Em uma anotação feita em seu diário (publicado em parte pela revista piauí neste mês de fevereiro), o escritor americano John Cheever, uma alma que se deleitava no seu próprio tormento, define precisamente como começa aquele bichinho manhoso chamado auto-destruição:
1952_Quando a autodestruição brota no coração, parece ser menor do que um grão de areia. É uma dor de cabeça, uma leve indigestão, um dedo inflamado; mas você perde o trem das 8h20 e chega atrasado à reunião sobre a dívida do cartão de crédito. O velho amigo com quem você se encontra para almoçar esgota a sua paciência sem mais nem menos e num esforço para ser agradável você toma três drinques, mas a essa altura o dia já perdeu a forma, o propósito e o significado. Na esperança de lhe devolver algum sentido e beleza, você bebe demais nos coquetéis e fala demais, dá em cima da mulher de alguém e termina fazendo algo idiota e obsceno, e pela manhã você quer estar morto. Mas quando tenta reconstituir o caminho que o conduziu a esse abismo, tudo que você encontra é um grão de areia.
Em outras palavras: ela começa quando menos se espera. E quando falamos que isso ocorre quando menos esperamos, quando está em posição de tocaia, ficamos tentados a chamá-la por outro nome, talvez mais sofisticado, palatável até para os nossos padrões de esnobismo cultural – como desejo ontológico, desejo mimético, desejo triangular – ou então para nomes mais prosaicos, reconhecíveis em qualquer expressão cotidiana – inveja, ódio, ressentimento. Contudo, uma expressão qualquer não consegue substituir a verdadeira relação que o tal grão de areia começa a contaminar na sua alma, uma relação que não pode ser articulada porque, afinal, temos medo de aceitá-la em nossas vidas: o fato de que nunca queremos ser o que realmente somos porque o que queremos ser é sempre ser o outro.
Atualmente, esta é a via-crúcis brasileira – ainda mais dolorosa já que não queremos perceber que estamos nela há algum tempo. E como uma obra de arte que se preza por esse nome é obrigada a expressar não só o desconhecimento em que vivemos, mas também uma espécie de diagnóstico e, quiçá, uma espécie de catarse, é de bom grado anunciar que, recentemente, temos dois livros que atingem esta intenção: As almas que se quebram no chão, de Karleno Bocarro, e Os sinais impossíveis, de Vinicius Castro.
Os leitores da Dicta já conhecem o primeiro livro. Teci lôas e considerações sobre o romance de Karleno, que acompanhei em seu processo de gestação. Contudo, tudo isso foi em um momento que tinha de analisar o romance como um editor faria. Agora fiz a leitura mais arriscada de todas: a de um leitor comum, que tem o livro impresso, físico, em mãos e começa a apreciá-lo como um pobre mortal. Este é o teste definitivo de qualquer romance que preste.
Se passou no teste? Nas primeiras cinqüenta páginas, achei que algo de estranho tinha acontecido: não parecia ser o livro que eu tinha lido antes. Havia agora um terceiro narrador que não sabia a razão de sua existência na trama. Havia algumas gralhas de linguagem que me fazia acreditar que talvez o autor tentava imitar Charles Bukowski com demasiada auto-consciência. O livro capengava logo no início, algo perigoso para um romance de trezentas e cinquenta páginas e com uma ambição considerável.
Mas algo mudou quando entrou em cena Bocas, o personagem a lá “homem do subterrâneo” criado por Karleno. E aí sim me reencontrei com o livro que tinha lido antes: a história de um grupo de estudantes brasileiros em Berlim, justo no momento da queda do muro – e, em especial, a relação triangular que há entre o personagem principal, Marco Dilthey, um niilista com pretensões literárias, Barad, e sua namorada alemã, Andrea. Porém, com a entrada de Bocas, o que era antes um triângulo tornou-se um quarteto – e então As almas que se quebram no chão começa a voar como poucos romances brasileiros fizeram recentemente.
Já Os sinais impossíveis não sofre do problema de um início capenga. É um romance perfeito em termos técnicos e de carpintaria literária. Vinicius Castro sabe contar uma história – e, o melhor, sabe construir cenas com a precisão de um ourives. O melhor exemplo é a cena inicial: a personagem principal, Luísa, está entediada em uma festa. Resolve ir embora. Caminha pelas ruas de Brasília, uma cidade que exala uma artificialidade abominável. Pensa sobre a vida. Sobre a família, os pais, o irmão. Quando chega em casa, a vida lhe dá um tapa na cara e há uma surpresa terrível no outro lado da porta. É uma das cenas mais dilacerantes já escritas na literatura brasileira atual.
A partir daí, o romance se volta para João, que namorará com Luisa em um relacionamento motivado mais pela expectativa do que ela pode ser em sua imaginação do que propriamente pelo o que ela é na realidade. E, entre um afago e outro, uma festa e outra, Castro mostra que conhece a tradição pela qual quer ser compreendido: a prosa minuciosa das percepções de David Foster Wallace e de Don DeLillo, a descrição interior dos personagens que mimetiza os termos preciosistas (em alguns momentos, preciosistas até demais) da poesia de Wallace Stevens e uma melancolia brasileira que nos dá a impressão de ler um romance que poderia muito bem ser uma mistura dos filmes de Michelangelo Antonioni com as canções do Legião Urbana.
O fato é que ambos os romances discorrem sobre este grão de areia chamado auto-destruição com uma força moral e, o mais importante, estética que nos impressiona assim que conseguimos entender o que está em jogo. E o que está em jogo é nada mais nada menos nós mesmos, seja em Brasília, seja em Berlim. Afinal, um brasileiro é também um ser humano, não é mesmo? Ou seja: todos nós temos aquela capacidade de escolher entre o caminho para cima e o caminho para baixo – e parece que decidimos por este último há algum tempo (e, o pior, estamos gostando muito dele).
Karleno Bocarro e Vinicius Castro decidiram enfrentar o caminho para baixo com aqueles instrumentos que Hamlet, outro sujeito que gostava de se agarrar no seu grão de areia, desprezava solenemente: palavras, palavras, palavras. Entretanto, a diferença entre um e outro é a capacidade de deixar o leitor irritado com sua própria situação de apatia. Seus próprios personagens se deixam viver em uma entropia de sentimentos, em uma casca de vida que, se depender deles, jamais permitirá que a lava da imprevisibilidade exploda de uma vez por todas. É claro que, por exemplo, não se pode negar o amor de João por Luisa no livro de Castro, algo muito diferente do desejo irracional que um Marco sente por todas as alemãs que quer levar para a cama e não consegue; mas quem disse que o tal do amor não pode ser também o mesmo grão de areia sobre o qual Cheever escreveu?
As almas e Os sinais impossíveis mostram uma juventude que resolveu uma “aparência de vida”: tudo funciona, tudo está consolidado, a economia é uma maravilha, ninguém passa mais fome, não há mais guerras, tudo é paz e amor, mas… – mas a vida se petrificou de tal forma que não conseguimos mais saber quando começou a nossa desgraça.
Porque, como apontam Karleno e Vinicius, a desgraça começou dentro de nós mesmos – e só esta importa. O resto é balela que ficará borbulhando no silêncio mal articulado das palavras não ditas. Os dois romances são, cada um a seu modo, tratados de como o desejo ontológico nos corrompe e depois corrompe toda uma sociedade. Às vezes, a salvação está lá – e, por coincidência, os livros a apresentam pelo mesmo nome: Luisa – mas seus personagens não a aceitam simplesmente porque não conseguem percebê-la que está debaixo de seus narizes. E é neste ponto que As almas se torna um livro superior a Os sinais: ele leva o drama da redenção às últimas conseqüências e, mesmo com seu final sombrio, com um personagem que acaba selando o pacto mefistofélico, o autor não perde em vista a perspectiva que a vida não é uma história narrada por um idiota, cheia de som e fúria, e, ao mesmo tempo, mostra que este último pode ser o próprio leitor – e só se este quiser com todas as suas forças. Como contraponto, é provável que, no futuro, Vinicius Castro tenha de provar para si mesmo e para o leitor em seus próximos romances que ele não ficou fascinado com o barulho que a “pressão da existência” (expressão que Wallace Stevens adorava usar) lhe deu como benção e como maldição.
Apesar da nossa prosperidade econômica, resolvemos fazer, há muito tempo, a opção preferencial pelo desastre. Estes dois livros mostram que existem dois jovens autores capazes de analisar o país onde vivem com honestidade e sem nenhuma misericórdia. A entropia nos come por dentro, rapazes, e somos os responsáveis por ela. E se for para viver agarrado em grãos, recuso o de areia e prefiro o de mostarda, muito mais visível e muito mais saboroso.
Um aperitivo (1º capítulo) do livro “Os Sinais Impossíveis”, aqui:
http://www.geracaobooks.com.br/loja/product_details.php?id=387
O livro do Vinicius é tudo isso mesmo que o Martim disse. E o blogue dele (que assina com pseudônimo) é melhor ainda http://derivativo.blogspot.com/
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