Na terça-feira, o site da revista feminina Marie Claire publicou na seção intitulada “Eu, leitora” uma história sobre uma professora de Curitiba que se envolveu com um mendigo e acabou engravidando. O texto fez sucesso nas redes sociais e cabe analisar por quê. Logo de partida, já acho extraordinário que, como diz o lead da Marie Claire, “ela acabou engravidando quando já estavam separados” porque, geralmente, nenhuma mulher engravida separada do homem. Descobrir a gravidez depois da separação, aí sim é possível. Mas, colocando essas minúcias de lado (o texto não é bem-editado, há erros de digitação, espaçamento, etc., etc.), por que esse tipo de narrativa chama tanta atenção? Há, é claro, o lado curioso ou mesmo bizarro de uma história sobre uma mulher de classe média que se apaixona por um mendigo – mas o que, além da bizarrice, o texto revela?
Lúcia é uma divorciada de 38 anos, tem três filhos (não convive com nenhum) e é estudante de Letras. Um dia, passando pela praça enquanto reflete sobre Shakespeare, encontra Valter, o mendigo que “lembrava um pouco o Che Guevara” e que, de súbito, a desafia com uma citação (provavelmente falsa) do dramaturgo inglês. Impressionada com a coincidência, decide conhecê-lo melhor. Ela o descreve como portador de “uma beleza rústica, diferente.” Desde os tempos de Lady Chatterley’s Lover, as mulheres amam “uma beleza rústica, diferente” de morador de rua. Mais adiante na conversa, “meio de brincadeira”, confessa que tem a fantasia de largar tudo e se tornar prostituta. Valter, num arroubo fenomenal de romantismo, diz que ela já passou da idade, que não conseguiria ganhar mais do que cinquenta reais – ela aceita dez, que ele pede emprestado ao sapateiro ali perto, e logo vão para um motel. “No final, depois de uma transa deliciosa, realizou minha fantasia e me pagou,” ela diz. Mas quem pagou o motel?
Só neste breve resumo do início do relato, já é possível identificar indícios de algumas patologias. Se o exato mesmo homem estivesse de banho tomado, barba feita e roupas em ordem, ela teria feito a mesma proposta tão prontamente? Se conhecesse alguém da mesma classe social, ela seria mais reservada e contida, exigindo uma série de encontros para então permitir a relação sexual? Por se tratar de um mendigo, ir direto ao sexo não é desprezá-lo como pessoa e utilizá-lo como mero objeto de uma fantasia sexual bizarra? Mais adiante, Lúcia admite que Valter não foi o seu primeiro morador de rua, que seu ex-marido era também quando o conheceu. Ao especular sobre os sentimentos mais íntimos das pessoas reais, só pode haver conjectura e nunca conhecimento concreto – mas, talvez, a prática de resgatar homens desafortunados das ruas, acolhê-los como namorados e até mesmo maridos, provendo por eles e mudando suas vidas, seja a forma que ela encontrou de compensar o instinto maternal falho com os próprios filhos. Narrando muito casualmente, quando seu ex-marido sugere que as crianças morem com ele em outra cidade, não há batalha por custódia ou coisa parecida, ela simplesmente concorda. Talvez, Lúcia seja mesmo uma prostituta nata, mãe de qualquer marmanjo necessitado desde que não possua relação de sangue.
Por natureza, mulheres tendem a achar que podem moldar o destino de um homem ou, ao menos, torná-lo mais apresentável. É como Pigmalião com papéis reversos – todo homem é como Eliza Doolittle, esperando a devida orientação de uma Professora Higgins para enfim desabrochar. No relato, Lúcia diz: “Achei que ele tinha potencial para crescer no trabalho. Criei a expectativa de que faria terapia para se curar dos traumas da rua e que conseguiria se reintegrar na sociedade.” Talvez Valter não quisesse trabalhar e fazer terapia. Talvez quisesse continuar nas ruas. Mas a vontade do indivíduo importa alguma coisa quando encontramos um projeto pessoal tão promissor? Em Adorável Vagabundo, filme de 1941, Barbara Stanwyck interpreta uma jornalista que arranja um pobre-diabo qualquer (interpretado por Gary Cooper) para educá-lo e torná-lo personagem de um movimento político. No final, é a sua verdadeira personalidade que a conquista, não a emoção de tentar salvar alguém de si mesmo. Já em Um Lugar ao Sol, filme produzido em 1951 e ganhador do Oscar de Melhor Filme, Elizabeth Taylor se apaixona pelo taciturno pobretão interpretado por Montgomery Clift, mas não há nenhum motivo aparente para amá-lo (por todo o filme, ele só dá provas de mau-caratismo) fora a sua origem “excêntrica”. Sessenta anos depois, a miséria é consolidada como afrodisíaco.
Há um pseudo-lirismo no texto, como se Lúcia narrasse um doce namoro de adolescência, mas trata-se, basicamente, de um fetichismo doentio de uma mazela social (que, mais tarde, se desenvolve em uma óbvia relação de codependência) em uma embalagem reluzente de bom-mocismo. “Acho que algo em mim acredita que, mesmo no lixo, existem tesouros perdidos,” ela diz. Mas ao acreditar no potencial de alguém que se encontra em extrema dificuldade, sadio seria fornecer as ferramentas para que essa pessoa se desenvolva de forma independente, sem tentar estabelecer uma relação romântica que é fadada ao fracasso desde a origem. Duas pessoas que se amam precisam necessariamente estar em pé de igualdade. Não há amor que resista à base de caridade e gratidão porque, depois que a paixão se esgota, não há como cobrar o outro por todos os favores prestados – e aí vem aquela velha e inútil fala de novela, “depois de tudo que eu fiz por você!”
Até o final da história, as coisas só pioram. Valter não consegue manter um emprego, acaba sempre voltando para as ruas e pedindo a ajuda de Lúcia até o ponto de invadir sua casa e agredi-la no chuveiro. Ela não chama a polícia, pois sabe, afinal, que Valter é uma vítima da sociedade, que sua mãe morreu cedo, que sua vida foi muito dura, e que isso tudo resulta, muito naturalmente, na agressão. Oras, todos aqueles que passaram por dificuldades têm o direito de bater em uma ou duas mulheres, certo? “Minha mãe fala dele com nojo, e os poucos amigos que sabem da história, querem que seja preso. Mas eu vejo um ser humano igual a mim, com uma vida difícil,” conclui. Além de prostituta, santa.
Este texto é uma obra-prima. Parabéns.
Em o Salvador da Patria, da rede globo, Sassá Mutema também é um personagem que sai da pior (bóia-fria) com a ajuda de uma paixão e torna-se um bem sucedido empresário, casando-se com Maitê Proença no capítulo final;
Não li Marie Claire, mas acho que a Lúcia não estava passando despropositadamente pela praça coisa nenhuma (lendo Shakespeare…), e sim arquitetando mais um encontro promínscuo. Digo mais, já tinha estado no local antes, escolheu com quem seria (premeditou). Já Maria Madalena foi diferente, ela era Santa, nunca foi prostituta, e sim esposa de Jesus (acho)
Ieda, não entendo a razão que a levou a escrever um texto desse gênero.
Muito obrigado,
Pedro
Uma espécie de “Uma Linda Mulher” às avessas – guardando-se as devidas proporções – ou apenas uma tentativa falha de comover e chocar leitores com uma história inusitada e que traz uma lição de moral ambígua? Como o texto de Ieda Marcondes aponta, há mais pontos vagos e partes mal contadas do que poderia supor que seria uma bela história de amor prestes a ser adaptada para um cinema perto de você.
Essa história deu quase o plot de Viridiana.
Mas o mais importante deste texto é isso: “Duas pessoas que se amam precisam necessariamente estar em pé de igualdade”.
Quando dizem que atrás de todo grande homem há uma grande mulher alguns pensam que é porque elas lhes dão suporte, ou que elas que lhes tornam grandes, mas não é isso.
É que o grande homem necessita de uma grande mulher e vice-versa, ou ainda de outro grande homem, em nome da igualdade. É intolerável um relacionamento baseado na idolatria, carência, ou mesmo na egolatria de uma das partes.
Isso não tem a ver com áreas específicas. A mulher ideal para um grande estadista, por exemplo, não precisa ser também política, nem mesmo famosa em uma atividade diferente. Basta-lhe, somente, alguma independência. Nada de “sem você eu não existiria”, bajulação ou tatuagens de nomes próprios com corações.
Não entendi a relevância deste texto para a Dicta. Matérias da Marie Claire são notórias por mostrar histórias absurdas, e como a revista protege a identidade dos relatos, não dá para saber se são fictícias.
Fora que este texto não tem conclusão: sim, a mulher é prostituta, e sim, ela se faz de santa ou se pensa santa. O que este texto traz que a leitura da própria matéria não traz?
Rafael, mesmo que a história seja fictícia, muita gente compartilhou o texto como se fosse uma história bonita, humanista e tal, o que revela o estado mental dessas pessoas. Fico feliz que você tenha chegado às mesmas conclusões que eu (apesar de você não considerar como “conclusões”) ao ler o texto da Marie Claire.
Na minha opinião, a chave para a interpretação dessa história está em uma frase que Lúcia deixa escapar espontaneamente e que não apresenta uma conexão muito clara com o que vem antes ou depois — o que reforça a minha impressão de que ela pode ser uma espécie de ruído de fundo que permeia o texto inteiro: “Se eu não tivesse minha mãe e uma boa estrutura familiar, de nada adiantaria meu curso superior, eu não conseguiria me sustentar com o salário de professora.”
Ela não tem como estabelecer um relacionamento saudavelmente baseado em uma certa dose de independência mútua porque ela mesma não é independente: não consegue se sustentar a si própria e, com mais de 40 anos, ainda precisa da ajuda da mãe, que provavelmente deu-lhe uma das duas casas deixadas por seu pai — a dos fundos: “minha casa ficava no quintal dela”. Ela cresceu em um ambiente rico (“Venho de uma família de classe média alta. E, na infância, tive todo o conforto.”), proporcionado pelo trabalho do pai; quando essa renda desapareceu, “perdemos quase tudo”, e aparentemente isso não foi suficiente para que ela se esforçasse em reconquistar, por seu próprio trabalho, pelo menos uma parcela do conforto perdido. Continuou vivendo “no quintal da mãe”, tendo uma filha num relacionamento irresponsável de adolescência (presumivelmente criada com o dinheiro da avó), casando-se, tendo mais filhos, continuando na pobreza até o ponto de ceder a guarda dos filhos ao ex-marido, porque “minha vida andava difícil”; e de novo, parece que ela, em sua letargia patologicamente autocomplacente, prefere ficar longe dos filhos do que batalhar para reunir condições dignas para mantê-los e educá-los com o fruto de seu próprio esforço. Até a sua primeira filha já é independente; mesmo o seu primeiro marido, outrora mendigo, já está “em uma condição financeira muito boa” (ele tem condições de criar as crianças, ao contrário dela); e ela continua na mesma. Aos 40 anos, faz faculdade de Letras, passeia languidamente pelas praças à procura de novos amantes entre os mendigos, para quem sabe realizar o seu sonho de “ser mãe novamente”.
É evidente que essa mulher, como tantas outras pessoas originárias da classe média-alta em nossa época, sofre de uma síndrome de eterna dependência; cresceu ganhando tudo de algum provedor (como todos nós), mas nunca se convenceu verdadeiramente de que aquilo era uma fase temporária adequada apenas durante o período inicial da vida, em que a pessoa ainda não pode se bastar a si mesma. No seu inconsciente, a perpétua ajuda paterna é uma mistura de direito adquirido e de consequência de uma limitação insuperável, uma fatalidade do destino. Uma mulher instruída como ela provavelmente teria oportunidades de carreiras que lhe dariam independência, mas é provável que todas elas tenham sido rejeitadas por lhe parecerem “insuportáveis”. Quantas pessoas não conhecemos com esse perfil? A devastação que essa síndrome de eterna dependência necessariamente causa na sua autoestima precisa ser aplacada de alguma forma; e a forma específica que Lúcia inconscientemente escolheu é a de encontrar criaturas ainda mais miseráveis do que ela para exercer sobre eles, de algum modo, o impulso benéfico que ela recebe vitaliciamente de sua generosa e infinitamente paciente mãe. Lúcia pode até não ser capaz de ganhar dinheiro como o pai ou a mãe (o que é que se há de fazer? É a vida…), mas ao descobrir e valorizar os “tesouros escondidos” do lixo, aos quais nem mesmo a sua mãe dá valor, Lúcia prova a si mesma que é, sim, capaz de ser, de algum modo, provedora de um importantíssimo apoio a alguém — e, no que diz respeito à compreensão acerca das fraquezas humanas, até melhor do que a sua pouco tolerante mãe.
Ao final, ela se orgulha: “Sustento a mim e ao Pedro com o dinheiro do aluguel e o meu salário.” Mas não se dá conta de que ela só consegue isso porque, aos 43 anos, voltou a morar de vez com a mãe. E não há nenhum indício de que ela sequer planeje mudar isso em sua vida.
À luz dessa interpretação, compreende-se outra frase aparentemente inócua, mas muito reveladora (e inconscientemente irônica): “Valter é inteligente mas não sabe se administrar”. Eis aí, projetada em Valter, a verdade insuportável que Lúcia conhece sobre si mesma mas não é capaz de aceitar, e contra a qual luta a vida inteira da maneira errada.
Sim, Zoroastro, é isso mesmo. O que ela considera um altruísmo nada mais é do que a satisfação que encontrou para aplacar a própria inferioridade. Ao fazer com que as pessoas dependam dela, ela pode, enfim, se sentir realizada, capaz, provedora, etc, etc.. O estranho é que só consiga fazer isso com estranhos, em vez de tomar conta dos filhos ou da coitada da mãe. Talvez porque seja bem mais fácil pegar um mendigo, dar um banho, um prato de comida, roupas novas e deixar que durma na mesma cama do que se comprometer, por toda a vida, com a educação de uma criança ou com contas mil. É como arranjar um cachorro.
bom texto, ieda. agora, esse comentário do zoroastro tá sensacional. acho q é bem isso.
Também não entendo a importância da análise para o blog da Dicta. Se o critério é comentar um assunto só porque foi replicado nas redes sociais… então vamos falar da última novela da Globo. Mas não me lembro de ser essa a proposta da Dicta, sinceramente. (Em tempo: não é nada contra a autora, estou questionando a adequação do tema à proposta da revista.). Se os artigos sobre a última novidade do campo da lógica podem ser um pouco pesados, comentar a Marie Claire talvez seja leve demais.
Uma história verdadeiramente boa de intelectual com mendigo é essa aqui: http://textos.yurivieira.com/contos/o-marceneiro-e-o-poeta/
Bom, Juliana, isso não é comigo, é com o editor. Mas acho que a importância do texto não está no fato dele ser da Marie Claire, mas porque a reação que as pessoas tiveram retrata bem a época em que vivemos de valores torcidos e trocados (gente que acha que tá fazendo um bem quando, na verdade, alimenta uma patologia). Novela sempre atraiu muita gente, não tem nada de novo nisso. Mas se tiver alguma sugestão de pauta ou mesmo se quiser colaborar com o blog, é só entrar em contato com o Joel.
Ieda, se você ainda não leu este artigo, eu recomendo.
Quero ver um playboy pegar uma mendiga, levá-la ao salao, dar-lhe um banho de loja, e leva-la a um jantar com bourbon num iate. E telefonar no dia seguinte.
E se a autora for mesmo fictícia? O que interessa mesmo nessa questão é o fato de um meio tão popular como a Marie Claire, que é lida até por quem não assina mas espera a consulta no dentista, forja e acelera uma cultura de promiscuidade. Todas essas revistas femininas patrocinadas pela Globo, o site do uol, o Terra e tantos outros meios de disseminação da cultura de massas querem mesmo é forjar o que já está em marcha faz tempo, a cultura “do goze, goze e conte pra todo mundo”. Não estou aqui para criticar o gozo da autora, seja ela fictícia ou real, mas para dizer que a Marie Claire é nociva à partir do momento em que patrocina essa cultura que prioriza o gozo promíscuo. cada qual na sua esfera privada deve gozar como bem entender, se masturbando e apenas imaginando, colocando em prática e indo em casas de swing com o cônjuge, mas isso não pode ser patológico, quem o faz que o faça sem levantar uma bandeira, um modo de vida, a banalização total da vida.