Uma das notícias que mais me chocou em dezembro passado foi o roubo do letreiro de Auschwitz. Vocês conhecem a história: na entrada do campo de concentração os prisioneiros se deparavam com um portão de ferro sobre o qual reluziam imponentes as palavras Arbeit macht frei – o trabalho liberta. Sempre tive uma espécie de fascinação macabra por este portão: o que passava pela cabeça de quem lia estas palavras? O que trabalho e liberdade significavam para um nazista? E para um judeu? Em quantas conferências de RH a mesma frase passaria despercebida hoje em dia? É uma imagem fortíssima e o fato de ter sido roubada dá margem a uma boa reflexão.
Mas passado o primeiro susto, não posso negar que senti um certo alívio ao ler a notícia. Estava a bordo de um avião e se me restava algum peso na consciência por passar mais de vinte dias de férias na Itália, esse peso evaporou-se com as palavras estampadas na primeira página do jornal: Auschwitz Profanata. Foi uma perfeita mensagem de “boas férias” lembrar que não há nenhum valor no trabalho por si só.
Não foi por acaso que antes de entrar no avião eu havia corrido em busca de um jornal. Enquanto as aeromoças passavam um spray anti-germes na cabine, eu entrava no espírito italiano lendo o La Repubblica. Pode parecer estranho para quem está acostumado aos jornais da Botocúndia, mas definitivamente os idiotas da objetividade não chegaram à terra de Dante. Não sei se o spray livrou os italianos dos nossos micróbios, mas o La Repubblica me deixou pronto ao dolce far niente que estaria por vir. Guardei o recorte (em italiano porque senão perde a graça; depois traduzo sem preocupação com estilo):
C’ erano i cani ieri ad Auschwitz, il silenzio del campo spezzato dai latrati, neve fresca calpestata da stivali di polizia. L’ operazione è scattata di primo mattino, le unità cinofile impegnate in una caccia all’ uomo seguita in tempo reale da tutto il mondo. All’ alba ignoti hanno rimosso dalla sommità del cancello principale il telaio metallico con la scritta «Arbeit macht frei», il lavoro rende liberi, messaggio di benvenuto ai deportati nel campo di sterminio dove la parola significava il suo contrario. Secondo la ricostruzione della polizia l’ iscrizione lunga cinque metri e pesante quaranta chili è stata portata via tra le 3.30 e le 5 di ieri mattina
[Havia cães ontem em Auschwitz, o silêncio do campo arrebentado pelo ladrar, neve fresca pisoteada pelas botas da polícia. A operação começou logo na primeira manhã, as unidades caninas empenhadas numa caça ao homem seguida em tempo real por todo o mundo. Ao amanhecer, desconhecidos removeram do topo do portão principal a estrutura metálica com a inscrição “Arbeit macht frei”, o trabalho torna livre”, mensagem de boas-vindas aos deportados para o campo de extermínio onde a palavra significava o seu contrário. Segundo a reconstrução da polícia, a inscrição com cinco metros de comprimento e pesando quarenta quilos foi levada entre as 3.30 e 5 horas da manhã de ontem]
Na página seguinte a manchete era: “Feltri: «Accetto il valium ma Fini ci vada piano con il lambrusco»” [“Feltri: ‘aceito o Valium, mas que Fini vá devagar com o lambrusco’”]. Expliquemos: o presidente da Câmara italiana, Gianfranco Fini, teve um desafeto com o jornalista Vittorio Feltri e, aproveitando a proximidade do Natal, mandou publicamente uma caixa do ansiolítico Valium de presente ao jornalista!!! (e mais três !!!); este último respondeu como aí em cima e tudo virou uma bela manchete. Eu li a notícia e pensei: “bem-vindo à Itália”. Ou alguém imagina o Michel Temer enviando uma caixa de Diazepam ao Reinaldo Azevedo?
Foi assim que começou minha viagem e é assim que eu começo essa série de crônicas sobre o que aconteceu por lá. Vou colocar algumas fotos (como estas de Roma), contar algumas histórias sacras e outras profanas, dizer um pouco do que fiz de bom e de ruim – seguindo sempre a regularidade italiana, claro…
Oh! Boa viagem, Guilherme.
O que me deixou chocada há poucos dias foi ler de um amigo, juiz de direito, que era uma pena Hitler ter sido um bufão porque se não fosse isso não haveria a hegemonia judaica que há hoje.
Confesso que fiquei com medo…
O pior não é olhar as igrejas gêmeas e ter inveja de quem anda por ali; é saber que, donde a foto foi tirada, se está a alguns metros de ir espiar “A conversão de São Paulo” e “A crucificação de São Pedro”.
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