Sete minutos que abalaram o mundo

Por Daniel Johnson
Novembro de 2009

A Guerra Fria foi o primeiro conflito a quase conseguir aniquilar a civilização Ocidental – o primeiro, mas muito provavelmente não último. No entanto, a história desses 40 anos de guerra global teve um final feliz: concluiu-se praticamente sem derramamento de sangue com a revolução européia de 1989.

Foi uma autêntica revolução popular, não um golpe levado a cabo por terroristas e subversivos profissionais como os da revolução bolchevique de 1917. Veio de baixo e pegou de surpresa estadistas, diplomatas e serviços de inteligência de ambos os lados.

Diferentemente da maioria das revoluções, a de 1989 não se tornou um veículo para novas tiranias: trouxe liberdade e democracia para centenas de milhões de pessoas que viviam sob as sombras da religião política que era o marxismo-leninista.

Vinte anos depois, tamanho acontecimento parece um milagre grande demais para acreditar. E, no entanto, eu estava lá. Como correspondente internacional do Daily Telegraph para a Alemanha, de 1987 até o verão de 1989, e para então chamada Europa Oriental, pelo resto do ano, assisti de camarote aos eventos que culminaram com a queda do muro de Berlim e a Revolução de Veludo em Praga. Mas os jornalistas não apenas relatam e comentam os eventos: às vezes, têm o seu papel nos fatos, ainda que pequeno. Ser um espectador daquele período foi um privilégio raro. Ser uma nota de rodapé na História, sobretudo na História feita na Berlim Oriental naquela noite de novembro, foi uma epifania extraordinária que apenas agora começo a apreciar. De fato, na sua nova e fabulosa obra 1989 – O ano que mudou o mundo – A verdadeira história da queda do muro de Berlim (Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2009), Michael Meyer (então editor-chefe da Newsweek e testemunha ocular dos acontecimentos) cita o meu nome numa nota de rodapé, dando-me generosamente “um tanto de crédito na derrubada do muro”. Há quem mereça muito mais crédito, de Reagan e Gorbachev aos próprios berlinenses orientais. Pode ser que haja, porém, algum interesse na história de um inglês que se viu no lugar certo, na hora certa, para participar da História da Alemanha (e da Europa). History is now and England (“A História é aqui e a Inglaterra”): este verso de “Little Gidding”, o último dos Quatro Quartetos, serviu para mim na Alemanha de 1989 como para T. S. Eliot na Inglaterra de 1942.

O meu interesse pela Alemanha começou na minha juventude nos anos 1970. Naquela época, as escolas públicas na Inglaterra (ou pelo menos as Grammar Schools) ainda ensinavam alemão. Nenhum dos meus filhos pôde estudar o idioma, e os departamentos de alemão das universidades têm-se extinguido com rapidez. Mas aos 16 anos, pude passar 3 meses num colégio próximo de Kassel, onde tomei gosto por cerveja e Beethoven. Minha germanofilia foi reforçada por Karl Leyser, J. P. Stern e vários outros grandes eruditos exilados que foram meus professores em Oxford e Cambridge. Em 1979, fui a Berlim com uma bolsa de estudos que Tom Stoppard conferiu a mim. Lá morei por pouco tempo num apartamento alugado na Uhlandstrasse, número 127, cujos inquilinos anteriores haviam sido primeiro James Fenton e depois Timothy Garton Ash, tendo este último descrito o lugar no seu livro de memórias The File. O relato, afetuoso mas mordaz, de Garton Ash – “Então apareceu Daniel Johnson de pálida beleza e Nietzsche na mão. Irrompendo pelas portas da manhã, o sorriso radiante, para dizer-me que havia encontrado mais um pessimista alemão… Daniel surpreendia as garotas com comentários do tipo: ‘Você percebeu que Steiner usa a palavra momento em sentido hegeliano?’” – sem dúvida capta algo da minha obsessão pelos alemães e a sua história naquela época. Em Berlim, eles tentavam viver normalmente, apesar do seu passado indizível, um passado que não podia ser redimido.

A atmosfera espectral da Berlim de antes de 1989 – dividida, isolada, assombrada – foi mais bem captada por Fenton no poema A German Requiem (“Um Réquiem Alemão”) que escreveu quando morava na Uhlandstrasse: “Não são as ruas que existem. São as ruas que não existem mais… Não é o que dizem. É o que não dizem.” (“It is not the streets that exist. It is the streets that no longer exist… It is not what they say. It is what they do not say.”) A Alemanha dos anos 1980 vivia eclipsada pelo próprio passado, obcecada não tanto pelo Holocausto quanto pela própria culpa. Vários escândalos vieram à tona, todos focando “o passado que não queria morrer”: Bitburg, o Historikerstreit, Waldheim, Jenninger. A realidade presente – o muro de Berlim – era um pressuposto comum; apenas outsiders questionavam-no.

Uns anos mais tarde, descobri que a minha incursão ao pensamento alemão seria surpreendentemente útil para minha nova carreira jornalística. Eu era suficientemente versado na língua e na política locais para que o editor do Daily Telegraph, Max Hastings, me mandasse a Bonn. “Nada nunca acontece na Alemanha”, disse-me. “Você tem três meses para me provar que precisamos de uma sucursal em Bonn. Caso contrário, fecharemos e passaremos o serviço a um freelancer, como o Times.”

Uma vez alocado em Bonn, dei ao Telegraph o que ele queria. Matérias sobre a Alemanha raramente faziam sucesso no Reino Unido a não ser que contivessem a palavra nazista no primeiro parágrafo. Assim, dei sorte por Rudolf Hess, o último dos criminosos de guerra nazistas definhando no presídio de Spandau, ter morrido algumas semanas após a minha chegada. A matéria sobre Hess era o sonho de todo correspondente internacional: um suicídio misterioso – ou seria assassinato? – envolvendo um oficial de Hitler, a diplomacia da Guerra Fria e uma juventude neonazista desumana da Baviera. Consegui a primeira página e a matéria fez mais sucesso que pão quente.

Ainda mais importante foi a visita de Erich Honecker, o combalido mas ainda perigoso líder da Alemanha Oriental, naquele outono. Com poucas mudanças na sua postura com relação ao Ocidente desde quando havia construído o muro em 1961, Honecker teve problemas para adaptar-se à glasnost e à Perestróica implementadas por Gorbachev. O seu lema era de que o capitalismo e o comunismo eram como “o fogo e o gelo” e a sua polícia ainda atirava nos desesperados que tentavam escapar do sistema e atravessar o muro. Cerca de cinco mil pessoas tentaram cruzá-lo durante os seus 28 anos de existência, sendo que duzentas foram mortas. Mas a má notícia era que o muro cumpriu com a sua finalidade: entre 1949, quando a divisão da Alemanha foi formalizada, e 1961, quando o muro foi erguido, cerca de 3 milhões e meio de pessoas votaram com os pés: um êxodo dos melhores e mais brilhantes cidadãos que a República Democrática Comunista da Alemanha não pôde suportar. Honecker, o carcereiro de um terço da Alemanha, fingiu que o muro era uma defesa contra o renascimento do nazismo no Ocidente. O resultado da visita de Honecker contribuiu para normalizar a divisão da Alemanha num tempo em que a divisão da Europa já não era tão rígida. O distanciamento de Honecker da realidade foi demonstrado pelo culto da personalidade que ele autorizava: a sua fotografia aparecia em praticamente todas as páginas de uma edição do jornal do partido Neues Deutschland durante a feira de comércio de Leipzig em 1989. A hybris de Honecker foi rapidamente seguida de uma nemesis inesperada: sua queda levou alguns meses e o muro que ele construiu, aparentemente perpétuo, sobreviveu-lhe apenas umas semanas.

Em fins de 1987, a sucursal de Bonn estava garantida, de maneira que era seguro ficar por lá. Por eu ser novo naquele ambiente, estava talvez em melhores condições que os mais habituados para notar os tremores políticos que anunciavam o terremoto revolucionário vindouro. Comecei especialmente a questionar alguns dos pressupostos da classe política alemã e, por extensão, dos diplomatas e jornalistas em Bonn. Um dos seus pressupostos era que não viveríamos para ver a reunificação da Alemanha, porque afinal envolvia o fim de uma nada curta divisão da Europa. Essa divisão, e o golfo ideológico que separava as duas metades do continente, era o axioma fundamental da política do pós-guerra. Era literalmente impensável que o processo de mudança histórica pudesse acelerar-se de repente. Só que a História não foi apenas algo que aconteceu no passado: a justificativa que hoje todos dão como certa foi apenas criada com o tempo.

Um ponto crucial veio mais ou menos na época em que cheguei a Bonn. No dia 12 de junho de 1987, Ronald Reagan pôs-se diante do muro de Berlim para fazer o seu segundo grande discurso da Guerra Fria, após aquele de 1984 quando descreveu a União Soviética como “um império do mal”. Mais uma vez ele ignorou a polidez convencional: “Os rapazes da Secretaria de Estado vão me matar, mas é a coisa certa a fazer”, disse a um assistente, e deu voz a esperança de milhões: “Mr. Gorbachev, tear down this wall!” (“Senhor Gorbachev, ponha abaixo este muro!”).

O primeiro lampejo de um insight veio-me após a visita do primeiro-ministro da Baviera Franz Josef Strauss a Gorbachev em dezembro de 1987. Apesar de ser o líder estrangeiro mais popular tanto do lado Oriental quanto do Ocidental, Gorbachev permanecia um enigma. Com certeza ele não se via como coveiro do socialismo, mas como o seu salvador. “Nem por um momento achei que as transformações que iniciei, não importa quão abrangentes fossem, poderiam resultar numa mudança da regra dos ‘vermelhos’ para a dos ‘brancos’”, escreveu nas suas memórias. Strauss, um fanfarrão que lutou pela Wehrmacht no fronte leste, pilotou o seu próprio avião para Moscou, encontrou-se com Gorbachev e voltou dizendo que os soviéticos queriam ter negócios sérios com a República Federal da Alemanha. Um novo tratado entre União Soviética e a Alemanha começou a ganhar contornos: empréstimos amigáveis da Alemanha para modernizar a economia soviética em troca da liberalização da Alemanha Oriental.

Isso foi uma continuação da Ostpolitik da década de 1970 levada a cabo por Willy Brandt. Mas será que ela poderia avançar mais? E se o mal da União Soviética fosse tão profundo que o Kremlin estivesse disposto a pagar qualquer preço pelo capital alemão? Estaria a própria solução do pós-guerra para a questão alemã –“Um povo, dois estados” – sendo questionada? Escrevi um artigo para o Telegraph prevendo que a reunificação alemã poderia ocorrer muito antes do esperado. Ninguém acreditou.

Cada vez mais, parecia-me não haver nada de permanente na divisão da Alemanha – e por conseguinte, da Europa. Baseava-me tanto numa convicção interna como nas evidências empíricas. A tentativa de Gorbachev de reformar a União Soviética estava tendo toda a sorte de efeitos colaterais inesperados para além das fronteiras, efeitos que começavam a delinear o ocaso do império legado por Stalin. Diante do plano de fundo que era a Perestróica, podiam-se ver os sinais da dissolução da União Soviética espalhados por toda Europa Oriental. Visitei a Polônia algumas vezes em meados da década de 1980, durante os amargos anos que se seguiram ao esmagamento do Solidariedade, quando o padre dissidente Jerzy Popieluszko foi assassinado pela polícia secreta. Acompanhei com crescente admiração a maneira com que o povo polonês, sob a liderança de Lech Walesa e inspirados pelo Papa João Paulo II, obrigou o sistema comunista a conceder um espaço maior a seus críticos. A Hungria também passava por um relaxamento gradual do regime despótico imposto pelos tanques soviéticos em 1956. Curiosamente, o processo foi liderado por János Kádár, o homem que esmagou o levante. É verdade que tais liberdades ainda não haviam sido concedidas na Alemanha Oriental, na Romênia e na Tchecoslováquia, onde os antigos ditadores Erich Honecker, Nicolae Ceausescu e Gustav Husak ainda governavam, e os dissidentes (como Vaclav Havel ou a ganhadora do Nobel deste ano Herta Müller) ainda eram mandados à prisão ou ao exílio.

Pude ainda testemunhar outro momento chave no processo, quando acompanhei o então primeiro-ministro Helmut Kohl a Moscou em outubro de 1988. Duas imagens gravaram-se na minha mente. Uma foi a visão de centenas dos assim chamados alemães do Volga retornando à “casa” de que seus ancestrais haviam emigrado no tempo de Catarina, a Grande. Talvez Kohl esperasse rejuvenescer a população alemã nativa subornando o Kremlin para que deixasse partir esses alemães étnicos Aussiedler; se essa era a intenção, Kohl falhou. Mas a outra memória duradoura que guardo dessa viagem é ainda mais reveladora: Alfred Herrhausen, o presidente do Deutsche Bank, que estava lá para oferecer à esfacelada economia soviética vultosos empréstimos amigáveis bancados pelo Estado. Ele autorizou a mim e a um colega do Financial Times a entrevistá-lo na sua luxuosa sede em Moscou. O banqueiro visionário já estava a preparar o caminho para o acordo que selaria a reunificação quando Kohl e Gorbachev se encontraram no Cáucaso em 1990. Contudo, Herrhausen já estava morto na ocasião, vítima de uma explosão terrorista, o último espetáculo sangrento da Baader-Meinhof.

No verão de 1989, o Telegraph transferiu-me de volta para Londres, para que eu fosse o correspondente do Leste Europeu. Do outro lado do mundo, na China, o Império contra-atacou. Na Praça da Paz Celestial, estudantes foram chacinados pelos asseclas de Deng Xiaoping, que veio a ser parabenizado pelo virtual herdeiro de Honecker, Egon Krenz – um gesto pelo qual Krenz nunca foi perdoado. Na Europa Oriental, contudo, o ritmo dos acontecimentos acelerou-se na medida em que o Ancien Régime dos herdeiros de Lênin começou a desintegrar-se. O primeiro país a descartar o comunismo foi, como era de esperar, a Polônia, seguida da Hungria. Nessa época, a Hungria furou a primeira brecha na cortina de ferro ao abrir as suas fronteiras com a Áustria. Milhares de alemães orientais começaram a escapar tanto pela Hungria como pela embaixada da Alemanha Ocidental, em Praga. A 4 de outubro, Gorbachev visitou Berlim Oriental para comemorar os quarenta anos da RDA. Não havia nada que a Stasi pudesse fazer com relação às manifestações em favor de Gorbachev, mas a evidente impaciência do líder soviético para com a resistência de Honecker em implementar as reformas atiçou protestos logo após a sua partida. Na medida em que as manifestações em Leipzig cresciam a cada semana, nem mesmo a Stasi podia garantir a ordem. A tentativa de Honecker de esmagar os manifestantes pela força – a “solução chinesa” – malogrou e ele foi forçado a afastar-se pelo Politburo. 

Krenz, que assumiu como líder do partido, queria ser um Gorbachev alemão, mas não era nem amado nem odiado, apenas desprezado. Tentou aliviar a pressão com uma nova lei de viagens, permitindo visitas de até 30 dias por ano ao Ocidente, mas não a emigração. Foi um caso clássico de mudança que veio tarde demais, em pouca quantidade. A 4 de novembro, meio milhão de pessoas marcharam na Berlim Oriental para reivindicar liberdade de imprensa e direito de ir e vir. Enquanto isso, Krenz visitou o Kremlin para garantir a Gorbachev que ainda estava no controle. Prometeu que a polícia, juntamente com “certos elementos” (presumidamente militares), tinha planos para conter uma tentativa em massa de cruzar à força os postos de controle do muro. (Não havia tal plano na ocasião.) Por outro lado, os indivíduos que tentassem cruzar o muro não seriam mais alvejados. Uma nova lei de viagens viria a permitir o livre trânsito para todos os países, com o Estado usando passaportes e vistos de saída para manter o controle do fluxo. Não se falou da demolição do muro de Berlim, embora saibamos que Gorbachev e seus colegas da alta cúpula consideraram por alguns instantes a questão em privado, somente para descartá-la como algo arriscado demais. A ideia de que o povo pudesse tomar as rédeas do assunto não era levada a sério.

De volta a Londres, senti-me frustrado por não estar vivendo minha antiga obsessão. Lembro-me de acordar de madrugada e pensar: “Era para eu estar em Berlim!” Finalmente, a 8 de novembro, o Telegraph permitiu que eu tomasse um vôo para lá. Hospedei-me no novo e pomposo Hotel Grand na Berlim Oriental, abundantemente provido de espiões e escutas da Stasi, mas com as mesmas míseras poucas linhas de telefone, o que significava que os jornalistas tinham de discar várias vezes até conseguirem uma linha para falar com o Ocidente, mesmo sendo possível ver o muro da janela do quarto. 

Naquela semana, o comitê central reunir-se-ia, e às 6 da tarde do dia 9 de novembro convocou-se uma coletiva para anunciar as suas decisões. Todos agrupamo-nos num salão escuro do centro de imprensa internacional na Motzstrasse. O porta-voz do comitê central era Gunter Schabowski, o líder do partido na Berlim Oriental, que falou por quase uma hora ao vivo. A maioria das perguntas vinha de inexpressivos jornalistas da Alemanha Oriental e era quase insuportável esperar por uma chance de ter o microfone. Parecia um não-evento. Os últimos sete minutos da coletiva, todavia, foram dramáticos em todos os sentidos, exceto pelo fato de que nenhum dramaturgo poderia produzir um roteiro que expusesse tão bem o blefe que o muro sempre foi.

Às 6:53 da tarde, um jornalista italiano, Riccardo Ehrman, fez a sua pergunta: “Herr Schabowski, o senhor não acha que esse projeto de lei de viagens anunciado poucos dias atrás foi um grande erro?” No começo deste ano, Ehrman revelou pela primeira vez que a sua pergunta não foi espontânea, mas que a fez por indicação do chefe da agência de notícias da Alemanha Oriental, ADN, que lhe teria dito que ela era “extremamente importante”. Isso indica que Krenz pretendia usar a coletiva para anunciar sua nova política – uma última cartada para salvar a sua liderança e o regime comunista. Krenz decidiu dar ao povo o que ele queria: trânsito livre ao Ocidente. Mas não tinha a intenção de eliminar o muro.

No começo, Schabowski hesitou, mas depois anunciou que o Politburo tinha tomado a decisão naquele mesmo dia. Tinha acabado de definir um novo conjunto de regulamentações que permitiriam que os alemães orientais emigrassem. Alguém perguntou (Ehrman diz que foi ele, mas houve quem dissesse o contrário) quando essa nova lei passaria a valer: “Imediatamente?”. Schabowski não respondeu de primeira, mas tomou um pedaço de papel com o texto da nova lei de viagens e começou a ler os seus artigos em voz alta. “Os departamentos de passaporte e registro das repartições da polícia do povo foram instruídos a emitir vistos para a emigração permanente sem demora” e “a emigração permanente pode ocorrer em qualquer parte da fronteira entre a RDA e a RFA”. Ele, a princípio, não tinha mencionado Berlim. Um outro jornalista (não se sabe ao certo quem) perguntou novamente quando as novas regulamentações passariam a valer. “Pelo que sei… imediatamente, sem demora”, respondeu Schabowski. Foi um erro fatal. Krenz pretendia que a nova lei entrasse em vigor no dia seguinte, 10 de novembro, após policiais e oficiais terem recebido as instruções. Só que não dizia isso no documento que entregou a Schabowski, que este último lera na coletiva. A resposta dele deu a entender que a nova lei já estava em vigor, naquele momento, naquela noite. Mas ninguém avisou os guardas nos postos de controle, ou os seus superiores, para que emitissem os vistos ou quaisquer outras instruções.

Outra pergunta: “Isso também se aplica à Berlim Ocidental?” Schabowski confirmou que também estava permitido cruzar a fronteira para a Berlim Ocidental – uma outra surpresa, pois Berlim ainda era governada pelos quatro poderes. Naquele momento, a coletiva transformou-se num pandemônio, com repórteres apressando-se em divulgar aquilo ao mundo. E, contudo, o significado do anúncio de Schabowski era totalmente ambíguo. Ninguém sabia o que aquilo queria dizer, tanto com relação às consequências práticas e imediatas – os alemães orientais poderiam simplesmente ir embora? – como com relação ao seu significado histórico mais profundo. Sobretudo, ninguém falou do muro.

Era agora 6:58 da tarde. Um jovem ansioso e magro de doer, vestido com um antigo terno de tweed levantou-se, com o microfone na mão. Fiz a pergunta mais óbvia que veio à minha mente: “Herr Schabowski, was wird mit der Berliner Mauer jetzt geschehen?” (“Senhor Schabowski, o que acontecerá ao muro de Berlim agora?) Centenas de milhares de alemães de ambos os lados do muro estavam assistindo: eles também queriam a resposta. Schabowski parecia desconcertado. Ele anunciou que essa seria a última pergunta. Repetiu-me a pergunta para si mesmo e acrescentou que “A permeabilidade do muro pelo nosso lado ainda não resolve exclusivamente a questão acerca do significado dessa fronteira fortificada da RDA”. Era algo muito alemão refletir sobre o significado do muro de Berlim naquele momento. Mas aí é que estava a dificuldade. Agora que tinha usado as palavras fatais “muro de Berlim”, Schabowski poderia ter aproveitado a oportunidade para dizer que a abertura do muro naquela noite não estava em questão. Poderia ter explicado qual seria a razão da existência do muro agora que as pessoas não seriam mais alvejadas ao tentarem passá-lo. Em vez disso, hesitou. Tropeçava nas próprias palavras. Divagava sobre paz e desarmamento por dois dos minutos mais longos de sua vida. Mas não respondeu a pergunta porque não tinha resposta. Um muro entre as duas metades de um país poderia não ter “sentido” se as pessoas pudessem transitar livremente. Era o fim. E quando Schabowski terminou um pouco depois das 7 da noite, todos sabiam. O Pfennig caiu.

Em certa medida, a mídia fez a mensagem. Decidimos que aquilo que Schabowski dissera – e aquilo que não dissera – significava a abertura imediata do muro. As respostas de Schabowski para Ehrman e para mim eram continuamente exibidas a noite inteira pelos noticiários tanto na Alemanha Oriental como na Ocidental; comentaristas faziam eco à minha pergunta: o que acontecerá ao muro de Berlim agora?

E foram as pessoas que tomaram a decisão. Enquanto Schabowski, Krenz e seus colegas do Politburo foram para casa cedo, os cidadãos da Berlim Oriental saíram às ruas. Quando enviei minha matéria, o povo estava começando a agrupar-se perto do muro. Belas moças reconheceram-me e abraçaram-me, insistindo para que eu comemorasse com elas. Brindamos a abertura do muro com vinho caseiro (não havia champanhe). Do lado de fora, podia-se ouvir a um som indescritível: o som da libertação. Quando voltei ao muro, as pessoas estavam de pé em cima dele. Os oficiais não tinham recebido instruções e também não queriam atirar. Não tinham escolha a não ser deixá-los passar pelo Checkpoint Charlie e os outros postos de controle.

Quando as pessoas saíram às ruas naquela noite, abriram brechas no muro, superando, simbolicamente, a tirania totalitária que antes haviam infligido a outros. O que aconteceu naquela noite estava repleto de ecos e ironias da História. O muro de Berlim, pelo menos na aparência se não no propósito, lembrava espantosamente o muro que os nazistas construíram ao redor do gueto de Varsóvia – o lugar onde os judeus sublevaram-se contra os nazistas em 1943 num levante sem esperança, porém heróico, e onde Willy Brandt caiu de joelhos num tributo silencioso em 1970. Pode ser coincidência que 09 de novembro fosse o aniversário do Putsch de Munique de Hitler em 1923, quando a ameaça nazista manifestou-se ao mundo pela primeira vez; também era o aniversário da Kristallnacht em 1938, quando os nazistas desencadearam um pogrom nacional que deixou clara a sua intenção de exterminar o povo judeu, e acabou com qualquer esperança de que a consciência alemã se revoltaria contra tamanha barbaridade. Pode ser coincidência que Riccardo Ehrman, cuja pergunta provocou o anúncio de Schabowski, era um judeu da Polônia que sobreviveu a um campo de concentração nazista quando criança, mudou-se para a Itália e retornou para a Alemanha como jornalista.

Mas não foi coincidência que em Londres Margaret Thatcher tenha reagido com horror a cenas de júbilo no muro. No dia 10 de novembro, Sir Peter Wright, subsecretário permanente para assuntos exteriores, escreveu o seguinte para Stephen Wall, secretário particular da Secretaria de Assuntos Exteriores: “Entendo que a primeira ministra tenha ficado verdadeiramente horrorizada ao ver todos no Bundestag de pé para cantar “Deutschland über alles” quando chegaram as notícias dos acontecimentos no muro de Berlim”. Não havia nada de surpreendente no espanto de Mrs Thatcher diante da perspectiva de uma iminente reunificação da Alemanha. Em Paris, François Mitterrand compartilhava dessa sua ansiedade a respeito do reaparecimento de questões esquecidas porém complexas, como a linha Oder-Neisse, a controversa fronteira entra a Alemanha e a Polônia. Enquanto isso, em Moscou, Gorbachev reagiu, segundo Condoleezza Rice, “com um pânico que mal podia disfarçar”. Após assistir às imagens do muro de Berlim, o líder soviético escreveu para George H. W. Bush no dia seguinte: “Quando se fazem afirmações na República Federal da Alemanha com o intuito de fomentar sentimentos veementemente contrários às realidades do pós-guerra, isto é, à existência de duas Alemanhas, as manifestações de extremismo político que se seguem podem desestabilizar a situação não apenas na Europa Central, mas numa escala maior”. Bush respondeu com cautela, pois já tinha decidido que deixaria o povo alemão decidir o seu próprio futuro, como Reagan insistira com Gorbachev.

Helmut Kohl estava jantando com o novo primeiro-ministro da Polônia pós-comunista, Tadeusz Mazowiecki, em Varsóvia quando o seu assistente trouxe-lhe a notícia da abertura do muro. Ele primeiro recusou-se a acreditar. Naquela mesma noite, porém, tomou um vôo para a Alemanha – embora não diretamente para Berlim, pois o estatuto quadripartido ainda em vigor de Berlim não permitia que um avião alemão chegasse à cidade vindo da Polônia. Na verdade, Kohl foi levado para Berlin num avião da força aérea americana, numa rememoração do Berlin Airlift. Ao discursar para a multidão, ignorou o aviso de Gorbachev para que não tocasse o tema da reunificação da Alemanha. Pelo contrário, exclamou: “Vida longa à pátria alemã livre! Vida longa à Europa unida!” Menos de duas semanas depois, com a multidão cantando “Nós somos um povo” e não mais “Nós somos o povo”, Kohl lançou o seu plano de dez passos para a unidade da Alemanha. Não havia mais como voltar.

A queda do muro de Berlim não apagou a responsabilidade da Alemanha pelo Holocausto – nada poderá fazê-lo – e os alemães honestos tampouco fogem dela. Mas algo naquela noite lembrava os acontecimentos da passagem bíblica de Josué e as muralhas de Jericó: “E logo que o povo ouviu o som das trombetas, levantou um grande clamor. A muralha desabou. A multidão subiu à cidade, sem nada diante de si” (Josué 6, 20).

Ao reaverem a liberdade, os alemães orientais ganharam novamente respeito por si próprio e pelos outros. A queda do muro permitiu que os alemães escrevessem um novo capítulo da história da liberdade. Conquistaram a confiança dos seus antigos inimigos e vítimas. Agora que novamente possuíam um futuro como nação, não precisariam mais viver no passado.

T. S. Eliot captou em “Little Gidding” essa característica, que não é peculiar somente dos alemães: “Um povo sem História / Não está redimido do tempo / pois a História é o modelo / dos momentos atemporais” (A people without history / Is not redeemed from time, for history is a pattern / Of timeless moments).

Graças a esse momento atemporal em Berlim, a história da Alemanha, aparentemente atolada no crime e no castigo, passou a fazer sentido. O oco da ideologia comunista, a sua falsa promessa de um Estado onisciente, foi exposta. Longe de ser onipotente, a sua impotência tornou-se manifesta naquele momento de verdade.

O momento em que Schabowski respondeu à pergunta de Ehrman e falhou em responder à minha revelou-se o momento em que o muro de Berlim – e a cortina de ferro que dividia a Europa – tornaram-se História. Foi o momento em que a Guerra Fria acabou.

E foi o momento em que a terrível história da Alemanha recobrou algum tipo de sentido.

 

Daniel Johnson é editor da revista Standpoint. O texto traduzido foi publicado originalmente em http://standpointmag.co.uk/seven-minutes-that-shook-the-world-features-november-09-daniel-johnson-berlin-wall

Tradução de Cristian Clemente

8 comentários em “Sete minutos que abalaram o mundo

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  6. Belíssimo artigo. Me chamou a atenção o pavor de Margareth Tacher ao saber da queda do muro. Em vez de ficar feliz com mais este duro golpe no Império Soviético, manifestou terror diante da perspectiva do renascimento do nacionalismo alemão, quando os alemães gritavam “deutschland über alles”, o que revela o trauma profundo que os nazistas causaram aos ingleses.

    Vinte anos depois ninguém mais tem medo dos alemães, estes cordeirinhos vegetarianos, politicamente corretos e inofensivos.

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