õîááèò èëè òóäà è îáðàòíî îíëàéí â õîðîøåì êà÷åñòâå
Por Felipe Cherubin
João Cezar de Castro Rocha, ex-aluno de Girard em Stanford e co-autor com René Girard e Píerpaollo Antonello do livro Um Longo Argumento Do Principio Ao Fim, fala em entrevista exclusiva concedida a Dicta.com sobre a obra girardiana.
René Girard é hoje tido como um filósofo, antropólogo e cientista social, mas é fato que sua carreira começou por meio da literatura. Você poderia nos explicar essa relação de Girard com a literatura?
É uma relação pouco convencional. Muitos críticos já apontaram corretamente que o modo de leitura do Girard é avesso a certa concepção modernista de literatura; afinal, para Girard a literatura não é prioritariamente metalingüística. Em palavras mais precisas: a metalinguagem de que trata a literatura não é apenas a da literatura, mas é a da própria sociedade. Porém, ao contrário de que algumas pessoas pensam, não se trata de defender um modelo “realista” tradicional, não é isso o que Girard propõe. Na sua perspectiva, se queremos compreender a sociedade, o discurso que mais aprofundou os mecanismos fundadores da relação interpessoal foi a literatura. Portanto, durante a modernidade, mais precisamente de Cervantes até Proust, o esforço de entender como se manifesta o desejo humano foi, por assim dizer, a tarefa central da literatura. Aliás, não estamos muito distantes de Freud, pois uma parte considerável da teoria psicanalítica construiu-se a partir de uma leitura interessada da literatura. Girard também viu na literatura reflexões profundas sobre determinados comportamentos humanos.
No seu primeiro livro, Mentira Romântica e Verdade Romanesca, Girard analisa autores como Cervantes, Stendhal, Dostoievski e Proust, lançando as sementes de seu pensamento. Você poderia nos explicar o propósito dessa obra e o que Girard encontra nesses importantes autores da literatura universal?
Girard encontra fundamentalmente o que, num primeiro momento, foi para ele mesmo uma grande surpresa, ou seja, a presença de um mecanismo semelhante na descrição de desejo humano. Vale dizer, na análise de romances de tradições diversas e temporalidades muito diferentes, Girard descobriu o mesmo mecanismo básico: é o mecanismo do desejo mimético. A partir dessas obras, portanto, ele principiou a desenvolver sua teoria, com base numa compreensão inovadora do desejo humano.
Girard dedicou alguns de seus livros a Dostoievski. Como ele interpreta o grande escritor russo?
Numa fórmula polêmica, poderíamos sugerir que Dostoievsky seria um Nietzsche com consciência do desejo mimético. Em outras palavras, o que Nietzsche realiza na filosofia, Dostoievsky compreende radicalmente como sendo os desdobramentos do desejo mimético. Esse exemplo demonstra a compreensão que Girard tem da literatura. Ele situa a literatura num patamar absolutamente primordial. Ora, em alguma medida, é o caráter sistemático-especulativo da reflexão filosófica que afasta a compreensão profunda do desejo mimético, pois cristaliza seu dinamismo em conceitos e teorias. Pelo contrário, para a literatura abre portas novas ao entendimento do desejo mimético, pois não o descreve como um conceito, mas o expõe através da trama e dos conflitos entre os personagens.
Em Shakespeare: Teatro da Inveja, Girard faz uma análise exaustiva de quase toda a obra do bardo inglês, considerado uma espécie de precursor da teoria mimética. A que conclusões chegou Girard diante do legado shakespeariano?
Girard parte de uma observação que é simples, o que também é muito característico da obra girardiana: partir de uma observação simples, porém tornando-a sempre mais complexa, como se fosse uma verdadeira matriz de pensamentos. É muito comum nas obras de Shakespeare que um personagem se apaixone por outro sem jamais tê-lo ou tê-la visto. Como isso é possível? A resposta girardiana seria a seguinte: eu não me apaixono por uma relação direta com o objeto do meu desejo, em geral, eu me apaixone por alguém porque eu escuto coisas muito positivas sobre essa pessoa, porque eu sou induzido, porque socialmente essa relação é favorecida. Em outras palavras, Girard encontra em Shakespeare uma compreensão plena do desejo mimético. Além disso, ele vislumbra em Shakespeare a encenação do mecanismo do bode expiatório, e isto em diversas peças. Então, Girard surpreende em Shakespeare um inesperado tratado das diversas fases do desejo mimético! Na obra do poeta inglês, o leitor atento pode identificar a compreensão da natureza mimética do desejo. Isto, claro, em primeiro lugar. Depois, Shakespeare revela um claro entendimento tanto da crise provocada pelo desejo mimético, quanto da resolução dessa crise por meio do mecanismo do bode expiatório. E não é tudo: compreende-se, ainda, que o mecanismo do bode expiatório consiste em transformar a vítima do ritual expiatório em culpado, de modo a esquecer que a culpa pertence ao próprio sistema mimético. Eis o sentido da extraordinária interpretação que Girard propõe do Hamlet.
Há muitas aproximações entre Girard e filósofos do século 19 como Nietzsche e Kierkegaard. Você poderia comentar?
Há uma ligação muito forte com um conjunto de pensadores que em geral não associamos de imediato a Girard. Por exemplo, há um diálogo profundo com Freud, com Lévi-Strauss, com Nietzsche e, indiretamente, com Heidegger, Kierkegaard, entre outros. Nesses casos em geral, a estratégia girardiana é demonstrar como existe nesses autores uma compreensão profunda do desejo mimético, mas o que não há nesses autores é o desvelamento completo das consequências do desejo mimético, assim como do caráter genético desse desejo na formação da cultura humana.
Muitos desses autores do século 19 trataram da questão da violência. Um pergunta que não só muitos desses autores fizeram, mas que as pessoas fazem o tempo todo é: É possível uma sociedade sem violência?
Há um momento na obra do Girard em que ele parece acreditar na possibilidade de uma civilização sem violência, uma civilização idealmente cristã, por assim dizer, sempre pronta a oferecer a outra face. Posteriormente, ele compreendeu que isso não é possível, porque a violência é constitutiva do homem; e isto a partir da própria dimensão apropriadora da mímesis. Recordemos os termos propostos por Girard: eu desejo o mesmo objeto que você, quanto mais eu o imito tanto mais eu desejo o mesmo objeto, até que em um determinado momento eu não quero mais apenas limitar-me a imitá-lo: eu quero a posse do objeto, mesmo que para isso precise entrar em conflito com quem antes fora meu modelo. Essa é a novidade girardiana, ao apontar, na dimensão apropriadora do desejo mimético, a irrupção da violência, seja simbólica, seja física. A plena aceitação dessa violência como elemento constitutivo do humano, por isso mesmo, fecundo, porém potencialmente destruidor é uma das forças do pensamento girardiano.
Como Girard analisa a questão da centralidade do sujeito na modernidade?
Talvez o principal desafio de Girard ao lugar comum da cultura ocidental moderna seja o questionamento da centralidade do sujeito. O que chamamos de modernidade é um conjunto de pensamentos ou de gestos que situam o sujeito com centro do universo. Essa é a mentira romântica. Mas a mentira romântica surge não pela colocação do sujeito no centro do universo, mas pela crença de que o sujeito, colocado no centro do universo, é autotélico e autocentrado. Girard não vai retirar o sujeito do centro e colocar, como diriam alguns de seus críticos, a providência divina ou a revelação. Contudo, o sujeito girardiano é acima de tudo um sujeito que somente pode definir-se a partir de sua relação com um modelo. Somos sujeitos em relação com outros sujeitos, e o centro desse princípio relacional é a natureza mimética do sujeito, pois implica pressupor que somente defino meu objeto de desejo com o auxílio de um modelo que, consciente ou inconsciente, adotei.
O pensamento de René Girard pode ser sintetizado por duas descobertas: O desejo mimético como parte constituinte do ser humano embora o homem não se reduza a isso e o mecanismo do bode expiatório como mecanismo fundador de qualquer comunidade humana e de qualquer ordem cultural. Como se deu o desenvolvimento que culminou nessas teorias?
Girard não partiu de um sistema a priori, preconcebido para então encontrar evidências de sua teoria. Pelo contrário, foi através da literatura que ele intuiu a natureza mimética do desejo. Mas o desejo mimético, tal qual ele descreve em Mentira romântica e verdade romanesca, é um desejo mimético presente em sociedades já constituídas, organizadas através de disciplinas que criaram mecanismos extraordinariamente sofisticados de controle da violência: o Estado, o exército nacional, as leis, a escola. Numa palavra: a internalização de códigos. Então, há todo um aparato que permite controlar a violência que não seja por meio do mecanismo do bode expiatório. Essa foi a primeira intuição girardiana, a do desejo mimético. Porém, as derivações desagregadoras da mímesis levaram Girard a perguntar-se sobre os primórdios da organização social, quando os mecanismos modernos de controle da violência ainda não haviam sido desenvolvidos. Por isso, ele passou uma década relendo os clássicos da antropologia. Esse estudo produziu uma intuição rigorosamente radical. Afinal, a leitura da antropologia permitiu a Girard encontrar um instante histórico em que os mecanismos de controle da violência ainda não estavam presentes ou eram muito recentes. Ao combinar essa leitura da antropologia com a análise dos mitos e da tragédia grega, Girard pôde aprofundar sua teoria. O resultado dessa década de leituras e reflexões é A Violência e o Sagrado. Neste livro, Girard estudou as consequências da violência do desejo mimético não controlado, o que o conduziu à hipótese do bode expiatório. Ou seja, quando a violência se dissemina, estamos no reino da violência de todos contra todos, e o caos é inevitável. Contudo, quando a violência passa a ser de todos contra um, surge o mecanismo do bode expiatório, que permite resolver a crise mimeticamente engendrada, ao canalizar a violência da comunidade contra um único alvo: o bode expiatório. Mas não se trata de uma abstração filosófica, não se trata de uma especulação. Pelo contrário, Girard acredita ter encontrado esse mecanismo a partir da comparação dos mitos mais distintos possíveis, em sociedades as mais distantes entre si, que não tiveram nenhuma espécie de contato. Nas descrições desses mitos aparece o mesmo mecanismo fundamental: o mecanismo do bode expiatório, da canalização da violência contra o bode expiatório que é visto como culpado, mas que, logo depois que é sacrificado, é considerado sagrado. Afinal, graças a seu sacrifício, a paz retorna. Então, imediatamente, ele se transforma em um objeto sagrado, por isso, a violência e o sagrado são duas faces da mesma moeda. Mais: a cultura humana surge da relação tensa desses dois termos.
Você comentou brevemente que esses reality-shows, do tipo Big Brother, onde os participantes estão todos confinados em busca de um prêmio em dinheiro refletem, de certa forma, a teoria girardiana. Como é isso?
Os reality-shows possuem uma dimensão que talvez possamos compreender melhor com o concurso da teoria mimética. Eles têm a seguinte estrutura: você reúne um grupo de pessoas díspares numa casa. A disparidade é importante para a criação de conflitos. Contudo, depois de duas semanas confinadas, essas pessoas são idênticas, fazem todas as mesmas coisas! Elas tornam-se tão idênticas que o programa só existe porque, a cada semana, todos se reúnem contra um ou dois dos participantes, indicando-os para o famoso “paredão”. Por fim, o publico tem a tarefa de sacrificar um dos dois. Ora, o reality show é uma teoria mimética em miniatura, pois, a cada semana, é necessário buscar o bode expiatório e as justificativas são sempre as mesmas! Ainda mais: nesse caso, o culpado é visto como culpado mesmo, pois ele só sai do programa porque foi “sacrificado” por milhões e milhões de telespectadores. Em outras palavras, puro paganismo!
O Girard tem um livro, por exemplo, falando da anorexia. Em que medida a anorexia se relaciona com a teoria mimética?
É a imposição de um modelo. Você deseja um corpo que você não tem, mas um terceiro possui e, sobretudo, exibe. A propaganda no século 20 é uma fábrica de produção de desejo mimético, como tantos girardianos já demonstraram, com destaque para a obra de Jean-Pierre Dupuy.
Em termos de uma sociedade globalizada onde encontramos a teoria mimética atuando?
Outra contribuição da teoria mimética, mas que exige ainda uma reflexão que ainda não está totalmente feita, é justamente o estudo das novas tecnologias de comunicação que permitem uma capacidade infinitamente maior de contágio mimético. Por exemplo, hoje um jovem, mesmo nos enclaves capitalista da China, dança a coreografia do último videoclipe da Beyoncé. Há 20 anos na época do Thriller houve um concurso no mundo inteiro para ver quem imitava melhor a coreografia do Michael Jackson e ganhou um japonês. Há tecnologias de comunicação hoje que permitem uma difusão inédita do contato mimético, havendo aí um vasto campo para a reflexão.
Quais as possíveis contribuições da America Latina em termos do pensamento girardiano?
Se a verdadeira derivação do desejo mimético é que o sujeito não é autocentrado, que se alimenta do outro, que se alimenta do alheio para constituir-se como sujeito próprio, haverá uma cultura mais adequada que a latino-americana para desenvolver essa teoria? Porque nos constituímos desde sempre a partir do alheio, a própria língua que falamos não é própria, dela nos apropriamos e isso é válido para toda a América Latina. Talvez, então, intelectuais latino-americanos tenham condições de desenvolver radicalmente o pensamento mimético, e isso de uma forma que seria mais difícil em outros contextos autocentrados como o europeu, ou autoconfiante como o norte-americano. Para nós, latino-americanos, radicalizar, do ponto de vista mimético, a reflexão acerca da história cultural não exige um grande esforço metafísico: em alguma medida, é o nosso próprio cotidiano de intelectuais “periféricos” buscando, a todo custo, atualizar-se, isto é, reproduzir as últimas novidades dos grandes “centros”. No entanto, se radicalizarmos as conseqüências da teoria mimética, talvez possamos dar uma contribuição teórica relevante, substituindo de vez o preconceito da originalidade pelo apego à complexidade. Esse é o sentido da minha atual pesquisa sobre o que denomino “poética da emulação” (pode-se ver um primeiro resultado aqui: http://ucsj.edu.mx/assis/assis.html).
O desenho acima foi criado por Cido Gonçalves, caricaturista, ilustrador e infografista. Iniciou a carreira no jornal Folha de S. Paulo no inicio da década dos anos 90, passando depois pelas redações do jornal O Estado de S. Paulo e revista Veja. Blog do Cido: ciddogonn.blog.uol.com.br
Felipe Cherubin é jornalista, formado em Direito e estudou Filosofia na Harvard Extension School.
Excelente entrevista. Parabéns!
Com o perdão (espero) da intromissão. A respeito do trecho “Numa fórmula polêmica, poderíamos sugerir que Dostoievsky seria um Nietzsche com consciência do desejo mimético. Em outras palavras, o que Nietzsche realiza na filosofia, Dostoievsky compreende radicalmente como sendo os desdobramentos do desejo mimético.”, digo que sinto um frio na espinha todas as vezes (e é deveras comum nos nossos dias) que vejo Dostoiévski e Nietzsche postos como semelhantes. Na grande maioria das vezes é delírio de quem não entendeu nada de Dostoiévski. O caso mais acintoso é a análise de Lev Chestov envolvendo ambos. Se Nietzsche era dostoievskiano, Dostoiévski jamais teria sido um nietzscheano – etc, etc. Mas honestamente não entendi a comparação de Girard; pela fórmula extremamente sintética citada acima não dá para saber com precisão o que ele quer dizer.
Será que o autor do texto, ou alguém outro, gostaria de desenvolver esse ponto?
Essa meritória e importante série bem que poderia merecer o subtítulo de 10 anos de olavismo cultural.
Talvez esteja “viajando na maionese”, mas a leitura dessa´excelente entrevista me recordou um capítulo do livro “Dogma e Anúncio” em que Ratzinger analisa o conceito de pessoa e parece se contrapor à definição clássica de Boécio (substância individual de natureza racional) para colocar o cerne do conceito de pessoa no caráter ou capacidade relacional do ser concreto. É algo parecido com o que Girard fala ou estou confundindo “as bolas”?
Pingback: Tweets that mention René Girard – Desejo, Violência e Literatura II | Dicta & Contradicta -- Topsy.com
Esse Papa aprecia muito Santo Agostinho, e Girard disse em algum lugar, esqueci onde, que 75% do que ele diz está em Santo Agostinho. Talvez seja essa a razão.
É interessante como a teoria de Girard cai como uma luva para explicar a onda de tatuagem que toma conta do mundo!!