E a quem interessar possa, pelo link abaixo dá pra ver uma entrevista com o senhor Scruton, parte da série holandesa “Da Beleza e Consolação”, altamente recomendável. A entrevista dele é a penúltima, lá no final:
Numa perspectiva ainda mais ampla do que ele escolheu para o texto da “City”, Scruton traz aqui à memória o que Charles Taylor observa sobre o longo processo de descolamento (“disembedding”) cultural-religioso, iniciado com a “revolução axial” e que atinge em nosso tempo e meio algo assim como um apogeu corrupto (corrupção que talvez não seja absoluta).
2. Abstraindo das nuances de Taylor, muitos se lembrarão que, genericamente, a partir de Karl Jaspers os estudiosos passam a chamar de revolução axial aquela que tem mais ou menos nos séculos IX a III A.C. um arco de referência, quando emergem, em diversos meios civilizados, religiões que dão um salto para além dos ritos de domínio da natureza, ritos orientados sobretudo pelo desejo de uma afluência humana entendida em sentido estrito. Naqueles cinco ou seis séculos, espalha-se a percepção de que sacrifício e justiça podem ser desejáveis fora do registro algo manipulatório de muitos ritos arcaicos. Alguns nomes que servem de referência no que concerne ao reenquadramento das relações entre indivíduo, sociedade e cosmos: Confúcio, Buda, Platão, Sócrates, Jeremias. O que é “bom” em sentido religioso, mas também político, é gradativamente percebido como algo além da mera afluência, ainda que não a exclua.
3. Mesmo para quem não professa o cristianismo (parece o caso do Scruton; não sei), essa percepção de algo sem o qual até mesmo a prosperidade perde sentido implica valorizar como positiva uma travessia pelo fracasso aparente, como a de Sócrates, ou (exemplo insuperável) a de um sujeito jovem crucificado numa província romana.
4. Ao mesmo tempo, em paradoxo também aparente, essa percepção libera o indivíduo para que ao longo dos séculos, no Ocidente, ele construa uma inserção social calcada em noção de cidadania como aquela apontada por Scruton: uma “solidão renovável”, não estéril, que viabiliza “relação entre estranhos” no quadro de uma legislação comum, abrindo espaço para a constituição de uma “esfera privada” onde pode haver sentido e plenitude, inclusive no equilíbrio da vida familiar e de amizade. O perdão é central nesse quadro, perpassando os planos que ligam o individual e o social: a “[f]elicidade não resulta da busca do prazer, nem é garantida pela liberdade (…) ela resulta do sacrifício. E na tradição judeu-cristã, o ato primário de sacrifício é o perdão”, “pace” Scruton.
5. Pois bem, em outro arco de tempo, ie, nos cinco ou seis últimos séculos, assistimos no Ocidente a uma curiosa degradação daquele descolamento axial. Na medida em que, por vários motivos sobre os quais disserta Charles Taylor, retrai-se da esfera pública o cristianismo em benefício de uma lógica mais e mais pautada pelo poder, arriscamos colocar à deriva o arcabouço normativo que viabilizou a cidadania – e nessa deriva esquecemos igualmente o “não julgueis para não serdes julgados” (ou então, “ao julgar, lembrai-vos que sois julgados até por vós próprios”) que o mesmo Scruton, ibidem, liga a esse distanciamento aberto pela ironia. Como ouvi há muitos anos, esquematicamente Maquiavel ocupa o centro do palco em detrimento de Erasmo – e o que é irônico torna-se apenas sarcástico.
6. É interessante que Scruton, no final de seu texto, remeta a Locke, cuja obra é uma das grandes balizas pelas quais transitou a noção de pacto social. É verdade que o filósofo seiscentista é simpaticamente afim à noção de liberdade como forma de ordem – mas por outro lado, sua generosa noção de atividade econômica “industriosa e racional” como alternativa ao que Taylor chama de “complementaridade hierárquica” (vg, do reino à cidade à diocese à paróquia ao clã e à família) termina por não encontrar correspondência no imaginário social efetivo de sua época.
7. E o fato é que, depois do período barroco, não só diminuem as possibilidades dessa correspondência, como a tal hegemonização da lógica do poder acaba por nos fazer chegar nos dois últimos séculos a um “homo economicus” socialmente imaginado como alheio a considerações de ordem moral. A não ser, claro, as decorrentes de um ethos “pós-axial”.
8. Ethos que, nas palavras de Taylor, de certa maneira é também pré-axial: sacrifício, perdão e ironia (diferente de sarcasmo) não têm mais o mesmo sentido quando só aspiramos a afluência hedonista aqui e agora, ou no mais breve prazo histórico. Ordem constituída ou revolução têm por horizonte exclusivo o que é imanente: como notou Berdiaev na década de 20 (tão perto de nós), este é o traço que liga o jovem bolchevique arrivista e o grande burguês inescrupuloso.
9. Que fazer? Bom, há muitas escolhas possíveis de narrativas “axiais” no quotidiano, muitos modos de transmitir essa mensagem a que alude Scruton no seu último parágrafo: perdão na justiça, mesclado a ironia que pode ser amorosa. Lembrei, porque sim, do filme do Eastwood recentemente comentado aqui. Ou em outro “mood”, celebrando o protótipo de cidade em que tantos de nós aprendemos a nos sentir bem: http://www.youtube.com/watch?v=0o6QKpNK9Cc&feature=related
Conexão urbana, cidadania. Lendo um cara chamado Thomas Howard dissertando sobre ficção de outro cujo nome é Charles Williams (cristãos ambos), topei casualmente com um trecho ilustrativo. TH refere-se a uma personagem para quem a City londrina era esmaecida e vazia; percepção condicionada por toda uma vida preferindo coisas no lugar de gente. A personagem deixava de perceber que “qualquer cidade é um diagrama d´A Cidade (…)” cuja luz se manifesta, como referiu o pintor Joshua Reynolds, por meio de “common observation and plain understanding”. TH resume: “[r]ightly seen a city is a glorious thing – or at least some sort of reminder, no matter how botched, of a glorious thing.” “What is the bustle of commerce and finance and getting and spending about, rightly understood? It all has something to do with exchange, and that is a clue as to what Everything is about.”
Fico só com a ironia, obrigado.
E a quem interessar possa, pelo link abaixo dá pra ver uma entrevista com o senhor Scruton, parte da série holandesa “Da Beleza e Consolação”, altamente recomendável. A entrevista dele é a penúltima, lá no final:
http://www.hollanddoc.nl/dossiers/39221631/
Numa perspectiva ainda mais ampla do que ele escolheu para o texto da “City”, Scruton traz aqui à memória o que Charles Taylor observa sobre o longo processo de descolamento (“disembedding”) cultural-religioso, iniciado com a “revolução axial” e que atinge em nosso tempo e meio algo assim como um apogeu corrupto (corrupção que talvez não seja absoluta).
2. Abstraindo das nuances de Taylor, muitos se lembrarão que, genericamente, a partir de Karl Jaspers os estudiosos passam a chamar de revolução axial aquela que tem mais ou menos nos séculos IX a III A.C. um arco de referência, quando emergem, em diversos meios civilizados, religiões que dão um salto para além dos ritos de domínio da natureza, ritos orientados sobretudo pelo desejo de uma afluência humana entendida em sentido estrito. Naqueles cinco ou seis séculos, espalha-se a percepção de que sacrifício e justiça podem ser desejáveis fora do registro algo manipulatório de muitos ritos arcaicos. Alguns nomes que servem de referência no que concerne ao reenquadramento das relações entre indivíduo, sociedade e cosmos: Confúcio, Buda, Platão, Sócrates, Jeremias. O que é “bom” em sentido religioso, mas também político, é gradativamente percebido como algo além da mera afluência, ainda que não a exclua.
3. Mesmo para quem não professa o cristianismo (parece o caso do Scruton; não sei), essa percepção de algo sem o qual até mesmo a prosperidade perde sentido implica valorizar como positiva uma travessia pelo fracasso aparente, como a de Sócrates, ou (exemplo insuperável) a de um sujeito jovem crucificado numa província romana.
4. Ao mesmo tempo, em paradoxo também aparente, essa percepção libera o indivíduo para que ao longo dos séculos, no Ocidente, ele construa uma inserção social calcada em noção de cidadania como aquela apontada por Scruton: uma “solidão renovável”, não estéril, que viabiliza “relação entre estranhos” no quadro de uma legislação comum, abrindo espaço para a constituição de uma “esfera privada” onde pode haver sentido e plenitude, inclusive no equilíbrio da vida familiar e de amizade. O perdão é central nesse quadro, perpassando os planos que ligam o individual e o social: a “[f]elicidade não resulta da busca do prazer, nem é garantida pela liberdade (…) ela resulta do sacrifício. E na tradição judeu-cristã, o ato primário de sacrifício é o perdão”, “pace” Scruton.
5. Pois bem, em outro arco de tempo, ie, nos cinco ou seis últimos séculos, assistimos no Ocidente a uma curiosa degradação daquele descolamento axial. Na medida em que, por vários motivos sobre os quais disserta Charles Taylor, retrai-se da esfera pública o cristianismo em benefício de uma lógica mais e mais pautada pelo poder, arriscamos colocar à deriva o arcabouço normativo que viabilizou a cidadania – e nessa deriva esquecemos igualmente o “não julgueis para não serdes julgados” (ou então, “ao julgar, lembrai-vos que sois julgados até por vós próprios”) que o mesmo Scruton, ibidem, liga a esse distanciamento aberto pela ironia. Como ouvi há muitos anos, esquematicamente Maquiavel ocupa o centro do palco em detrimento de Erasmo – e o que é irônico torna-se apenas sarcástico.
6. É interessante que Scruton, no final de seu texto, remeta a Locke, cuja obra é uma das grandes balizas pelas quais transitou a noção de pacto social. É verdade que o filósofo seiscentista é simpaticamente afim à noção de liberdade como forma de ordem – mas por outro lado, sua generosa noção de atividade econômica “industriosa e racional” como alternativa ao que Taylor chama de “complementaridade hierárquica” (vg, do reino à cidade à diocese à paróquia ao clã e à família) termina por não encontrar correspondência no imaginário social efetivo de sua época.
7. E o fato é que, depois do período barroco, não só diminuem as possibilidades dessa correspondência, como a tal hegemonização da lógica do poder acaba por nos fazer chegar nos dois últimos séculos a um “homo economicus” socialmente imaginado como alheio a considerações de ordem moral. A não ser, claro, as decorrentes de um ethos “pós-axial”.
8. Ethos que, nas palavras de Taylor, de certa maneira é também pré-axial: sacrifício, perdão e ironia (diferente de sarcasmo) não têm mais o mesmo sentido quando só aspiramos a afluência hedonista aqui e agora, ou no mais breve prazo histórico. Ordem constituída ou revolução têm por horizonte exclusivo o que é imanente: como notou Berdiaev na década de 20 (tão perto de nós), este é o traço que liga o jovem bolchevique arrivista e o grande burguês inescrupuloso.
9. Que fazer? Bom, há muitas escolhas possíveis de narrativas “axiais” no quotidiano, muitos modos de transmitir essa mensagem a que alude Scruton no seu último parágrafo: perdão na justiça, mesclado a ironia que pode ser amorosa. Lembrei, porque sim, do filme do Eastwood recentemente comentado aqui. Ou em outro “mood”, celebrando o protótipo de cidade em que tantos de nós aprendemos a nos sentir bem:
http://www.youtube.com/watch?v=0o6QKpNK9Cc&feature=related
Conexão urbana, cidadania. Lendo um cara chamado Thomas Howard dissertando sobre ficção de outro cujo nome é Charles Williams (cristãos ambos), topei casualmente com um trecho ilustrativo. TH refere-se a uma personagem para quem a City londrina era esmaecida e vazia; percepção condicionada por toda uma vida preferindo coisas no lugar de gente. A personagem deixava de perceber que “qualquer cidade é um diagrama d´A Cidade (…)” cuja luz se manifesta, como referiu o pintor Joshua Reynolds, por meio de “common observation and plain understanding”. TH resume: “[r]ightly seen a city is a glorious thing – or at least some sort of reminder, no matter how botched, of a glorious thing.” “What is the bustle of commerce and finance and getting and spending about, rightly understood? It all has something to do with exchange, and that is a clue as to what Everything is about.”
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