Um elo perdido

Príncipe Otto da Hungria (1912 - 2011)

O arquiduque Otto von Habsburg, o menino do quadro acima, morreu aos 98 anos neste 04 de julho. Perdemos um elo vivo do passado europeu, alguém que não só viveu mas também participou da vida pública do continente em todas as suas fases no século XX e início do XXI. Seu pai, Karl, foi o último imperador austro-húngaro, abdicando em 1919, e indo com a família para o exílio.

Em 1922 Karl morreu. Otto tinha 10 anos, e no mesmo dia os membros do séquito real que integravam sua residência passaram a chamá-lo de “Vossa Majestade”. Começava assim a vida pública do jovem pretendente ao trono. Às vésperas da Segunda Guerra, Otto, que odiava o governo nazista, protagonizou uma mal-fadada tentativa de recuperar o trono austríaco para impedir a união com a Alemanha, mas foi rechaçado pelo chanceler austríaco que, ironicamente, era monarquista. Passou a guerra fugindo das forças nazistas, até parar nos EUA, a convite do presidente Roosevelt. A ordem social e cultural em que ele nascera, ferida mortalmente na Primeira Guerra, foi definitivamente sepultada na Segunda.

Nos anos 60, se envolveu com a política européia e abriu mão de suas aspirações ao trono para integrar o Parlamento Europeu, tornando-se mais um político no processo de unificação e burocratização geral da Europa. Sua influência, contudo, era positiva, indo sempre no sentido de combater o comunismo, ressaltar as raízes cristãs do continente e preservar a dignidade humana.

Depois de morto, Otto recebeu as honras que lhe foram negadas em vida. Diferentemente de seu pai, que jaz na Ilha da Madeira, recebeu enterro de imperador no dia 16 na Áustria, e seu coração foi levado a um monastério na Hungria.  Na entrada da igreja dos capuchinhos em Viena, que é onde fica a cripta real, repetiu-se um antigo ritual dos Habsburgos. A comitiva que leva o caixão bate na porta da igreja. Um frade do lado de dentro pergunta: “Quem demanda entrada?” O líder da comitiva responde com o nome e títulos do defunto. “Otto da Áustria; antigo Príncipe da Coroa da Áustria-Hungria; Príncipe Real da Hungria e da Boêmia, da Dalmácia, Croácia, Slavônia, Galícia, etc.”. “Não o conhecemos.”, responde o frade, e a porta permanece fechada. Em seguida o morto é apresentado como “Dr. Otto von Habsburg” e a longa lista de seus feitos cívicos e acadêmicos é recitada. “Não o conhecemos”. Por fim, a terceira apresentação: “Otto, um homem, mortal e pecador!”. “Então ele pode entrar”, responde o frade. As portas se abrem e a comitiva fúnebre segue igreja adentro.

12 comentários em “Um elo perdido

  1. Por isso eles são a Áustria e nós o Brejil. Duvido que um Zé de lá, que tenha lido Ortodoxia saia, como nossos nobres, arrotando cultura, se achando a salvação da lavoura.

  2. Cardo, tinha visto apenas a versão em inglês usada correntemente, que usava “human being”. Fui checar no alemão: “Otto – ein sterblicher, sündiger Mensch!”

    De fato, “mensch” é homem, mas sem determinar o sexo. Tanto que a mesma frase foi usada no enterro da mãe dele, a imperatriz Zita, em 89. ‘Zita, ein sterblicher, sündiger Mensch’. Acho que é por isso que os tradutores do inglês, levados por um medo politicamente correto de sucumbir ao “machismo” linguístico pelo qual “man” se refere a todos os seres humanos e “woman” não, preferiram “human being”.

    Em todo o caso, corrijo no texto.

  3. Vale lembrar que a expressão “Mensch” também dá as caras numa cena hilária daquela deliciosa comédia de Billy Wilder, The Apartment (1960).

    Bela lembrança do Joel, aliás, já que pouco se falou a respeito do arquiduque na imprensa brasileira. Otto von Habsburg é, entre outras coisas, o autor deste belo ensaio, publicado em 1966, “The Effects of Communism on Cultural and Psychological Politics in Eastern Europe”: http://www.mmisi.org/ir/03_01/habsburg.pdf

  4. 1) O “mensch” do inglês coloquial terá chegado pelo ídiche:
    http://en.wikipedia.org/wiki/Mensch

    2) A palavra “Império” tem hoje conotação negativa. O que ela já expressou de positivo é tipificado pelo Dante na “Comédia” e no “Monarquia”: liderança política representando – na precariedade com que um “mensch” pode fazê-lo – o Criador da razão e os homens que a recebem como dom.

    3) De um ponto de vista bem italiano, exemplo de reflexões informadas pela noção do legado que o Império Austro-Húngaro deixou no projeto (inacabado, incerto) de uma Europa moderna: http://www.30giorni.it/articoli_id_4219_l6.htm

  5. Para quem quiser uma outra perspectiva sobre o Arquiduque (talvez excessivamente crítica devido as circunstâncias), recomendo o artigo “Otto von Habsburg’s Ambiguous Legacy”, escrito por Srdja Trifkovic e publicado na Chronicles Magazine.

  6. Bonito o ritual. Reconhece que a potestade não atravessa o umbral pelos méritos mundanos e cívicos. Mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha…

  7. Obrigado pelas indicações. De fato, isso coloca em questão todo o seu papel na política européia. Eu mesmo não morro de amores pela cultura ortodoxa do Leste Europeu; mas certamente qualquer visão sensata e cristã da Europa deveria estar muito mais preocupada em acomodar e integrar esses povos do que com os muçulmanos da Turquia e do Norte da África.

  8. Na caixa de comentários, que segue o artigo mencionado acima, o autor deixa uma mensagem que diz:

    “His vision of a united Europe was not ‘naive’ but illuminated to the 32nd degree.”

    Se isso for verdade como é que o homem foi sepultado numa igreja católica.

  9. Lembrei-me de uma passagem do Dante no “Monarquia”, sobre o que significa nobreza. Certamente não decorrência automática de linhagem familiar, independente dos méritos dessa instituição. O critério é o da afinidade com a ordem criada; e a competência daí decorrente tem os seus limites dispostos pela razão e pela revelação.

    E outra passagem afim do René Girard, sobre o gradual e incontornável descolamento entre nobrezas social e espiritual , culminando no pós-Revolução francesa nesse fenômeno meio ridículo de um “partido aristocrático” na França do século XIX.

    Só inscrito em circuitos de “instituição” bem outros é que sobrevive o que há de verdadeiro nas noções de Império e de nobreza dos antigos e medievais, viabilizando sentido para uma referência a “elos perdidos” como a do texto postado.

    Antigos e medievais que aliás sabiam perfeitramente descolar a casca da polpa, e o expressaram à sua maneira. Dante, por exemplo. Ou, em perspectiva exterior à idéia de universo criado, mas não incompatível com ela, o Aristóteles da “Ética à Nicômaco”. Para os que dispõem de tempo e lazer. O resto é vaidade.

  10. Corrijo: o “De Monarchia” interessa diretamente à questão, mas a conversa a respeito de nobreza encontra-se no tratado IV do “Convivio”. Dante comenta ali a canção que ele chama “contra-li-erranti mia” (sim, é uma brincadeira com Santo Tomás) e que começa com “Le dolci rime d´amor” etc.

    O tema é a dissociação entre autoridade imperial e autoridade filosófica – o antigo “topos” platônico, sempre mais atual – e o correlato aviltamento da noção de “gentileza” (ou “nobreza”).

    O livro é fácil de achar no google books em várias linguas: http://books.google.com/books?id=8UNdAAAAMAAJ&hl=pt-BR&source=gbs_similarbooks

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