O romance que salva toda uma literatura

Depois de meses de enrolação, setenta e duas páginas lidas, mas interrompidas porque as circunstâncias me impediam de dedicar o tempo necessário, somente agora consegui terminar de ler o romance “As Benevolentes”, de Jonathan Littell.

Vocês já devem ter ouvido falar dele: o catatau de 900 páginas sobre um carrasco nazista gay da SS, ganhador dos prêmios Goncourt e da Academia Francesa, mais de 700 mil exemplares vendidos, escrito em francês por um americano residente em Barcelona. Enfim, o mito está feito e impresso.

O que vocês não ouviram é se o livro vale realmente a pena. Muitas críticas a ele são obtusas, para não dizer limítrofes. Alguns não entenderam nada; outros simplesmente perceberam que não tinham condições para o compreender adequadamente – e deram uma opinião frouxa.

 (A exceção é a resenha de Jessé de Almeida Primo para o primeiro número de Dicta&Contradicta. Mas, apesar de corajosa, não concordo com alguns aspectos de sua análise).

Enfim, perguntará o leitor, o livro é bom? Não, ele é excelente: é possivelmente um dos poucos romances que colocaria lado a lado com “Doutor Fausto”, de Thomas Mann, a grande obra que mostra o pacto demoníaco que a Alemanha fez com o Nazismo. Mas não se trata de uma tragédia; na verdade, Littell construiu o romance como uma farsa que, em alguns momentos, atinge a alucinação pura. Há um norte ético nessa decisão estética. Dizia Eric Voegelin, em seu “Hitler e os alemães”, que não se podia retratar o nazismo como uma tragédia, mas sim como uma farsa, pois o absurdo da situação era tamanho que ela não podia ser representada como algo “real”. Quando Littell chama o seu romance de “As Benevolentes”, sem dúvida quer nos despistar, jogar com nossas expectativas para depois quebrá-las em pedacinhos.

Assim, sugiro ao leitor que, se quiser aventurar-se a ler o catatau de Jonathan Littell, se prepare para trechos de alta voltagem sensorial e intelectual. Trata-se de um romance que retrata o nosso fascínio pelo Mal, não hesita em identificar o nazismo com as ideologias socialistas, sionistas e afins (não poupa sequer a ideologia GLS), narrado com uma força de imaginação que faz inveja a qualquer aspirante a escritor.

Além disso, o nosso escritor globe trotter também cria uma enigmática reflexão sobre o sutil poder do Bem, mesmo quando tudo parece ser dominado pelo Mal – daí o título, que tem, sem dúvida, uma ressonância irônica. Apesar de ser um olhar sem misericórdia no coração das nossas trevas, Jonathan Littell reconhece que a luz sempre vem para aqueles que também a recusam; e é a noção deste paradoxo que cria as obras de artes e os romances que podem, por alguns momentos, salvar toda uma literatura em decadência.

3 comentários em “O romance que salva toda uma literatura

  1. Martim, você não achou que mesmo com o tom farsesco do livro, aquele desfecho, com a cena do encontro com o Hitler, ficou um tanto deslocado, em termos de tom?

  2. Enfim alguém teve a coragem de dizer que o livro é excelente.
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    Depois de Milan Kundera _ que já merecia ter ganho o Nobel a muito tempo _ vem Jonathan Littell, um americano, salvar a Literatura não só da orgulhosa França, mas do Ocidente inteiro.
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    Se os velhinhos de Estocolmo tiverem coragem, que dêem o Nobel a Littel e que o mito se torne ainda maior.
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    E por falar em Nobel: tomara que o grande Solzhenitsyn tenha partido deste mundo tendo lido “As Benevolentes”. A memória do Mal não pode ser esquecida jamais. Solzhenitsyn sabia disso, Littell não deixará que nos esqueçamos.

  3. É excelente, de fato. Um relato indefinível de um absurdo inumano numa epoca de trevas onde os homens se escondiam de suas taras vestindo uniformes e seguindo ordens inquestionáveis. A loucura transita entre o individual e o coletivo e estabelece um limite invisivel entre a sanidade e os desvios irracionais que se mesclam numa pretensa nova ordem mundial. Duro e delicado. Terrível e sensível. Chocante e suave. Um susto.

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