela encarnação do Verbo é procurada com um intenso desespero) e, por último, Bruno Tolentino, em que suas obras “O Mundo Como Idéia” e “A Imitação do Amanhecer” fazem uma síntese ímpar da poesia de Cecília Meirelles, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Jorge de Lima, além de, claro, o próprio Machado, em especial, o poeta de “Ocidentais”.

Entretanto, não podemos nos apressar e afirmar que Machado de Assis seria um escritor cristão, mas sim um escritor que mostrou, com uma ambigüidade requintada, a falta de uma vida espiritual sincera no ser humano e que acarreta, por conseqüência, a completa ausência de sentido na própria existência que o indivíduo leva. Claro que isso implica numa reflexão sobre os rumos que o Brasil caminha, uma vez que uma nação é composta por indivíduos e, por mais que os politicamente corretos possam odiar essa afirmação, ela é feita pela elite intelectual e política, justamente o campo de análise que Machado escolheu para seus romances e contos. Esta escolha não se deve à insinuação maliciosa de que Machado gostaria de fazer parte dessa classe social e para isso usou a literatura, superando os preconceitos de ser negro, gago, míope e epiléptico. Ninguém quer negar estas limitações – aliás, elas deveriam ser usadas para reafirmar o poder do indivíduo de querer ultrapassar essas dificuldades e vencê-las com bravura e dignidade -, mas Machado pode ser visto como um aproveitador, um mero arrivista igual a um Cristiano Palha, quando acreditamos que ele era um espírito superior, que transcendeu essas picuínhas e se tornou o verdadeiro espanto da cultura brasileira e, quiçá, mundial.

Vários críticos estrangeiros ficam assustados depois que lêem Machado de Assis porque ninguém fez o que ele fez em nenhum momento da literatura universal. De uma certa forma, Machado antecipou todas as inovações formais que fariam a fama do modernismo com trinta anos de antecedência. Mas ele também faz algo que poucos tiveram coragem de realizar no final do século XIX: um mergulho sem precedentes na alma humana, cavando suas sombras e sua podridão, perscrutando com um estilo cristalino e malicioso a nossa consciência como um porão que guarda uma surpresa ou um mistério a cada página virada. Neste época, nem Flaubert, conhecido pelo seu preciosismo, ou Eça de Queiroz (de quem Machado fez sérias críticas ao seu romance “O Primo Basílio”), conseguiram igualar o feito. Machado não apenas prenunciou Freud; ele é melhor do que Freud em todos os aspectos e se o doutor vienense tivesse lido algo do brasileiro, certamente mudaria vários aspectos de sua destrambelhada teoria.

A pergunta que temos é a seguinte: Será que Machado sabia de sua importância? Ora, parafraseando Carpeaux quando este discorreu sobre Bach, se Machado de Assis não sabia o que estava fazendo com sua literatura, então nós próprios não sabemos o que fazemos da nossa vida (talvez aí esteja um motivo para as recentes trapalhadas nacionais). Machado foi como um Heráclito que, ao mergulhar na alma com tamanha ousadia, recuperou a universalidade que o Brasil precisava para formar uma literatura de rigor artístico e verdadeira preocupação metafísica. É óbvio que seu mergulho também implica numa série de mal-entendidos, próprios de alguém que sabia que deveria se expressar mais por pistas e elipses, como é o caso da literatura que tem por objeto o ser humano, mas sem ele não seríamos nada. Pode ser um ato de exceção (no Brasil, todos os grandes atos são atos de exceção), desde que se perceba que foi uma exceção que nos afeta até hoje.

Elias Canneti decifrou a exata medida do artista num ensaio que escreveu em comemoração a Herrmann Broch, o autor de “A Morte de Virgílio”. Canneti tinha a plena noção de que um artista nunca fica acima de seu tempo e sua obra seria um espelho secreto dele, justamente para superá-lo. Para ele, “o verdadeiro poeta está à mercê de seu tempo – sujeito a ele, servil, é dele o mais humilde criado. Está atado a seu tempo por uma corrente que, curta e indestrutível, o prende com a máxima firmeza. Sua falta de liberdade seria, assim, tão grande que ele não poderia transportar-se a nenhum outro lugar (…). O poeta é o cão de seu tempo. Como um cão, corre-lhe os domínios, detendo-se aqui e acolá; arbitrário em aparência e, no entanto, incansável; sensível aos assobios do superior, mas nem sempre; pronto para ser instigado, mais difícil de ser contido, é impelido por uma depravação inexplicável: em tudo mete o focinho úmido, nada deixando de lado; volta atrás, recomeça: é insaciável” (“A Consciência das Palavras”, pág. 15-16).

Esta atitude de inquietude é também a de Machado de Assis. O símbolo do cão, como veremos, não é aleatório. Machado era um sujeito atado ao seu tempo, mas ele tinha o poder de atravessá-lo graças à força das palavras. A famosa fase de transição que se dá quando ele se transforma de um escritor com influências românticas (em especial, a de José de Alencar) para um outro que os críticos chamam, na falta de nome melhor, de “realista”, ocorre num momento peculiar da história brasileira, marcado pelas contradições culturais. Como se não bastasse, o próprio Machado se encontra em uma fase literalmente negra de sua vida: ele fica parcialmente cego devido à uma irritação nos olhos e tem um colapso nervoso. A cura se dá no único lugar em que ele foi além das ruas do Rio de Janeiro, na cidade de Friburgo, com sua esposa, Carolina, sempre como fiel companheira. Afastado de suas funções burocráticas no Ministério da Agricultura, Machado já apresentava sinais de uma mudança interior com sua novela “O Alienista” e os poemas de “Ocidentais”. Já estavam presentes o ofuscamento de um ceticismo cortante, nitidamente espelhado em suas leituras recentes de Laurence Sterne, Schopenhauer e no sempre atual livro do Eclesiastes.

A influência do Eclesiastes nunca foi muito reparada pelos críticos brasileiros, exceto Gustavo Corção e, em menor grau, Alfredo Bosi, mas é fundamental para se entender o mergulho que Machado daria em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Supõe-se que o Eclesiastes foi escrito pelo rei Salomão que, no fim da vida, desiludido, reflete sobre a vaidade humana e o efeito cruel do tempo sobre as coisas do mundo, sendo que ele próprio teria sido uma de suas vítimas. Se retirarmos os aspectos míticos do texto, teremos em mãos um retrato de um sujeito que mostra como a alma de um povo – no caso, Israel – perdeu completamente o sentido da vida. O autor de Eclesiastes representa a tristeza do povo eleito porque, naquele momento, ele é o único em que sua alma se projeta sobre a ordem da sociedade em que vive. Escritor e mundo são um todo indissociável, formando um “salto no ser” (leap in being, na terminologia de Eric Voegelin) que termina sendo uma descida às profundezas da alma.

Na evolução da consciência brasileira – apoiada sobre princípios judaicos-cristãos, por mais que o século XIX quisesse transformá-los em princípios franceses-iluministas -, Machado de Assis é uma mistura de Eclesiastes com Heráclito. Sua obra completa mostra todos os processos que surgem antes e depois do “salto no ser” que acontecerá no espírito do brasileiro. Sem dúvida, a fase romântica exibe uma imaturidade típica de quem é descípulo de José de Alencar, em que uma nacionalidade fajuta vem de moldes europeus ficcionais, como a donzela e o cavaleiro da Idade Média (a prova disso é “Iracema” e “O Guarani”). Ele apenas toca a superfície e sequer tenta mexer com o problema de uma realidade além dos preceitos literários.

As leituras de Schopenhauer e Laurence Sterne colaboram na questão da forma e do estilo, em especial em aprender a escrever o ato mais monstruoso com a linguagem mais refinada, algo que o primeiro tinha um dom sem comparação (Montaigne também tem isso, mas em menor grau, e não é à toa que Machado lia ambos), emoldurado numa estrutura narrativa iconoclasta, rebelde ao extremo, algo que Sterne foi de uma ajuda imensa. Entretanto, Machado não cometeu os erros de seu passado recente, em que ficou aprisionado pelo espectro de José de Alencar, utilizando-se das idéias de Schopenhauer e Sterne para subvertê-las e depois torná-las suas. Agora, a única coisa que o atava era o seu tempo – e o seu tempo não apresentava qualquer evolução em termos de um progresso do espírito.

Uma das provas está no relato das reuniões da Câmara dos Deputados, como nos mostra Sérgio Buarque de Holanda no seu livro “Do Império à República”, em que o investimento na educação do brasileiro era estruturado de forma assimétrica: “Em 1869, o senador Silveira Lobo lembrava que havia apenas 4.800 alunos primários para uma população estimada em meio milhão de pessoas; na década seguinte a situação muda pouco, e em 1882, lembrará Rui Barbosa que os gastos com a educação correspondia a menos de 2% do orçamento em relação aos 20% gastos nas forças armadas”. A Abolição também não foi a grande revolução que todos esperavam, catalisando a queda de um regime monárquico que já estava podre há algum tempo e o ambiente intelectual estava começando a ficar envenenado pelas idéias de Augusto Comte, Karl Marx, com um toque de pessimismo dado por Herr Friedrich Nietzsche.

Se Machado sabia disso tudo? Sua obra demonstra que sim, mas que sua resposta demorou a ser articulada dentro de uma linguagem própria. A cegueira passageira foi um susto em que ele finalmente se deparou com a escuridão do fim – e esta escuridão foi essencial para a descida que iria realizar. Em seu último livro de poemas, “Ocidentais”, Machado se insere na linhagem de Edgar Allan Poe e de Dante Alighieri ao traduzir “O Corvo” e o Canto XXV do Inferno da “Divina Comédia”, uma vez que ambas as peças mostram personagens que empreendem descidas ao inferno, seja de forma metafórica ou de forma real. Não se pode esquecer do detalhe que, no Canto XXV, Machado escolheu exatamente o trecho em que Dante se depara com dois sujeitos que mudam de forma, enquanto uma serpente os engole com uma chama lancinante. Esta mutabilidade da natureza humana é fundamental para entender os romances da segunda fase, em especial “Dom Casmurro”, no qual o leitor se pergunta como um menino tão meigo como Bentinho pode ter-se tornado o amargo e recluso Bento Santiago. “Ocidentais” começa com um poema sobre Prometeu – o símbolo máximo da revolta contra os deuses – e termina com o poeta (seria o próprio Machado ou um eu-lírico?) encontrando, no alto de uma montanha, os personagens Ariel (o espírito bom) e Caliban (o espírito demoníaco) de “A Tempestade”, de Shakespeare:

No Alto

O poeta chegara ao alto da montanha,
E quando ia a descer a vertente do oeste,
Viu uma coisa estranha,
Uma figura má.

Então, volvendo o olhar ao sutil, ao celeste,
Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha,
Num tom medroso e agreste
Pergunta o que será.

Como se perde no ar um som festivo e doce,
Ou bem como se fosse
Um pensamento vão,

Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta.
Para descer a encosta
O outro estendeu-lhe a mão.

Reparem que no poema não há livre-arbítrio do poeta na hora de escolher a mão de Caliban. Quem o abandona é justamente o espírito bom, Ariel. O poema mostra claramente as forças que estavam em jogo na alma de Machado de Assis: de um lado, a ordem e a harmonia que, subitamente, recusa o poeta, abandonando-o ao deus-dará, a ninguém menos que o diabo. A danação é completa e ela ocorre porque nunca houve nenhuma chance de eternidade para a vida da alma brasileira. Claro que a questão não aparecerá dessa forma tão simplória e canhestra: seus tons de cinza se aprofundarão cada vez mais, à medida que a descida se aproxima do seu único fim, que não é nem a morte em si, mas sim a morte na própria vida.

Este é o tema verdadeiro de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”: o autor só pode contar a sua vida durante a sua morte porque sua vida foi a morte em seu grau mais refinado. O primeiro grande romance brasileiro, escrito em 1880 e publicado no ano seguinte, cheira mesmo ao “primeiro verme” no qual o autor defunto dedicou a sua obra. Falta de sentido na vida é eufemismo perto da devastação espiritual que Machado mostra em “Memórias Póstumas”. Brás Cubas é um verme por si só e sua existência está tão defunta que ele nem consegue compreender os pequenos sinais que a redenção lhe envia, como a coxa Eugênia ou então o delírio do hipopótamo.

Vamos nos ater um pouco a este episódio. Ele acontece no capítulo VII, chamado providencialmente de “O Delírio”. Aqui, Brás Cubas se encontra nas últimas, depois de ter alucinado com idéias fixas em torno de um emplastro que curaria todos os achaques do corpo. Na cama, imagina a tomar a figura de um mandarim, depois a de um exemplar da “Suma Teológica”, se vê montado em cima de um hipopótamo que o arrasta até o início dos tempos, que não é com Adão e Eva, mas muito significativamente com a deusa Pandora, um “vulto imenso, fitando-me com os olhos rutilantes como o sol”, que se afirma desta maneira: “Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga”. Esta declaração espanta Brás Cubas: o absurdo da existência humana aparece à sua frente em toda a sua plenitude – e, logicamente, ele sequer quer encontrar um sentido neste absurdo. Machado faz um jogo arriscado com o leitor, em que ele dá o tema central do livro logo no começo da história (na verdade, é no fim), despistando o verdadeiro significado e dando uma série de pistas falsas, entre elas a de acreditar que o delírio em questão é apenas mais um delírio de moribundo. Claro que não é: como investigador da linguagem simbólica que se apresenta na experiência humana, a cena com Pandora é uma manifestação do espírito confuso de Brás Cubas que tenta, em seus últimos momentos de vida, lutar por alguma salvação. No entanto, a alma está tão nublada pela “voluptuosidade do nada” que foi sua vida que o próprio Brás Cubas acredita que está sendo uma vítima dos devaneios da razão, como prova o capítulo seguinte, “Razão Contra Sandice”, em que se registra um curioso diálogo entre estes pólos da consciência humana:

“Já o leitor compreendeu que era a Razão que voltava à casa, e convidava a Sandice a sair (…) No nosso caso, houve quase um distúrbio à porta do meu cerébro, porque a adventícia não queria entregar a casa, e a dona não cedia a intenção de tomar o que era seu. Afinal, a Sandice já se contentava com um cantinho no sótão.

– Não, senhora, replicou a Razão, estou cansada de lhe ceder sótãos, cansada e experimentada, o que você quer é passar mansamente do sótão à sala de jantar, daí à de visitas e ao resto.

– Está bem, deixe-me ficar algum tempo mais, estou na pista de um mistério…

– Que mistério?

– De dois, emendou a Sandice; o da vida e o da morte; peço-lhe só uns dez minutos.

A Razão pôs-se a rir.

– Hás de ser sempre a mesma coisa… sempre a mesma coisa… sempre a mesma coisa…

E, dizendo isto, travou-lhe dos pulsos e arrastou-a para fora; depois entrou e fechou. A Sandice ainda gemeu algumas súplicas, grunhiu algumas zangas; mas desenganou-se depressa, deitou a língua de fora, em ar de surriada, e foi andando…”

O mistério da vida e da morte que deixou Brás Cubas assustado ao se deparar com Pandora se fechou no momento em que a Sandice deu lugar à Razão. E a cada página das “Memórias Póstumas”, as portas do sentido da vida vão se fechando cada vez mais para o protagonista. Machado faz uma crítica ácida das pessoas que acreditam no deus da Razão e que, a partir desta crença absurda, fazem as escolhas que aparecem pela frente através de critérios estúpidos, como é o caso de Eugênia, a coxa, e a borboleta preta. Brás Cubas não percebe que, apesar de sua deficiência, Eugênia pode ser a mulher que lhe dará alguma luz no mundo medíocre da sociedade carioca (1). É tocante o modo como Eugênia aceita com a nobreza da resignação, a recusa de Brás Cubas a seus flertes – prova que nem sempre as mulheres em Machado são manipuladoras ou interesseiras. Com isso, Cubas prefere os prazeres fáceis de uma Marcela ou o adúlterio com Vírgilia, tudo para amenizar cada vez mais a ansiedade do mistério que somente lhe será revelado na hora da morte. Mas aí será tarde demais.

A obsessão pelo racionalismo é um mal que atingiu a cultura brasileira e que Machado capta com perfeição na figura de Quincas Borba, o mendigo alucinado que cria a filosofia do Humanitismo, uma paródia machadiana das obras de Voltaire e Comte, com pitadas de Schopenhauer. O Humanitismo é exposto em breves linhas nas “Memórias Póstumas”, mas será fundamental para a degeneração de Brás Cubas. Amargurado pelo fracasso de seu romance com Virgília – que se revela como uma arrivista de quinta categoria -, Cubas se dedica aos estudos do Humanitismo, promovendo a doutrina de Quincas Borba como se fosse a grande revelação da humanidade. Aos poucos, Quincas Borba fica louco, mesmo com o amigo negando o diagnóstico dos médicos a todo custo. O filósofo acaba morrendo, na crença insana de que seu Humanitismo é a prova do progresso humano. Machado não deixa pedra sobre pedra nesta sátira de todas as doutrinas pseudo-filosóficas que fizeram a fama do século XIX. Ele antecipou a esterilidade destes movimentos que caem na vala comum das ideologias que deformam a realidade, e não é uma mera coincidência que Brás Cubas também caia ladeira abaixo na montanha da vida, ficando com a idéia fixa do emplastro que solucionará as doenças do mundo, da gripe à varíola, e, ao fazer a súmula das súmulas, decidir que a melhor coisa que aconteceu durante sua estada na Terra foi a de não deixar filhos e não transmitir a ninguém o legado da miséria humana. O desejo de imortalidade através da procriação e da perpetuação da raça – elemento crucial para a permanência do amor, segundo Platão em “O Banquete” – é visto como uma maldição, talvez pelo fato de que este mundo seja um paraíso invertido, onde cada flor que desabrocha será destruída pela podridão ao seu redor. Não há espaço para encontrar um sentido para a vida, se a vida é feita de desgraça e absurdos. Brás Cubas não consegue compreender a ambigüidade que é a existência, que “a natureza é mãe e inimiga”, que Deus cria e destrói e que a Razão é o princípio da loucura.

Contudo, o mundo abandonado por Ariel é ampliado na forma de um painel ambicioso em “Quincas Borba”, lançado dez anos depois de “Memórias Póstumas”. A descida nas trevas da alma será agora refletida na vida social e política do Império, ainda que Machado não perca o aspecto psicológico de cada personagem. Agora, o geral e o particular se articulam num todo harmonioso, em que o narrador onisciente e em terceira pessoa brinca de Deus, justamente para mostrar pessoas que sequer se lembram de algum Deus – exceto se Ele estiver em algum interesse pecuniário. O fantasma de Quincas Borba assombra a vida do futuro espectro que será Rubião, um mineiro de Barbacena que, depois de receber uma herança inusitada do mendigo-filósofo por ter cuidado dele em seus derradeiros momentos de vida, num gesto solidário de amizade. Se Balzac disse que por trás de toda fortuna havia um crime, para Machado (o anti-Balzac por excelência) as vantagens de toda a fortuna só trazem desgraça – a não ser que você tenha delírios como Napoleão III. É o que acontece com o nouveau-riche Rubião que, ao ir para a Corte carioca, encontra com um casal de oportunistas, Cristiano e Sofia Palha. Sofia é a homenagem exata que Machdo criou para a famosa frase de Hamlet – “Frailty, thy name is woman”. Por baixo da aparência frágil de Sofia, esconde-se uma futilidade em relação às coisas da vida que parece uma versão de saias do niilismo voluptuoso de Brás Cubas. A descrição de seus braços – marca registrada do erotismo das “heroínas” de Machado – são equivalentes às patéticas declamações que um apaixonado Rubião faz a uma Sofia espertalhona, mas covarde, que sequer tem a ousadia de ter um adultério de verdade, seja com o lunático de Barbacena ou com o superficial Carlos Maria.

O que realmente surpreende em “Quincas Borba” é a carpintaria do livro como romance e o modo revolucionário com que Machado usa o narrador em terceira pessoa. As cenas são descritas como se o olho do narrador fosse uma câmera que perscruta desde o mínimo detalhe de uma festa – como a troca de olhares e gestos, simbolizando uma espécie de código secreto – até a visão geral de uma sociedade, refletida na contemplação das estrelas para as quais Rubião jura o seu amor por Sofia -, um amor doentio, uma vez que, apaixonado pela própria idéia de estar apaixonado, Rubião confunde a exaltação de ser um membro recente do Rio de Janeiro do Império. As estrelas permanecem fixas no céu, imutáveis, na sua amoralidade como simples observadoras do drama humano que acontece embaixo de seus brilhos. Como elas, o narrador expande o tempo de sua história, manipulando o ritmo da narração conforme a sua importância na trama, muitas vezes fragmentando os pontos-de-vista, da mesma forma que Henry James fez em seus últimos romances (aliás, falta alguém que faça um estudo sobre os paralelos entre James e Machado, com suas semelhanças e diferenças, mas esta é uma tarefa na qual nenhum scholar brasileiro tem coragem de realizar). O estilo é um dos mais implacáveis que Machado já escreveu: se com Brás Cubas havia um sabor amargo contaminando até mesmo as flores que ele descrevia no seu desabrochar, em “Quincas Borba” temos a preferência pelos aforismos e pelas parábolas que se intercalam na história, que são as pistas para o sentido completo do romance.

Um exemplo desta técnica é o capítulo 46 em que temos um mendigo que, ao acordar depois de escutar alguns barulhos feitos por Rubião na rua, exaltado por uma insinuação de Sofia, contempla as estrelas:

“O rumor das vozes e dos veículos acordou um mendigo que dormia nos degraus da igreja. O pobre-diabo sentou-se, viu o que era, depois tornou a deitar-se, mas acordado, de barriga para o ar, com os olhos fitos no céu. O céu fitava-o também, impassível para ele, mas sem as rugas do mendigo, nem os sapatos rotos, nem os andrajos, um céu claro, estrelado, sossegado, olímpico, tal qual presidiu às bodas de Jacó e ao suicídio de Lucrécia. Olhavam-se num espécie de jogo do siso, com certo ar de majestades rivais e tranqüilas, sem arrogância, nem baixeza, como se o mendigo dissesse ao céu:

– Afinal, não me hás de cair em cima.

E o céu:

– Nem tu me hás de escalar”.

Esta impossibilidade do homem ter um mínimo contato com o Absoluto é o tema de “Quincas Borba”. Vivemos num mundo em que Deus não só nos abandonou, como também sequer se importa conosco. O absurdo do niilismo dá lugar a teodicéia: Como o Cruzeiro pode permancer impassível frente às lágrimas e risos dos homens, não distinguindo-os, se Rubião ficou maluco, se Cristiano tomou toda a sua fortuna, se Sofia continua com sua futilidade como sua maior qualidade, se a solidão impera sob o destino das pessoas boas, se o real nos massacra dia após dia, sem dar uma chance a qualquer espécie de sonho realizado? É impossível que haja um Deus tão neutro, tão indiferente. “Quincas Borba” não é uma declaração de ateísmo de seu autor, mas no fim do livro ficamos com a impressão de que uma outra realidade nunca mais se abrirá para nossos olhos. Deve haver um motivo – e será isso que Machado de Assis investigará em seu romance seguinte, “Dom Casmurro”.

“Dom Casmurro” é a obra em que Machado foi até o limite das possibilidades artísticas na descida às profundezas da alma humana. A história do amor envenenado de Bentinho e Capitu é a prova de que o Bruxo do Cosme Velho tinha mil e um truques na manga. Ele inventou (isso mesmo, leitor, inventou) um novo tipo de romance, no qual a trama e os personagens não são mais experiências externas, mas sim símbolos que correspondem a uma extensão da alma e que, se analisados corretamente, mostram a que ponto chega a sutileza da loucura.

Com este romance, Machado antecipa dois grandes ícones do século XX: Sigmund Freud e Marcel Proust. A textura narrativa é uma série de lacunas do inconsciente em que Bentinho tenta esconder o que quer realmente expressar, mas acaba se revelando através de paralelismos, simetrias, detalhes como a altura de Capitu, uma canção de escravo, um adjetivo aqui e acolá, mostrando que há uma vida secreta sobre o qual ele não tem controle. Sua incompatibilidade com o real se estende no modo como tenta relembrar seu passado, distorcendo a memória para provar sua argumentação, como se estivesse num caso de julgamento em que o réu é desconhecido, apesar de todas as suas tentativas de culpar a esposa por um suposto adultério. Se em Freud, temos a libido e o eros sendo dominados pelo thanatos, em Proust temos a busca por um sentido em nossas vidas passadas através da recuperação da memória em forma de obra de arte, o que se pode perceber em “Dom Casmurro”, é o fato de Machado mostrar que nossa humanidade e nosso contato com o Absoluto dependem de aceitar o que nos é dado – e este dom é justamente aceitar e compreender a pessoa amada.

Dessa forma, Bento Santiago é um homem que proibiu-se de amar Capitu, e esta decisão é igual a matar o seu espírito. O romance inteiro é uma radiografia dos meandros da alma de Bentinho, que lentamente desce para as sombras, para dali não sair mais. A tradição católica é usada com precisão por Machado, contrapondo com o simbolismo pagão do César que emoldura as paredes da casa de Matacavalos e com o clima crescente de pacto fáustico. Capitu é a própria alma de Bentinho, a sua parte boa, complementar, que parece guiar suas sensações para o entendimento do Bem; D. Glória, sua mãe, apesar de seu carolismo quase patético, é a própria noção religiosa do garoto, sincero, que quer cumprir a sua palavra a Deus de qualquer maneira; Escobar é seu duplo, demonstrando qualidades insuspeitadas que Bentinho faz questão de não retratar quando se trata dele mesmo; José Dias é a parte vulgar, baixa, que ainda assim tem algo de bom, mesmo que sua bondade exista apenas por alguma utilidade; e, finalmente, a tão silenciosa prima Justina, que é o próprio senso de justiça de Bentinho que, como costuma acontecer quando a sombra vai se apoderando de sua personalidade, vai ficando cada vez mais quieta, até o fim melancólico e triste, porque sua alma já não possui mais essa qualidade.

Bento Santiago só consegue encontrar sentido na sua vida encriminando o grande amor de sua vida – que é nada mais, nada menos que sua própria alma e seu próprio bem. O tema de Fausto é tratado de forma sutil em “Dom Casmurro”, até porque Machado faz questão de não mostrar nenhum Mefistófeles. Mas isso seria uma técnica muito comum para um mestre que pretende levar a literatura às últimas conseqüências. Como se trata de uma história que se passa dentro da psique do personagem, é claro que o Diabo não se manifestaria de forma tão gritante. É neste ponto que a linguagem simbólica em que Machado foi o primeiro a captar na nossa literatura, se mostra como uma arma de grande poder: o pacto diabólico foi feito, mas o leitor não percebeu. Cabe a ele procurar onde se encontra o Mal para que ele próprio saiba onde está em sua própria vida e assim evitar que aconteça o mesmo. Aqui, não se pode negar que Machado faz com sua arte a grande função expiadora de olhar para nossas próprias falhas e nossos próprios pecados, para que nunca mais eles nos ataquem. A literatura machadiana tem um grande componente moral e é como se fosse um aviso aos olhares mais afiados, para não entrarem na morte enquanto ainda estão vivendo.

O enigma de Machado de Assis pode ser visto no capítulo CXI, “Contado depressa”, que é uma indicação do autor para que o leitor o leia devagar. Aparentemente, é um caso sem importância nenhuma na trama, uma anedota dentro da história, mas se lermos com cuidado, veremos que é neste capítulo que se dá o famoso pacto fáustico:

“Foi quando nasceu Ezequiel; a mãe estava com febre. Sancha vivia no pé dela, e três cães que latiam toda a noite. Procurei o fiscal, e foi como se procurasse o leitor, que só agora sabe disso. Então resolvi matá-los; comprei veneno, mandei fazer três bolas de carne, e eu mesmo inseri nelas a droga. De noite, saí; era uma hora; nem a doente, nem a enfermeira podiam dormir, com a bulha dos cães. Quando eles me viram, afastaram-se, dois desceram para o lado da praia do Flamengo, um ficou a curta distância, como que esperando. Fui-me a ele, assobiando e dando estalinhos com os dedos. O diabo ainda latiu, mas fiado aos sinais de amizade, foi-se calando, até se calou de todo. Como eu continuasse, ele veio a mim, devagar, mexendo a cauda, que é o seu modo de rir deles; eu já tinha na mão as bolas envenenadas, e ia deitar-lhe uma delas, quando aquele riso especial, carinho, confiança ou o que quer que seja, me atou a vontade; fiquei assim não sei como, tocado de pena e guardei as bolas no bolso. Ao leitor pode parecer que foi o cheiro da carne que remeteu o cão ao silêncio. Não digo que não; eu cuido que ele não quis me atribuir perfídia ao gesto, entregou-se-me. A conclusão é que se livrou”.

Machado ainda faz o favor de deixar bem claro o que se passa nesta cena com a sentença: “O diabo ainda latiu”. O cão simboliza uma das inúmeras formas que o demônio aparece na terra para enganar os homens. E ele faz justamente isso com Bentinho: disfarça-se de delicado, como um bichinho carinhoso, com sua cauda sorrindo sem parar. A grande oportunidade que Bentinho teve para matar o demônio dentro de sua alma não acontece e não é à toa que, depois dessa cena, o romance se avoluma em episódios diabólicos, começando com o filho de Bentinho e Capitu, Ezequiel, imitando a todos que aparecem pela frente, inclusive Escobar, com quem tem uma semelhança espantosa e logo é vítima das suspeitas paranóicas de que seu pai não é bem seu pai. Depois, vem a tentação de Bentinho com Sancha, em que têm um flerte passageiro, interrompido pela morte surpreendente de Escobar, um excelente nadador, mas que se afogou numa onda de ressaca no mar (a referência aos olhos de ressaca, “oblíquos e dissimulados”, famosa metáfora dada pelo agregado José Dias, é cristalina). O que acontece no funeral é a prova de todas as suspeitas de Bentinho, ao ver Capitu chorar com emoção ao olhar para o cadáver. A partir dái, a paranóia dá lugar à loucura, uma vez que Bentinho pretende envenenar o próprio filho (o fato dele querer fazer com seu filho, a mesma coisa que tentou com o cão, é bastante significativo), mas desiste porque, de uma forma misteriosa, seu desejo homicida recua repentinamente (prova de que Bentinho não é uma pessoa má e sim fraca). É então que aparece Capitu, a verdadeira questão de “Dom Casmurro” porque é nada mais, nada menos que sua verdadeira alma – lembrem-se que, quando criança, enquanto se atormentava se devia ir ou não para o seminário, devido a uma promessa de sua mãe, argumentava que “sua vocação não era Deus ou a Igreja e sim Capitu”, que havia enfim o transformado em homem.

Capitu foi objeto de inúmeras calúnias, mas, é na realidade, a personagem mais digna que Machado de Assis criou. Seu aspecto de cigana, com os olhos oblíquos e dissimulados, de ressaca, é apenas a exteriorização física do mistério que contém toda alma que se preze. A prova de sua dignidade não é imaginária. Está no próprio texto – mais precisamente nos capítulos CXXXVIII (“Capitu que entra”) e CXL (“Volta da igreja”). Capitu flagra Bentinho e Ezequiel momentos após a desistência do primeiro em dar o veneno ao filho. É o momento do combate: Capitu, sensível como toda mulher, percebe que alguma coisa está errada e pergunta a Bentinho o que está acontecendo. Acontece então a confissão de seus temores que aterrorizam Capitu, principalmente por ser em torno das suspeitas da paternidade de Ezequiel. Ao perguntar quais seriam os motivos da suspeita, Bentinho recua:

“- Há coisas que não se dizem [disse Bentinho].

– Que se não dizem só metade; mas já que disse metade, diga tudo [disse Capitu].”

Capitu resolve enfrentar a realidade, algo que Bentinho evita a todo custo. De certa forma, ele continua com um temperamento imaturo, talvez por não compreender a abertura amorosa da alma que poderia ter ocorrido com ele quando decidiu casar-se com Capitu. Ela vai à missa com o filho para meditar, sem antes não deixar de dizer uma fala essencial para que o leitor saiba quais são as crenças de Bento Santiago, ao defender Ezequiel da semelhança com Escobar:

” – Sei a razão disto tudo; é a casualidade da semelhança… A vontade de Deus explicará tudo… Ri-se? É natural; apesar do seminário, não acredita em Deus; eu creio… Mas não falemos nisto; não nos fica bem dizer mais nada”.

A Alma sabe quando alguém a abandonou, ainda mais quando a pessoa ri ao ouvir o nome de Deus. Nada mais resta a fazer e a decisão de Capitu é nobre (aliás, quem decide a separação é ela e nunca Bentinho, confirmando a fraqueza dele):

” – Confiei a Deus todas as minhas amarguras, disse-me Capitu ao voltar da igreja; ouvi dentro de mim que a nossa separação é indispensável, e estou às suas ordens”.

Observem como a alma, ainda que tenha perdido o seu dono para sempre, continua ligada a ele – “Estou às suas ordens”. As páginas finais de “Dom Casmurro” cheiram à melancólica finitude. Bentinho se isola e tenta reconstruir sua vida ao mudar para uma nova casa, réplica da de Matacavalos, para unir as duas pontas de sua vida. Ezequiel morre de febre no Egito e seu pai sequer chora pela perda, preferindo ir ao teatro. E Capitu sequer é citada como sua esposa, apesar de ter elogiado o marido até o final da vida. Bento Santiago se satisfaz usando de prostitutas de luxo (é o que Machado insinua com sua “exposição retrospectiva”), mas não consegue esquecer a sua vocação – Capitu, “a primeira amada de meu coração”. A pergunta que ele tentou responder ao escrever suas memórias – ou melhor distorcê-las – ficou na névoa do mistério. Será que a Capitu adulta já estava dentro da Capitu menina, como a fruta dentro da casca? O fato de ter perdido a sua alma ao demônio, esquecendo da inocência do passado, corrompendo a memória e perdendo a noção de ligar os fragmentos de uma vida, torna Bento Santiago um dos arquétipos da psicologia brasileira, carregada de cordialidade disfarçada de inveja e rancor. O que Santiago (Santo+Iago, sendo este o invejoso criado por Shakespeare em “Otelo”) quer esconder é o seu crime de ter deixado a sua alma se perder pelos caminhos deste mundo. Ele não cuidou dela e, por isso, ela escolheu outro. Contudo, a alma é individual e o preço da traição dela é a morte de Escobar, tragado nos olhos simbólicos do mar. Assim, a questão do adultério – debatida somente para críticos de quinta categoria – fica resolvida: sim, Capitu traiu Bentinho, mas a culpa e a responsabilidade são exclusivamente dele. Ariel recusa a subir a montanha conosco porque a nossa natureza sempre esteve nas mãos de Caliban.

“Esaú e Jacó” é a autópsia mais delicada já feita sobre a morte da inocência por estas plagas. Apesar de ser escrito por um diplomata – o Comissário Aires, uma espécie de alter-ego de Machado – com o tom típico de um diplomata, em que as frases são calmas, tranqüilas, de uma serenidade que impressiona pela crueldade que esconde. A epígrafe deste ensaio é uma prova dessa habilidade, além de explicitar uma reflexão que sempre permeou os textos machadianos – a de que o tempo é irredimível em um mundo que o ser humano não o aceita e, sobretudo, não quer compreendê-lo. Quem parte para este caminho – o caminho de Caliban descendo a encosta da montanha – não terá como enfrentar a destruição da inocência que ocorre constantemente nesta terra.

A jovem Flora foi a escolhida para ser o digno exemplo. Motivo de rixas entre os gêmeos Pedro e Paulo, que nos remetem aos irmãos bíblicos Esaú e Jacó, Flora renuncia a ambos porque sabe que, como Capitu, sua alma não pode pertencer a duas pessoas. Esta renúncia implica em sacríficio, um sacríficio que Machado narra através de Aires e os outros personagens que não conseguem entender muito bem o que está acontecendo. O tempo é implacável a todos porque o sacríficio é justamente a negação do tempo e a aceitação da eternidade. Mas aqui, Machado parece dizer, a inocência e o sacríficio não têm vez: são vistos como excentricidades ou meros acessórios filantrópicos de bon-vivant. O que importa são as mudanças de regimes políticos, que influenciam até mesmo a troca de tabuletas ou então a decisão moral de um arrivista, mas nunca a investigação de nossos próprios atos, a auto-consciência como princípio de crítica. Qualquer coisa parecida com isso, foge-se como o diabo da cruz.

A obra de Machado de Assis fez este serviço sujo e por isso o espanto: ninguém realizou este trabalho com tamanha perfeição formal e com tamanha ousadia na concepção de suas idéias. Ela é o espelho secreto que descobrimos dentro de nós mesmos, o espelho que reflete as partes mais escuras de nossa alma, partes que são horríveis, mas essenciais para o nosso entendimento como seres humanos. Por isso, as interpretações que tentam decifrar seus livros e contos são limitadas. Não aceitam o mistério que forçou o autor a fazer a investigação de saber como é descer a encosta com Caliban porque a maioria de seus críticos preferiram analisá-lo com os olhos de Ariel. Machado de Assis é um problema que os acadêmicos não conseguiram resolver, uma verdadeira pedra no sapato. Para um Roberto Schwartz, ele serve para analisar as estruturas sociais no melhor estilo marxista; para um Raymundo Faoro, ele foi um pré-Max Weber; para Antônio Candido, um escritor geral que expôs as contradições da sociedade brasileira no tempo do Império; para Gustavo Corção, um sujeito com fortes tendências católicas; para o americano Michael Wood, inspirado em Schwartz e Davi Arrigucci, Jr., Machado não pode ficar apenas nas questões políticas e sociais, preferindo o aspecto psicológico, mas seu ensaio fica paralisado ao dar uma de Susan Sontag e se perguntar como pode ter surgido um mestre entre as ruínas brasileiras. Sua paralisação é provocada por não saber que o que acontece na alma de um indivíduo – ainda mais um indivíduo com a sensibilidade peculiar de Machado – é que a desordem das circunstâncias cria uma reação contra ela através da obra de arte, em que esta se torna uma maneira de investigar o Mal que nos rodeia. Machado continua um enigma porque sua matéria-prima para seus livros era tão obscura quanto a cigana Capitu: a própria vida – e não podemos agarrá-la como queremos.

Mas isto não pode levar o leitor a acreditar que Machado de Assis era um obcecado pela maldade humana. O problema, para ele, era o que realmente assustava ao ser humano era a possibilidade de exisitir alguma coisa boa. Caliban está dentro de nós e ele usa nosso coração como sua morada favorita. Somos um povo abandonado por Ariel porque não queremos aceitá-lo e sua aceitação significa uma coragem que nunca aprendemos ou fomos educados para tê-la. Quando em “Memorial de Aires”, o último romance de Machado, publicado no ano de sua morte em 1908, vemos o Conselheiro Aires ir visitar o casal Aguiar e D. Carmo, duas pessoas sofridas na vida e que sempre sonharam com o filho que nunca tiveram, e observa-os juntos, “olhando um para o outro”, ele foge lentamente: “Hesitei entre ir adiante ou desandar o caminho; continuei parado alguns segundos até que recuei pé ante pé. Ao transpor a porta para a rua, vi-lhes no rosto e na atitude uma expressão a que não acho nome certo ou claro; digo o que me pareceu. Queriam ser risonhos e mal se podiam consolar. Consolava-os a saudade de si mesmos”.

A saudade de nós mesmos é a mesma saudade do casal Aguiar e Carmo porque fugimos “pé ante pé” como o Conselheiro Aires, ao ver um farrapo de luz neste mundo miserável. Estamos acostumados com a escuridão, infelizmente. Para começarmos a subir a encosta da montanha, temos de esperar por uma nova chance de Ariel -isto é, se ele quiser dar esta chance. Mas, até lá, quanto será de Caliban que já nos dominou por completo, deixando que as trevas escondam a luz que possibilita o reflexo destes espelhos secretos que foram a obra de Machado de Assis?


NOTA:

(1) Devo esta observação ao meu amigo Renato José de Moraes, que percebeu este novo aspecto do personagem Eugênia. Voltar

Um comentário em “Os espelhos secretos

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